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Para que a análise dos dados seja acompanhada pelo leitor de forma mais efetiva, optamos por fornecer, em linhas gerais e em português, um resumo dos três contos trabalhados148, com uma pequena análise discursiva acerca de todos eles.

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O conto “O pescador e sua mulher” (Von dem Fischer und seiner Frau) narra a história de um pescador que vivia com sua mulher em uma cabana miserável, perto do mar. Certo dia, ele pescou um linguado que, em verdade, era um príncipe encantado. Porque o peixe falava e pediu a ele que o poupasse, o que de fato aconteceu, a mulher do pescador passou a exigir dele, através do seu marido, que seus desejos de melhoria de vida fossem realizados. Assim é que, inicialmente, ela desejou uma cabana melhor e, ao consegui-la, passou, paulatinamente, a exigir que o marido pedisse ao peixe um castelo e depois um palácio. Não satisfeita com as aquisições, exigiu dele que a tornasse imperatriz, papisa e, finalmente, deus. Em uma sucessão de pedidos estressantes para o pescador — que não concordava com a mulher, mas que não a queria contrariar — e que tornavam a natureza cada vez mais agitada, o peixe concedeu-lhe todos os desejos. Entretanto, ao exigir que fizesse dela deus, tudo o que lhe havia sido concedido desapareceu e eles voltaram à sua condição inicial, em que ele era um pobre pescador e morava com ela em uma cabana miserável. O texto guarda todas as características dos contos dos Irmãos Grimm, como, por exemplo, as rimas dos pedidos feitos pelo pescador ao peixe.

O conto “O peixinho encantado”, coletado por Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte, narra, por seu turno, a história de um filho preguiçoso, que passava o dia todo deitado e não sabia fazer nada, de tal forma que morreria de fome se a sua velha mãe não providenciasse comida. Sob violenta pressão, ele um dia foi obrigado a buscar lenha e, durante aquela tarefa, ao beber água do poço com as mãos, trouxe um peixe que, como no conto “O pescador e sua mulher”, era encantado. Também como na história dos Grimm, o peixe pediu a ele clemência e, a partir da sua concessão, passou a realizar os desejos do preguiçoso. A série de pedidos feitos por ele ao peixe inclui desde levá-lo montado num enorme feixe de lenha conseguido sob o poder de mágica, passa pelo desejo realizado de ver a princesa engravidar de um filho seu, pela aquisição de castelo maior e mais imponente do que

o do rei ou pela falsa incriminação do monarca, para demonstrar que a sua filha também não era culpada por ter ficado grávida. Ao final, todos se unem, felizes.

Por outra via, o conto indígena “Como chuva e sementes tornam a terra frutífera” narra a história de um índio, Begorotire, que vivia na terra, entre os seus pares, mas que, por presenciar desarmonia entre eles, resolveu subir ao paraíso celeste, levando consigo a sua família. Tempos passados, com pena das pessoas boas entre os homens, ele mandou à terra uma cabaça cheia de sementes selecionadas, em que também colocou a sua filha, para que fosse conselheira dos homens. Essa cabaça foi encontrada por um jovem, que a levou para a sua mãe. Certo tempo depois a mulher a abriu e Nyobogti, filha de Begorotire (aquele que traz chuva), livre, distribuiu as sementes, mostrando como plantá-las e se casou com o jovem que a encontrou. Como os tempos difíceis ainda aconteciam entre os homens, Nyobogti resolveu voltar ao paraíso celeste, para buscar mais sementes. Ela retornou logo depois trazendo consigo, além de sementes, toda a sua família. Begorotire ensinou ao seu genro como plantar e como lavrar a terra e voltou com seus familiares ao céu. Diz o conto que, quando a terra necessita de água, Begorotire provoca, com seus gritos e o giro da sua clava, raios e trovões e, com isso, as nuvens se assustam tanto que soltam a chuva na terra.

O foco do conto dos Irmãos Grimm gira em torno do excesso e da punição pela ambição, mas pode se voltar também para a remição de pecados, caso a interpretação do retorno do casal à condição inicial seja vista como alcance da condição divina, que no discurso religioso reverbera sentidos de desprendimento, de pobreza. A mulher é ali considerada ambiciosa e o homem submisso, o que traz à tona formações discursivas que situam mulheres e homens naqueles papéis. Nele, a natureza se põe ao serviço do homem, mas se rebela com seus despropósitos. No conto “O peixinho encantado”, por outra via, o principal foco é a preguiça premiada. Ele reafirma o interdiscurso de que a inteligência vale mais que o labor e de que a opulência é inquestionada e bem-vinda. Como acontece com o conto dos Grimm, a natureza está a serviço do homem, mas é a ele submissa. Já no conto “Do

pescador e sua mulher”, os temas não giram em torno da ambição ou da punição, e nem lidam com questões de riqueza ou posse. Ele fala de abundância ou de escassês, mas com relação ao meio ambiente natural. Fala de desarmonia entre os homens, mas, ao contrário do que acontece com os outros dois contos, lida com o auxílio — de Begorotire e sua filha, Nyobogti, aos homens de boa vontade. Como nos outros contos apresentados, o milagre é o centro da história, mas neste conto indígena, que reverbera as formações ideológico-discursivas daquela sociedade, o objeto de desejo é a abundância de alimentos e não o possuir ilimitado, que é determinado pelas formações ideológicas e discursivas dos personagens dos contos “O peixinho encantado” e “Do pescador e sua mulher”.