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2 A CRIAÇÃO DA LEI N º 10.639/003 E A MOTIVAÇÃO DOS KITS DE

4.3 O fio das missangas

4.3.2 Entrada no céu

Neste conto percebemos que a ficção mistura-se com a realidade, conforme veremos a seguir o fato ocorrido com o personagem foi ficcional, mas vários negros foram vítimas da segregação racial imposta em Moçambique:

O homem me puxou pelas mãos e me apertou com tais vigores que os vidros cortaram fundo. Foi aí que decepei a carne, os nervos, os tendões. E escorreu sangue de um preto, como doença manchando o imaculado território dos brancos.

O que mais me fez sofrer, caro Padre, não foi o golpe. Não foi também o vexame. (COUTO, 2013, p. 79-80)

Podemos, desde o início da narrativa, perceber que o sofrimento do personagem negro liga-se à devastação do país. Enquanto o negro teve seus tendões cortados, o país tinha seus bens naturais pilhados pelo colonizador, passando a sangrar como o corpo do negro em decorrência da cobiça do branco. Podemos ver no texto a discriminação do povo africano logo no início do conto, uma vez que o personagem negro nem nome tem. O padre se chama Bento, a moça no baile se chama Margarida, mas o personagem negro, o narrador, não tem nome assim como o porteiro da festa.

Uma questão histórico-social é apresentada, no conto, em forma criativa. Mia Couto escreve de modo irônico para nos mostrar estas questões raciais. Podemos ver isso no seguinte trecho:

É por isso que regresso ao senhor para que me escute, nem que seja em religioso fingimento. Se faça-me o favor, senhor padre, me diga: cuja essa entrada no Paraíso é à moda da raça, ou das cláusulas de sermos um zé- alguém? Os pretos como eu, salvo sou, apanham licença? Ou precisam pagar umas facilidades, encomendar um abre-boca nalgum mandante? (COUTO, 2013, p. 77)

Neste trecho, notamos a crítica à corrupção, ao jogo de interesses existentes no país, pois o personagem negro, ao questionar a forma como ele entraria no céu, nos leva a refletir como a corrupção era usada em favor do branco. Este tinha direito natural aos bens, enquanto o negro tinha que pagar para usufruir de algo que deveria ser seu por direito, mas para tanto precisava negociar troca de favores com os detentores do poder econômico/político.

A incerteza religiosa do personagem negro é perceptível quando ele faz esse questionamento, pois sabemos que a religião cristã foi imposta aos africanos e que o Deus cristão lá chegou como dominador e punidor e que, por isso, sua imagem é associada aos políticos. As inquietações do personagem negro diante da religião católica se dão por ser esta uma religião de preceitos muito diferentes da sua.

O personagem negro fica imaginando como seria o paraíso, comparando-o a um grande tribunal com Deus como um juiz a julgar todos os fatos da existência das

pessoas, “quem executa essa triagem, à entrada do paraíso? Um encartado porteiro? Um tribunal com seus veneráveis julgadores?” (COUTO, 2013, p. 77).

O conto faz também alusão à situação característica do período pós- independência quando se intensifica a hibridação cultural do país, conforme fica indicado no trecho seguinte:

Assim, sem passar devidamente pela capital, nem estar documentado com guia de marcha, averbada e carimbada nas instâncias?

Depois, veja: eu não falo inglês. Mesmo em português, eu só rabisco fora da cartilha. Já estou a ver lá o letreiro, ao jeito dos filmes: welcome to paradise! E não mais saberei ler. Bem poderão me conceder a palavra. É como dar um alto-falante a um mudo. (COUTO, 2013, p. 78)

Percebemos a clareza do narrador com relação a aspectos dos novos tempos, indicados pela invasão de normas escritas em inglês assim como, no período colonial, havia a imposição do português. Como sabemos, a obrigatoriedade do uso do português se deu pelo fato de o país ter sido ocupado pelas forças colonialistas portuguesas. Diante desta ocupação, o moçambicano não tinha autonomia para usar as línguas naturais moçambicanas, ficando à mercê da imposição da língua do colonizador que, após a independência, seria assumida como a língua oficial do país.

Mia Couto nos mostra cenas do cotidiano da colonização em Moçambique, com traços bastante realistas. Ele nos mostra em vários espaços sociais o sofrimento do personagem negro pela discriminação de sua raça e pelo fato de ele se sentir sem lugar na sociedade. Notamos esta discriminação social no trecho a seguir:

Padre bem sabe: o ano não é como o sol que nasce para todos. O ano acaba só para uns e começa cada vez para menos pessoas.

Eu sabia que não me iriam deixar entrar. Mas a minha paixão pela mulata Margarida era maior que a certeza de ser excluído. E assim, todo envergonhado, com vestes de empréstimo, me alinhei na fila da entrada. Eu era o único não-branco nas redondezas. (COUTO, 2013, p. 78)

Podemos perceber que quando o personagem diz que era o único não-

branco, ele está expondo uma situação comum em seu país em que a maioria dos

espaços de lazer nas cidades coloniais era frequentada apenas por brancos. Ao usar esta expressão, o personagem denota o fato de que, durante a colonização, a cor da pele funcionava tanto como característica identitária, quanto como símbolo de exclusão. Na maioria das vezes o africano sofreu diferentes modalidades de

exclusão que fez dos processos discriminatórios estratégias para separar africanos de não-africanos.

O narrador conta, de forma irônica, a história do personagem negro em conflito entre a religião dele e o catolicismo imposto pelo colonizador representado pela figura de padre Bento e também pelo amor da mulata Margarida, que frequentava as rodas dos brancos, locais aos quais ele não tinha acesso. Quando tenta se aproximar dela, no famoso baile dos ferroviários, ele só consegue fazê-lo porque é confundido com um serviçal. Logo depois, ele é descoberto e expulso do local. Margarida, ao vê-lo ser expulso, não se manifesta, e ele sente que a sua amada, sendo mulata, prefere ser considerada “branca entre os brancos”, conforme mostra no trecho a seguir:

O meu coração se apagou foi nessa longínqua noite do baile. Entrei no salão do Ferroviário, sim. Mas fiquei fora do coração da mulata Margarida. A moça nem deu deferimento de me olhar à distância, fria e ausente. Branca entre os brancos (COUTO, 2013, p. 79)

Ao dizer que ficou fora do coração da mulata, expressa os sentimentos de exclusão impostos à maioria dos negros moçambicanos e, ao mesmo tempo, constata as severas fronteiras que existiam no seu país separando brancos negros e mulatos. Margarida, por ser mulata, se sentia parte do grupo que frequentava o Baile do Ferroviário.

O trabalho estético da narrativa entrelaça cenas da realidade social de Moçambique com expressões da subjetividade do negro que reflete sobre a exclusão dos indivíduos em decorrência da cor da pele. A consciência de sua situação é, metaforicamente, referida pela metáfora do pegar “na faca não pelo cabo, mas pela navalha” (COUTO, 2009 p. 78), que pode ser entendida como expressão de seu desespero diante de uma ordem instituída.

Além de abordar o preconceito, o conto gira em torno da vontade do personagem de saber a verdade sobre a entrada no céu. O padre dizia-lhe que para atravessar os “portões celestiais” era necessário obter licença, conforme o trecho a seguir:

E Bento avisava: não se entra no Céu de qualquer maneira. Aquilo lá, nos portões celestiais, requer devida licença. E mais eu perguntava: quem executa essa triagem, à entrada do paraíso? Um encartado porteiro? Um tribunal com seus veneráveis julgadores? (COUTO, 2013, p. 77)

A questão abordada pelo conto diz respeito ao modo como o cristianismo foi imposto aos colonizados, na maioria das vezes, como forma de reforçar o subjugo do povo. O Padre Bento reitera, ao falar dos critérios para se entrar no céu, o medo do inferno para garantir a obediência aos preceitos cristãos e, indiretamente, reiterar as regras do colonizador.

Os dois contos analisados nos permitem afirmar que estes se aproximam das recomendações da Lei nº 10.639/2003 por apresentar aspectos textuais que remetem a momentos históricos africanos como a colonização e a independência de Moçambique, além de remeter ao sofrimento imposto pela segregação racial que imperava nas colônias africanas portuguesas.

Procedemos às análises dos romances e dos contos de Mia Couto, presentes nos Kits, atentando para o imbricamento da análise literária e o viés da africanidade cultural e histórica que estas obras selecionadas para os kits da SMED/BH podem acrescentar ao desenvolvimento da Lei nº 10.639/2003. Esperamos que elementos étnico-raciais, que a SMED/BH visa contemplar com os kits possam ser verificados nas obras O beijo da Palavrinha e O gato e o escuro que analisaremos no último item deste capítulo.

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