• Nenhum resultado encontrado

2 A CRIAÇÃO DA LEI N º 10.639/003 E A MOTIVAÇÃO DOS KITS DE

4.3 O fio das missangas

4.3.1 O novo padre

Neste conto de Mia Couto, o narrador apresenta a história de um engenheiro administrador de uma vila de Moçambique colonial, que se constrói com fortes marcas da voz autoral que transparece em muitos trechos, particularmente com reflexões referentes ao colonialismo de que trata o texto.

A tentativa de encapsular a intencionalidade crítica do conto voltada ao sistema se desfaz nas falas dos personagens, na tradução dos seus pensamentos e em cenas nas quais os fatos são narrados com destaque para o modo de contar. Já no primeiro parágrafo, vemos que Ludmilo não andava pelas ruas: ele “marchava”,

acentua o narrador, indicando a função de poderio militar que o personagem exercia na vila: não havia obstáculos em seu caminho, pois “abriram-lhe alas, estava-se à espera dele.” (COUTO, 2009, p. 89). Dito isto, logo em seguida, o narrador desconstrói a informação dizendo “pelo menos, Ludmilo sentiu-se como sendo esperado.” (COUTO, 2009, p. 89). O engenheiro Ludmilo Gomes governava com suas próprias leis, contava com a proteção da distância em que a metrópole estava da vila; apesar desta autonomia ele não abria mão da tradição religiosa, era “obediente a Deus” (COUTO, 2009, p. 89).

O conto se passa na época em que Moçambique era colônia de Portugal e a única religião aceita era o catolicismo. As práticas religiosas dos africanos eram consideradas pagãs, pois a África era, na visão dos colonizadores, “terras que nunca viram cruz nem luz.” (COUTO, 2009, p. 89), aludindo à ausência do culto religioso cristão e a consequente falta de conhecimento. José Luís Cabaço informa, em depoimento, como era a vida de brancos na colônia, cuja moralidade “aparentava ser rígida e convencional, e os valores que me foram transmitidos eram de estreita observância cristã” (CABAÇO, 2011, p. 214). Os preceitos religiosos a serem cumpridos não incluíam perceber todos os seres humanos como semelhantes, portanto a segregação racial era um comportamento aceito dentro das regras cristãs.

No conto, nem mesmo as várias trocas de padres ou às vezes até com a falta deles, mudava-se a rotina religiosa do engenheiro Ludmilo que todos os domingos ia à missa. Ressaltemos que a rotatividade dos padres na vila é explicada pelo personagem como decorrência de vários motivos: a vila era “lugar de além do fim do mundo” e também porque “até os padres não resistiam à luxúria que os trópicos suscitavam” (COUTO, 2009, p. 89). Vemos nesses trechos que os africanos eram vistos como capazes de pecados tão tentadores que nem as autoridades religiosas conseguiam resistir. Além disso, eram vistos como uma raça inferior que deveria ser encarregada dos trabalhos subalternos. Conscientes do lugar que o negro ocupava naquela sociedade, as mulheres negras se sentiriam orgulhosas de ser possuídas pelos portugueses. Ludmilo concordava plenamente com esta afirmação, pois não percebia nenhuma resistência por parte daquelas que abordava. Confessando-se ao padre, procura justificar o seu comportamento de conquistador, colocando as culpas todas na “preta que ele há muito havia fisgado” (COUTO, 2009, p. 91). Para tentar explicar o motivo que o levou a confessar-se Ludmilo explica que a moça “fazia de

conta que resistia, a malandra, qual pretita não quer ser... como direi, senhor padre, não quer ser possuída por um branco? (COUTO, 2009, p. 91).”

Esse lugar de objeto conferido às mulheres era, na visão dos colonos, muitas vezes compactuado pelos homens das vilas. É o que podemos ver no trecho no qual Ludmilo diz que o irmão da vítima, vendo que ela resistia ao engenheiro, “queria bater na irmã por ela estar criando um conflito comigo.” (COUTO, 2009, p. 92). O português, na versão dele, sem entender o que estava acontecendo desfere um golpe no irmão dela que acaba morrendo. No entanto, Ludmilo Gomes não se sentia culpado por este crime, pois “os africanos são sempre vítimas de maleitas e feitiços”. (COUTO, 2009, p. 92)

A postura de Ludmilo vai ao encontro da visão eurocêntrica de África sempre considerada como território bárbaro que precisa receber o apoio de culturas mais avançadas para se desenvolver. Esse mesmo argumento foi usado como justificava para a colonização. Na visão de Ludmilo, na vila africana, tudo deveria estar a seu favor, pois ainda que tivesse matado o irmão da mulher que queria dominar, ele sequer se preocupa com isso. Criado com maestria por Mia Couto, o personagem retrata a contradição vivida pelos enviados às colônias para administrarem as vilas. Estes funcionários eram enviados ao continente africano tendo recebido muitas informações desencontradas sobre o povo africano, seus costumes e religiões. A visão negativa dos africanos era a tônica e, no conto, percebemos que Ludmilo dizia serem os africanos falsos, ignorantes e mal cheirosos, ainda que se sentisse atraído pelas “pretas”.

O conto de Mia Couto encena a contradição, pois o personagem vê-se marcado pela repulsa aos negros e pelo desejo incontrolável pelas mulheres africanas:

Essas pretas, não sei o que têm. A gente, de um lado, tem-lhes asco, sabe- se lá se estão lavadas, que doenças nelas se escondem. Por outro lado, os corpos delas saltam da natureza e agarram-nos pelos... entende, senhor padre? (COUTO, 2009, p. 75)

Na confissão de Ludmilo ao padre, fica ressaltada sua visão estereotipada sobre as mulheres negras, vistas por ele como libidinosas e, por isso, agirem como se incentivassem a violência contra elas mesmas. O fato de ele se aproveitar do cargo que ocupa e do poder que tem “no mato da colônia de Moçambique” (COUTO, 2009, p. 90) é deslocado para a condenação das mulheres que, como ele diz, têm dom de enfeitiçar os homens.

Fica clara, no conto, a crítica aos desmandos provocados durante o período colonial contra os colonizados e, sobretudo, a denúncia dos atos de violência praticados contra as mulheres por indivíduos que, como Ludmilo, se arvoram em conquistadores e acham que têm o direito de possuir todas as mulheres. O abuso da mulher é apenas uma das questões abordadas pelo conto, que permite ao leitor fazer inferências sobre os sentidos do texto que, sendo literatura, é “feito de lacunas, de buracos e de indeterminações.” (COMPAGNON, 2001, p. 150)

Com essas nuances, vemos serem resgatados dados da história de Moçambique e a denúncia do preconceito racial que os moçambicanos sofriam. Embora curto, o conto explicita várias questões relativas ao domínio português em terras moçambicanas:

“[...] alguns negros se juntavam no bairro dos brancos. À entrada da casa de Deus, havia mesmo uma aglomeração de camponeses que rodeava o canhão que ali se posicionara, desde que começara a guerra. Os homens empurravam o canhão para fora do pátio.” (COUTO, 2009, p. 90)

O trecho ressalta as distinções espaciais que demarcavam a vila, dividindo-a, como vários outros lugares, em bairros de brancos e lugares habitados por negros. O esquema de opressão fica indicado pela presença do canhão, símbolo do poderio bélico com que Portugal dominava os africanos.

O fato de o padre ter mandado que tirassem o canhão “para longe da igreja” (COUTO, 2009, p. 90) indica que sua posição na pequena vila era destoante da de indivíduos como Ludmilo Gomes. As estratégias de denúncia da realidade da época são fortalecidas por jogos de palavras conseguidos pelo uso das palavras que podem indicar que os negros, ao cumprirem a decisão do novo padre, registram outra intenção. Não por acaso, na cena da retirada do canhão do pátio da igreja, os negros que o empurram dizem: “não estamos a levar, [o canhão]. Só estamos a tirar lá para longe da igreja” (COUTO, 2009, p. 90). A troca do verbo levar por tirar permite pensar uma ação intencionalmente encaminhada pelas estratégias construídas pelo escritor para sugerir uma possível reação, em gestação, dentre os negros. É interessante perceber que, após ser sugerida uma possível resistência indicada pela possibilidade de lermos “a tirar lá” como “atirar lá”, o narrador fala de leopardos e mambas(serpentes), em uma clara demonstração de que os sentidos produzidos pelo texto estão na contramão dos percebidos por Ludmilo que diz: “obediência de negro de que vale se é sempre falsa?” (COUTO, 2009, p. 74).

A partir de uma característica bem comum à criatividade de Mia Couto de permear suas narrativas de suavidade e momentos de choque, o narrador após essa fala do personagem, relata a afirmativa do colonizador sobre a ignorância dos africanos, sua selvageria, acreditando que a presença da colonização fosse mesmo necessária como um ato que levaria aos “iletrados matos” a luz que lhes faltava (COUTO, 2009, p. 90). A visão do personagem sobre a África e seus habitantes é, como estamos ressaltando, indicada por uma série de estereótipos criados e mantidos pela colonização. Com essa estratégia, ficam ressaltadas, e criticadas, as imagens negativas construídas por uma visão de fora do continente sobre sua história, sua natureza e sobre seus habitantes. Ressaltamos o papel desempenhado pelas literaturas africanas, como a de Mia Couto, no desmanche dessas visões preconceituosas.

No conto, a referência a preconceitos que ainda justificam a manutenção de ideias de que os africanos vivem na escuridão do saber e sem religião mostram um desconhecimento das culturas de um continente que, apesar da grande taxa de analfabetismo, é rico em tradições orais e religiosas. Muitos povos seguem as crenças animistas, herdadas dos antepassados, mas há grande parcela da população que é cristã ou mulçumana. Esse fato fica demonstrado quando consultamos dados estatísticos de Moçambique, terra natal de Mia Couto, e verificamos que religiões de matriz africana ocupam 47,8% da população, o cristianismo 38,9% (católicos 31,4%, outros cristãos 7,5%), islamismo 13%, outras 0,3%, e o analfabetismo atinge 56,2% do povo.20

Acentuamos que a estratégia colonialista de exploração do negro e das riquezas africanas foi amparada na desconstrução do negro como ser humano. O convívio com os negros só poderia ser suportável em condições que rendiam dividendos ou prazeres. Na exploração das riquezas do país, o convívio social não era necessário, situação que está destacada no conto e que pode ser reforçada pela seguinte passagem: “já no interior da capela, Ludmilo suspirou aliviado, depois de passar pela aglomeração de negros. Na igrejinha estavam só brancos. Não era que ele fosse racista, insistia ele. Mas era sensível aos cheiros”. (COUTO, 2009, p. 90).

José Luís Cabaço (2011), em seu testemunho, nos ajuda a pensar que a segregação racial relatada no conto foi imposta em Moçambique, além disso, era

20

considerado natural os colonos brancos terem privilégios e espaços reservados a eles. Nem as crianças se viam livres da separação de raças e cores:

(...)a caminho das aulas, em minha bicicleta, vi um dos três colegas negros que frequentavam o único liceu da colônia correndo, bem atrasado para a primeira hora. Ofereci-lhe logicamente uma carona. Ao voltar para casa, terminada a escola, fui recebido com uma bofetada do familiar com quem morava, a única que me deu em todos os anos de convivência, porque alguém lhe telefonara dizendo que me vira carregando no quadro da bicicleta "um preto". Fiquei indignado: no meu entender, eu transportara simplesmente um colega e não "um preto", porque nesta designação depreciativa, compreendi nos anos sucessivos, eu incluía apenas os africanos que desempenhavam tarefas subordinadas. (CABAÇO, 2011, p. 215, grifo nosso)

Podemos construir um paralelo entre o depoimento de José Luís Cabaço e o comportamento do padre que ouviu a confissão do engenheiro, no conto em análise. Ambos não viam os pretos como seres diferentes e sim como seres humanos. No conto, o padre não perdoa as faltas confessadas por Ludmilo, dizendo: “Deus está cansado de ouvir. O demónio foi o demónio quem o escutou. E de lá, do meio do Inferno, é o demónio quem o está abençoando.” (COUTO, 2009, p. 93)

O desfecho bem construído e indicador da condenação do comportamento do personagem mostra que o engenheiro sente-se perturbado e “o coração, de um golpe, se confrangeu” ao ver que o novo padre era “retintamente negro”. (COUTO, 2009, p. 93)

Assim vemos que o conto, porque encena temas da história e de culturas de Moçambique, pode possibilitar a discussão de temas caros à realidade brasileira como o da democracia racial e do racismo não assumido.

Na perspectiva de aplicação da Lei nº 10.639/2003 com a utilização de textos presentes nos kits afro-brasileiros, passaremos à análise de mais um conto que trata do tema racial no livro O fio das missangas, embora o faça de um modo mais sutil e indireto.

Documentos relacionados