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De fato, não se pode menosprezar a força das estratégias de aproximação (mais ou menos conscientes) como apaziguadora de conflitos num universo intensamente híbrido como o serviço doméstico remunerado, promovendo a permanência daquilo que o antropólogo Roberto DaMatta chama, com muita propriedade, de nosso “idioma da conciliação” - onde todas as questões são tratadas no conforto da “casa” (categoria de análise sugerida por ele, em contraposição à coisa pública, ou à rua), num “clima” pessoal e caseiro, familiar e doméstico. Esse tipo de comportamento, afirma ele (DAMATTA, 1997, P. 17), “é igualmente utilizado quando se trata de romper impasses institucionais ou legais [...]”.

Elementos como afetividade e agrados extraordinários, típicos dos roteiros encobertos11, podem reforçar os mecanismos de apropriação, dominação e

exploração engendrados no setor. E embora esses mecanismos façam parte dos mundos do trabalho de modo geral, onde se instala frequentemente com certo entusiasmo a “cultura da dádiva como expressão política de nossa desigualdade social” (SALES, 1994, P. 01) – no serviço doméstico remunerado as relações

11 Para usar uma expressão utilizada por Brites (2000), ao aproximar-se da ideia de Hidden Script de James Scott. Seu contraponto é dado pelo “roteiro público”. Adiante voltaremos a essa estratégia de análise.

personalistas que estão na base da cultura do mando/subserviência são mais acentuadas pela própria natureza da atividade que mistura labuta e vida íntima familiar no cotidiano.

Sales (1994) chama a atenção para uma espécie de cidadania que estaria vinculada, de modo contraditório, à não-cidadania das pessoas livres e pobres. A essa modalidade - suturada politicamente ao modelo ideal e universal de cidadania que implica, de um lado, a ideia fundamental de indivíduo (e a ideologia do individualismo), e, de outro, regras universais (um sistema de leis que vale para todos em todo e qualquer espaço social) -, ela nomeou de “cidadania concedida”.

A “cidadania concedida” (uma contradição nos próprios termos, evidentemente), pilar de nossa cidadania, de acordo com a autora, é construída e viabilizada “pelos labirintos da dependência dos pobres dos favores do senhor territorial, que detinha o monopólio privado do mando, para poder usufruir dos direitos elementares da cidadania civil” (SALES, 1994, P. 02). E, ao contrário do que poderia sugerir um processo mais racionalista, a abolição da escravatura no Brasil não representou um rompimento com os mecanismos de patronagem e clientelismo típico do compromisso coronelista, mas perpetuou as bases sociais desse modo de inclusão.

Na compreensão de Freyre (1973, p. LXXV) a continuidade social da alteridade do mando/subserviência se baseia fortemente na compreensão e na empatia. Mas “um sorriso luminoso seria capaz de confundir e inverter o ideário político cidadão?” Para DaMatta (1979, p. 132):

Instituições de alto prestígio exercem o privilégio exclusivo de escolher os seus membros que ali se filiam por meio de um convite. O mesmo ocorre em outras instituições que, elegendo e convidando seus membros, podem hierarquizar e discriminar a totalidade social, sem ferir frontalmente a ideologia igualitária e a ideia de cidadania como algo nivelador.

Tomando como reflexão os caminhos da naturalização de uma espécie de servidão voluntária, subsidiária da conciliação e do mando, Sales (1994) explica que

o pedir para além do obedecer12 faz parte do cerne da cultura política da dádiva e

implica necessariamente um provedor forte. E na ausência de uma política efetivamente mais igualitária e democrática, o forte é representado por aquele que, em seu domínio privado, é capaz de atender as necessidades mais básicas de existência das pessoas socialmente mais vulneráveis. Historicamente, isso significa que “os direitos civis necessários à liberdade individual - de ir e vir, de justiça, de direito à propriedade, direito ao trabalho – foram outorgados ao homem livre, durante e depois da ordem escravocrata, mediante primeiramente à concessão dos senhores de terra” (SALES, 1994, P. 05).

Os trabalhos sobre o tema serviço doméstico remunerado, que privilegiaram abordagens históricas (PEREIRA, 2012; GRAHAM, 1992; SANTOS, 1994, CASA GRANDE, 2008; para citar alguns), foram fundamentais não só para a manutenção da memória como para lançar luzes sobre uma herança escravista, inscrita nos níveis mais profundos do pensamento humano – num imaginário alimentado por longos anos de regime servil. Além do que, dissemos noutro lugar, a respeito dessas abordagens, os estudos de acentuado viés histórico também se esforçaram para demonstrar a origem de “normativas ocultas” que permanecem regendo aspectos da vida social e da organização atual do emprego doméstico.

Presentes no nível das sutilezas ideológicas, as “normativas ocultas” podem contribuir para explicar em parte o menosprezo pelo trabalho braçal em nossa sociedade, a resistência temporal em transformar uma atividade tão antiga quanto disseminada em profissão amplamente regulamentada e o horror à impessoalidade (HOLANDA, 2012; DAMATTA, 1997) que permite consagrar os laços duradouros e “felizes” da realização máxima do dom (MAUSS, 2003) nas relações de trabalho, sobretudo do trabalho doméstico.

Portanto, o estigma que a profissão carrega, bem como outras atividades marcadas pela “vergonha do uso das mãos” (FRANCO, 1997) guarda seguramente

12 A autora se refere à subserviência e não obediência de modo a redefinir o outro polo da alteridade em termos do pedir, “para além do obedecer”. O mando, de modo geral, está mais associado ao seu complemento natural expresso na obediência. Entendemos que a aplicação do termo em seus expostos dá sentido a uma espécie de “servidão voluntária” construída e sustentada pela cultura da dádiva que, em suas palavras, é expressão política de nossa desigualdade social.

certo grau de relação com esse passado. Porém não descarreguemos toda a responsabilidade dos obstáculos à inovação ou ao apelo das demandas modernizadoras que rejeita tudo aquilo que à nossa mente civilizada parece regressivo, apenas nos servilismos inerentes ao regime escravocrata. O nosso apego à “cordialidade”, em oposição à frieza dos processos burocráticos, herança ibérica, de acordo com DaMatta (1987), tem parte nesse processo e “representa a nossa impossibilidade de atingir uma ordenação impessoal que permita a ruptura com os padrões privatistas e particularistas dominantes no sistema e na família patriarcal” (SALES, 1994). Os traços da gramática personalista são claramente percebidos nas relações entre patrões/empregadas domésticas, mas, como bem aponta a autora, qualquer um de nós é capaz de rememorar inúmeras situações de nosso cotidiano em que as informalidades se sobrepõem às impessoalidades, mesmo em contextos onde essas últimas estão claramente colocadas como conduta padrão.

As fronteiras porosas são compreendidas como vantagens e externalizadas em expressões nas vozes da maioria das trabalhadoras entrevistadas para este estudo, no Recife e em Porto Alegre, quando dizem que essa ou aquela patroa “não tem frescura”, “é do tipo de gente que fala como a gente”, “é mesmo que a gente”, “é pessoa simples”– ou seja, os melhores patrões aos olhos de nossas interlocutoras são aqueles que se apresentam como mais desprendidos com relação aos formalismos e convencionalismos sociais. E é nesse universo híbrido e ambivalente, que as vantagens dos dois mundos, formal e informal, são alternadamente exaltadas pelos polos da relação, a exemplo das concessões extras, não previstas ou de um direito rigorosamente cumprido.

Acontece que a cultura política da dádiva só se instala amplamente quando os direitos básicos de cidadania não são garantidos pelo Estado. É um esquema que sobreviveu à abolição da escravatura e manifesta-se de uma forma peculiar no compromisso coronelista, até os dias de hoje. Esse papel “tutelar subsidiário” (SALES, 1994), portanto, só se desenvolver fortemente na ausência de políticas públicas eficientes e democráticas, quando o sujeito mais vulnerável encontra na dádiva do forte, sombra e agasalho. Longe de ser um processo libertário, o amparo personalista perpetua desigualdades que estão nas bases da dominação. Essa é a visão predominante entre os estudiosos da realidade brasileira.

O Fetiche da igualdade tão típico do ideal de “democracia racial de Freyre” (FREYRE, 1973), mediador de nossa relação de classe, tem contribuído para um aparente encurtamento do fosso social que marca as nossas organizações. “A aparência do encurtamento das distâncias sociais por meio de nossa informalidade no convívio tem um fundo emotivo que permeia mesmo aquelas relações que no fundo seriam mais caracteristicamente impessoais” (SALES, 1994, P. 11). Este horror ao distanciamento está na base de nossa cultura, explica Holanda (1984), e de nosso apego ao compadrio, que na visão deste autor não corresponde a um perfil adequado para a vida civilizada numa sociedade democrática.

De fato, como dissemos antes, a ilusão da proximidade entre sujeitos de classes sociais muito distintas estabelecida em parte pela exaltação da cordialidade, expressa na ideia de Holanda (1984), representa um elemento eficiente na promoção da conciliação ao invés do conflito que poderia engendrar mudanças mais profundas. Entretanto, o confronto direto, em condições de larga desigualdade, é, muitas vezes, percebido pelo fraco como um caminho perigoso ou, no mínimo, ineficiente, embora a Justiça do Trabalho seja, muitas vezes, considerada eficiente ou mesmo excessiva entre nós, na proteção oferecida ao trabalhador.

Nas relações que se desenvolvem no serviço doméstico remunerado no país, dissemos em trabalho anterior13 que compromissos afetivos e acordos pautados pelos

laços de amizades podem inibir, inclusive, inciativas como denúncias, colaborando para um contrato duradouro, mesmo quando realizado sob grave exploração e muita vulnerabilidade, a exemplo do abuso praticado por parte dos contratantes, com relação à carga horária de trabalho. O apelo à intimidade traz consigo uma efetiva armadilha moral uma vez que pode calar os conflitos fundamentais à mudança da realidade.

No conjunto dos componentes de nosso código cultural, prevalecem no setor valores como a confiança e a amizade (aquele “poder contar a qualquer hora”, como nos disse uma empregadora em Porto Alegre), do que a rigidez das regras, se

13 Dissertação de mestrado defendida pela a autora em 2012 sob o título “Herança Escravocrata e Trabalho Doméstico Remunerado”.

estabelecermos aproximações entre essas duas instâncias de organização social do trabalho (formal e informal). Embora não constitua concessão possível, para nossas interlocutoras, a abdicação de qualquer direito formalmente prescrito - as negociações extraordinárias, que nem sempre levam à plena satisfação das partes (obviamente os sujeitos mais vulneráveis arcam com os prejuízos), são de modo geral preferidas ao sentimento de culpa provocado pela ideia de deslealdade ou perda da amizade. Esses roteiros representam aquilo que fundamenta a relação num setor atípico e ambivalente como o emprego doméstico e o que, ao mesmo tempo, constitui a força de sua “estabilidade”.

Podemos afirmar com base nos depoimentos de nossas interlocutoras que a jornada de trabalho (agora estabelecida em até 44 horas semanais), foi e continua sendo, eventualmente, objeto de negociação. Nos contratos de trabalho mais antigos, inclusive, o pagamento de horas extras (previsto em lei) não raro é substituído por transações particulares como “um dinheirinho” extra, uma folga extra ou um “presente extra”, na medida em que o/a patrão/patroa tiver condições de efetuar a compensação. De todo modo, o próprio controle registro de carga horária diária de trabalho tem sido reconhecido como um dos dispositivos mais difíceis de incorporar, de acordo com as patroas ouvidas. Retomaremos o assunto mais adiante, em capítulo em que apresentamos os resultados de nossos achados empíricos.

Por ora, é importante voltarmos ao trabalho expressivo de Ávila (2010) sobre o tempo, intitulado: O Tempo do Trabalho das Empregadas Domésticas: tensões entre dominação, exploração e resistência. As linhas desenvolvidas pela autora partem do pressuposto de que as jornadas de trabalho remunerado e não remunerado que caracterizam a experiência de trabalho da grande maioria das mulheres produzem obstáculos a outras vivências como o lazer, a formação em outra profissão, a participação política em virtude da sobrecarga produzida pela tarefa (ÁVILA, 2010, P.101):

[...] para responder às exigências e necessidades das duas esferas, produtivas e reprodutivas; a socialização das dificuldades enfrentadas na vida cotidiana foram transitando dos dilemas pessoais para os problemas de coletivos de trabalhadoras, das impossibilidades profissionais criadas pela sobrecarga de responsabilidades [...]

Contando com pesquisa teórica e empírica, além de uma vasta experiência como pesquisadora e militante feminista, a autora nos mostra como a questão do tempo é estratégica para a organização da categoria das empregadas domésticas evidenciando a importância do tempo social na garantia de uma cidadania almejada e como elemento fundamental na construção de forças e na organização de formas de resistências E alerta “os tempos de trabalho doméstico (remunerado e não remunerado) para atender aos requerimentos da sustentação e reprodução da vida humana, vão solapando o sentido da vida cotidiana como um tempo de criação e desenvolvimento social” (ÁVILA, 2010, P. 386).

No caso dos arranjos temporais e funcionais do trabalho doméstico remunerado, muito nos preocupa é o “desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo” (HOLANDA, 1984, p. 109). Sua principal normatividade é derivada do princípio de reciprocidade, no intercâmbio de favores, eficientes na construção e manutenção de hierarquias e das relações dessas últimas com a exploração desmedida.

Entretanto, se as regras formais são constantemente violadas, a complexidade das tramas desenvolvidas no trabalho doméstico demonstra como esses mecanismos representam aspectos positivos e negativos do mesmo fato, embora pareça verdadeiro paradoxo para uma agenda modernizadora que, entre outras coisas, exalta a autonomia. As variações de percepção e entendimento daquilo que pode constituir vantagens e desvantagens na profissão, levando em conta, sobretudo, o ponto de vista das trabalhadoras domésticas, se amontoam num terreno movediço heterogêneo e muito resistente a generalizações.

E é muito mais neste sentido que Brites (2000) procura estabelecer uma discussão alternativa sobre formas de participação e estratégias conscientes (não alienadas) de sobrevivências num rol limitado de possibilidades reais e imediatas. Em meu ponto de vista, a sua originalidade está precisamente em introduzir no debate mais convencional sobre o tema, as nuances positivas dos arranjos personalistas presentes no serviço doméstico quando comparado a outras modalidades de trabalho assalariado. Sem deixar de perceber e apresentar em larga e profunda análise a violência da desigualdade em sua discussão, a antropóloga se esforça por demonstrar

que existem dinâmicas familiares próprias dos grupos populares, nas quais o serviço doméstico acaba por mostrar-se mais compatível do que outras formas de trabalho.

Distante dos investimentos que privilegiavam categorias de análise como alienação e conscientização dos sujeitos parte da mão de obra empregada num mercado que engendra formas conservadoras de exploração/dominação, a antropóloga se propôs a inventariar e medir os elementos de uma situação complexa onde as concessões, realizadas por parte das trabalhadoras, refletiam uma ordem coerente com os princípios de uma “complementaridade estratificada”. Essa estratégia de sobrevivência justificou à retomada do emprego doméstico por duas de nossas interlocutoras, depois de períodos de experiência em outro setor, como demonstraremos adiante.

Clarice Lispector, em “Por detrás da devoção”, denuncia os antagonismos que assinalam a relação patroa-empregada, apresentando-nos Rosa, Jandira, Aninha, Maria Del Carmem, Eremita, Teresinha e Ivone. Numa das crônicas, os lugares nos ritos cotidiano são invertidos e a patroa se imagina servindo as empregadas. Em outra história, Lispector (patroa) declara seu espanto ao descobrir o quarto de depósitos transformado em dormitório pela empregada “arrumado à sua maneira, numa ousadia de proprietária [...]”. Em “O Lustre” a inveja e a cobiça são colocadas no centro da trama. Tudo por causa do vestido branco de Virgínia, a patroa. Com efeito, a cobiça, a inveja, a raiva e frustrações são os elementos predominantes nos “roteiros encobertos” em “Por Trás da Devoção”. Sentimentos coerentes com as pequenas contravenções e com as chacotas com os patrões sussurradas entre os criados. Uma forma de “rebeldia como resistência”(Brites, 2000).

É na fenda instalada entre os limites aparentemente estabelecidos e aquilo que se pode reverter que se manifestam a inventividade e o poder de agência dos subalternos. “Trata-se de ações e atos ad hoc, difíceis de capturar ou enxergar sua costura, pois são estabelecidas nas dobras da própria dominação” (BRITES, 2000, P. 26). Embora essas atividades na maioria das vezes não ameacem a estrutura hierárquica de modo direto, ignorar as tramas cotidianas do emprego doméstico é uma maneira de perder de vista um esquema criativo e particular de luta, sobrevivência e resistência, lembra-nos a pesquisadora.

Os rituais de resistências que se desenvolvem atrás dos palcos representam essencialmente uma espécie de autoafirmação e definições próprias de um “novo ofício”, de um código moral não formulado, mas poderoso; de controle relativo dos usos do tempo, de modos independentes de realizar tarefas. É, em última análise, uma maneira de inverter, embora temporariamente, os protagonismos na arena de poder.

As formas cotidianas de resistência são descritas por Scott (2000) como a dissimulação, a falsa submissão, a fofoca, a lentidão nas tarefas, a ignorância fingida, entre outras armas dessa natureza, que não exigem planejamento e evitam o confronto direto com a autoridade. Entre o protocolo oficial de conduta e a sombra social (“cidadania concedida”), os sujeitos subalternos promovem por meio daquelas resistências imediatamente possíveis, ato crítico que, de modo relativo, está intimamente ligado ao exercício da autonomia e da individualidade nos espaços privados.

Quem se pensa como sendo socialmente menor, em certos momentos, sente- se como um transgressor imbuído de poder, embora continue preso a posições socialmente vistas como subordinadas. É justamente na tensão, o eterno desconforto, que repousam os objetivos divergentes da agenda modernizadora exaltada publicamente e as vantagens dos mundos informais percebidas nos enfrentamentos cotidianos do mundo particular, com modos criativos de intervenção (DAMATTA, 1997; BRITES, 2000; PEREIRA, 2010). Os critérios de sucesso de um ou de outro mundo (formal ou informal) não carregam, de imediato, o mesmo peso moral. Pelo contrário, entre os sujeitos implicados essas normas particulares são circunstanciais, carregam múltiplos sentidos de acordo com os testemunhos rotineiros sobre o trabalho doméstico remunerado.