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Chego ao sindicato de Porto Alegre, na primeira vez, em uma manhã de dezembro de 2012 e, logo de início, divido o elevador com duas trabalhadoras. Uma delas, conhecida do ascensorista, responde a uma provocação bem humorada: “sim seu Sergio. aqui de novo. Quem sabe passo o fim de ano tomando champanhe com o senhor?”. Fiquei sabendo no fim do dia que era a terceira vez que a patroa de Manuela faltava à sessão que poderia levar a um acordo no sindicato.

Ao entrar na repartição, fui surpreendida com cartazes nas paredes informando a proibição de entrevistas. Tensa, pensei no que poderia ter motivado esses avisos afixados na porta de entrada. Aliás, ali se reuniam sob um mesmo teto, toda a tensão típica dos descompassos promovidos entre o prescrito, o real e o desejável. Aquela estrutura pouco compartimentada abrigava uma sala maior, a da presidenta, uma menor, do advogado, e uma sala, cheia de cadeiras, onde as trabalhadoras aguardavam com suas fichas de atendimento nas mãos.

Tanto em Porto Alegre quanto no Recife o espaço sindical opera com base em três princípios: a lógica da solidariedade, a lógica da hierarquia e a lógica histórica da mudança. A lógica da hierarquia informa que não é preciso prova especial para mostrar que os bastidores do serviço doméstico remunerado é o modelo ideal do conflito de interesses e de explorações desmedidas. A estratégia das (os) representantes dessas repartições é suavizar os males da rotina do trabalhador, “o fraco”, a partir das leis e das novas conquistas regulamentadas. Aí repousam a lógica da solidariedade e da mudança. Ouvia, com frequência, da salinha de espera, a voz da Presidente: “não rebobina o filme, isso já passou, não pode mais sobrecarregar (a trabalhadora) sem pagar horas extras [...]”. Ou “não pode parcelar férias, não pode pagar menos do que o piso [...]”.

A trajetória de S., hoje aos quarenta e oito anos de idade, Presidenta do sindicato de Porto Alegre, não foge à regra das mulheres ocupadas no setor. Ela começou a trabalhar aos doze anos, como babá, na cidade de Pelotas, onde foi criada. “Quem me colocou lá foi minha mãe, e ela ficava com o dinheiro que pagavam para comprar coisas para casa e para os filhos”. Quando tinha quinze anos de idade, sua família se mudou para Porto Alegre onde continuou trabalhando como doméstica nas casas de família, ora como mensalista, ora como diarista, a depender das necessidades pessoais e da melhor oferta.

A presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas nesta cidade é contratada como empregada doméstica pelo advogado da repartição. “Sou cedida para o sindicato”. Sobre a participação sindical, conta que procurou o sindicato para pedir esclarecimentos, no início da década de 1990. A partir daí, não se afastou mais. “Ele (o sindicato) estava começando, antes era apenas uma associação, mas era tudo que tínhamos, fui conhecer os meus direitos aqui, eu não sabia de nada, procurei (o sindicato) porque tinha sido agredida fisicamente pela minha patroa e a queixa se transformou em ação judicial”.

O patrão atual, que naquela época já era membro da Associação, mais tarde a convidou para fazer parte da instituição. A presidente diz se sentir realizada por ter seu trabalho reconhecido e por ter ajudado a “fazer justiça na vida de muitas mulheres exploradas e agredidas fisicamente e psicologicamente”. S. é casada, tem filhos (as) e gosta de reunir a família, nas horas de lazer, além de navegar na internet, um robe: “adoro o Face, tu tens Face? Me adiciona!”. As atividades no Sindicato tiveram sensível aumento depois da vigência da nova Lei, inclusive porque aumentaram também a procura, por parte de patrões, (patroas) por orientação. “Eles (patrões) chegam aflitos, com medo de cometer algum erro, estão perdidos, não sabem ainda o que mudou [...]”.

No setor, de modo geral, o tempo é cuidadosamente calculado pelas trabalhadoras, tanto para efeitos de pagamentos, quanto para o planejamento de outras atividades como os “bicos” e o lazer. A administração primorosa das horas está ligada, provavelmente, à inexistência de tempo marcado nos acordos anteriores aos novos dispositivos, o que frequentemente levava a cargas horárias muito longas e desproporcionais em relação àquelas estabelecidas para os demais trabalhadores.

As concessões (o tempo extra de atividade eventualmente não considerado pelas participantes) incluem-se no vasto conjunto de dádivas circulantes, fundamental para a boa relação entre as partes. As trocas extraordinárias no mundo do trabalho doméstico remunerado é, talvez, em certo sentido, a moeda de maior valor. Corresponde tanto aquilo que pode remediar a escassez material, quanto à estratégia de flexibilidade que funda a amizade. Em outras palavras, a força da reciprocidade (como acontece em toda relação humana) tem efeito pacificador.

Entretanto, o tempo intensamente rotinizado e, muitas vezes, ampliado, desgasta, e há muito vem se tornado arena central de disputas e negociações. Antes da Lei Complementar 150/2015 que ampliou os direitos dos (as) trabalhadores (as) domésticos (as), as queixas sobre o tempo de atividade constituíam uma das principais pautas das reinvindicações. A famosa frase “com hora para pegar e sem hora para largar” foi repetida por muitas participantes, desde os primeiros contatos estabelecidos no ano de 2011, ilustrando alternadamente resignação e resistência.

A resistência saltou das palavras de C., no Recife, naquele momento, como explosão: “não fico de jeito nenhum, só trabalho de segunda à sexta, e aí eu explico que preciso largar um pouco antes das cinco (da tarde) pra pegar meu filho na creche!”. Desempregada no momento da primeira entrevista, realizada em 2011, hoje (2016), C. completa quase cinco anos como profissional autônoma, preparando e vendendo marmitas no bairro em que mora, na zona norte da cidade. “Bem melhor, mais interessante e faço mais dinheiro, eu gosto e eu sei cozinhar, de forno a fogão”, analisa.

C. diz não se preocupar com as questões dos direitos garantidos pelo vínculo formal que gozava como mensalista, porque está sempre trabalhando como diarista ou folguista substituindo outras colegas, de forma regular (algumas vezes por semana) e, por isso, recolhe o próprio INSS. “Faço (o recolhimento) porque me preocupo, tenho que pensar em mim e no meu filho, e se eu ficar doente?”. Na ausência de uma proposta que atenda às necessidades da trabalhadora, a autonomia experimentada ou o rompimento com o padrão disciplinar, que marcou a maioria das relações de trabalho vivenciadas, parecem compensar a abdicação de outras garantias previstas, como férias e indenizações compensatórias em caso de demissão sem justa causa, por exemplo.

A relativa perda de vantagens extraordinárias, já que a intimidade que coloca em marcha a circulação de bens simbólicos e materiais, demanda maior tempo em cada casa, para a profissional autônoma é compensada pelo sentimento de autonomia, sobretudo quando há o entendimento de que a benevolência só existe na medida em que convém aos interesses daquele que manda. Noutras palavras, quando as negociações não se mantêm, alternadamente, de ambos os lados, e as profissionais são retiradas do jogo cotidiano de barganha e poder.

Embora, como discuto ao longo do texto, as trabalhadoras reconheçam o caráter coercitivo das transações, elas são aceitas pela necessidade, tanto material quanto simbólica, de complementaridade de renda e de participação efetiva nas tramas encobertas. “Ou a gente se entende ou a gente se acerta”, no dizer de muitas trabalhadoras ouvidas, indicava não apenas uma boa relação de trabalho, a intimidade, mas uma ideia de “transação” possibilitada pela força invertida, pela força do fraco (SCOTT, 2002).

Nas duas cidades, Porto Alegre e Recife, encontramos algumas vozes desiludidas expressando a vontade de mudança de profissão. Isso aconteceu, não por coincidência, principalmente nos Sindicatos. O espaço de tensão por excelência. As queixas mais frequentes estavam associadas a agressões morais, ao não cumprimento das formalidades e às suspeitas de desonestidade por parte dos patrões. De um modo ou de outro, restavam implícitos nas frustrações, o inconformismo insuperável com a intimidade violada ou a fragilidade da amizade: “ela (a patroa) me conhece há muito tempo, como é que pode desconfiar de mim agora? Vai ter que provar o que diz na Justiça e aquela amizade nunca mais vai voltar, nem se ela me pedir perdão de joelhos”. Desabafou M., no Sindicato de Porto Alegre.