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A ideia do registro fotográfico em minha pesquisa de campo veio depois das duas primeiras entrevistas colhidas ainda no ano de 2011, quando realizava as primeiras incursões práticas no terreno do serviço doméstico remunerado. Naquela época, precisei reencontrar essas participantes para sugerir os registros. O fato é que as elaborações realizadas a partir dos depoimentos evocavam imagens, manifestavam, como um imperativo, a necessidade de “personificar as oralidades”, para utilizar as palavras de Souza (2012), e capturar fragmentos da realidade. Portanto, investi, sem dúvida, num esforço para tentar suturar a narrativa à dimensão palpável da imagem.

Os primeiros contatos realizados, tanto no Recife quanto em Porto Alegre, iniciaram-se a partir de algumas indicações. Havia entre as participantes, trabalhadoras domésticas já conhecidas que representaram verdadeiros elos entre mim e as demais profissionais. No Recife, como ponto de partida, contei com a amizade e a disposição de C, R, M. e L. Já em Porto Alegre, cidade que, por motivos familiares, visito com certa frequência desde o ano de 2004, eu fui imensamente auxiliada por O. e N. para a realização das poucas entrevistas colhidas fora do Sindicato.

Fotografia 6 - repartição do Sindicato das trabalhadoras doméstica de Porto Alegre depois de reorganização.

Fotografia cedida.

A partir, então, de uma teia de relações, tecida pelas primeiras indicações, passei a manter contato com as profissionais sempre que possível. A ideia era aguardar pelo menos o segundo encontro, para solicitar permissão para os registros (de voz e de imagem). Esse cuidado significava para mim respeito e estratégia ao mesmo tempo, uma vez que o convívio mínimo poderia representar a aproximação necessária para a viabilização de um encontro mais espontâneo e de um diálogo mais aberto e produtivo.

Obviamente as indicações foram fundamentais para esse propósito, uma vez que o gesto incentivava a confiança. De certa forma, eu chegava ao encontro com minhas interlocutoras como uma “quase conhecida” ou “quase desconhecida”, já que eu havia sido previamente anunciada por uma de suas colegas de profissão. Também fazia parte dos princípios éticos informar com clareza a todas as profissionais, com as quais estabeleci contato, as minhas intenções presentes e futuras.

Entretanto, não pude cumprir de modo absoluto todo o plano previamente esboçado. Acontece que o tempo livre dessas profissionais, tão bem discutido por Ávila (2010), é de modo geral muito diminuto. Isso não se deve apenas à carga horária de trabalho, mas aos deslocamentos que essas profissionais precisam enfrentar diariamente para trabalhar. E quase todas as participantes moravam longe e apanhavam cerca de quatro a seis conduções por dia, para se dirigirem de suas casas às casas dos patrões.

Nos sindicatos da categoria, por exemplo, localizados no centro das duas cidades – pude estabelecer diálogos de tempo extenso com as profissionais contatadas, mas construídos num único dia, em períodos diferentes, com cada uma das trabalhadoras. A maior parte delas, reclamando direitos, encontrava-se naquele momento desempregada ou estava em situação de transição: mudando de profissão ou de patrões. Isso ocorreu principalmente em Porto Alegre, onde o espaço sindical representou o meu campo, propriamente dito, no que concerne às interlocuções estabelecidas na cidade. A grande maioria dos encontros realizados.

Os lócus institucionais (sindicatos da categoria) colocaram em movimento de consciência outros aspectos do mundo do emprego doméstico. O peso do rompimento de amizades e de transparência, acordos tácitos entre os sujeitos implicados. Tanto as trabalhadoras domésticas, quanto algumas patroas (em número visivelmente menor) procuravam os sindicatos para o cálculo frio das contas, para exigir a formalização daquilo que, muitas vezes deliberadamente, não havia sido cumprido, para superar o sentimento moral de traição e deslealdade.

Após observação dos lugares de conciliação e justiça, saí dali convencida de que as afetividades só se realizam integralmente na “ilusão” das brechas dos roteiros públicos e na repulsa pelo distanciamento explicado por Holanda (2013). É impossível saber inteiramente quando a sensação permanente de ambiguidade levará ao

rompimento ou ao estreitamento dos laços, visto que desta balança notoriamente polarizada não se pode esperar o equilíbrio infinito, embora nem sempre a atitude daquele que transborda os limites pessoais do aceitável, conduza à situação “extrema” das queixas formalizadas.

Nos roteiros encobertos muitas formas de contravenções são praticadas, de acordo com os relatos: lentidão nas tarefas, faltas deliberadas, falsa ignorância a respeito de certos afazeres, entre outros. Contravenções com gosto de rebeldia, muitas vezes realizadas sob os olhos fingidos dos chefes, figuram entre as estratégias de resistência (SCOTT, 1990). Trata-se de um conjunto de ações relativamente esperado, apesar de não declaradas pelas partes. E no limite do tolerável, aceito como condição favorável ao equilíbrio da boa relação entre trabalhadoras domésticas e patroas/patrões.

Mais adiante, voltaremos a esse aspecto, entre outros observados. Entretanto, a lição que permanece é que, de modo geral, condenam-se por motivos semelhantes, os âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes.

Fotografia 7 - V. em expediente como zeladora no prédio onde realiza diárias para moradores. Porto Alegre. Janeiro/2015.

Fonte: elaboração própria.

Os registros realizados nos sindicatos da categoria soam para mim como ponto “final” de uma trajetória de seres em relação, onde mágoas, rancor, atos de ceder e

desejos interrompidos são ressignificados num momento de construção simbólica de uma vida comum, assinalada pela profissão.

Por outro lado, o estranhamento do outro (na visão das trabalhadoras) gerava desconforto. Muitos foram os relatos que se iniciaram com frases do tipo: “tentei um acordo antes, não precisava estar aqui”, demonstrando a apreensão com o esfacelamento dos laços, mas também certa desilusão com a atividade, intensamente marcada pela informalidade, o que amplificava ainda mais a contradição dos sentimentos naqueles espaços.