• Nenhum resultado encontrado

O que o fotógrafo faz ao produzir uma fotografia é narrar um momento da vida através da imagem, eternizando-o historicamente, como um escritor o faria utilizando as palavras. A angústia produzida pela perda, que acompanha toda vida humana, foi considerada desde a antiguidade e é muito bem ilustrada no mito de Theuth26, no qual

esse deus apresenta ao rei egípcio Thamous a escritura, como solução definitiva para o risco do esquecimento.

Em minha experiência como pesquisadora recorri, no princípio, ao registro fotográfico com a firme intenção de “eternizar” o encontro entre mim e minhas interlocutoras e obter material para pensar, reler e ordenar o universo escolhido como tema: o mundo do trabalho doméstico remunerado. Candau (2014) destaca que a primeira regra tomista relativa ao domínio de uma boa memória, consiste em dispor em uma ordem determinada, as coisas das quais se quer lembrar.

Uma orientação específica no tempo também aproxima objeto, pesquisador e leitor já que o “passado”, ou o encontro etnográfico, fica “parado”, à espera de toda apreciação. A utilização dos registros fotográficos em nosso trabalho está relacionada, primordialmente, a essa qualidade representativa atribuída às imagens e à memória: a capacidade de fazer aflorar o sentimento de “retorno”.

Concluída as pesquisas de campo, a evocação mais acessível das experiências que marcaram essa etapa do estudo foi viabilizada pelas imagens captadas. Para mim, naquele momento, elas representaram a melhor forma de colocar o passado em ordem, conduzida por um processo de imaginação criativa capaz de “escolher” entre lembrar e esquecer, pois como defende Bachelard (citado em

26 Um dos deuses antigos do Egito cujo símbolo sagrado era a ave a que chamam íbis. Diz-se que foi ele o primeiro a descobrir a ciência do número e do cálculo, a geometria e a astronomia, também o jogo das damas e o dos dados e, ainda por cima, a escrita

Candau, 2014), nossa alma não guarda a fiel lembrança, mas os acontecimentos decisivos.

Para organizar as peças colhidas numa experiência coerente, dispus as imagens coletadas (todas elas) em ordem cronológica. Posteriormente passei a apreciá-las de modo que o poder das imagens restaurava os caminhos percorridos por mim e o encontro com as participantes. Ocorre que evocar a ligação entre imagens e oralidades, rememorando os relatos colhidos, cada um deles, lembrando-me dos cenários, sons do ambiente, emoções - mostrou-se um exercício eficiente para a escrita, fonte valiosa de inspiração.

Fotografia 2 – J., 50 anos, em passeio com o cachorro da patroa. Uma de suas obrigações diárias. Porto Alegre. Agosto/2014.

Fonte: elaboração própria

O processo sentimental de recordação vem sempre renovado a cada evocação e impulsiona a escrita colocando em movimento aspectos por vezes esquecidos do

encontro. Como uma nova recomposição, cada fragmento “suturado” (imagens e oralidades) dialoga com a totalidade do campo, através do agente da memória. Os tempos e os cenários ficam prisioneiros do eterno, remetendo a códigos simbólicos daquela totalidade: hierarquias, vestimentas, objetos, comportamentos.

Fotografia 3 - R., nos recebendo para a entrevista concedida num bairro de classe média do Recife. Maio/2011

Fonte: elaboração própria.

As fotos, como outros modos de fazer, possuem as marcas de quem registra, mas também ganham a singularidade daqueles que estabeleceram conexões com

elas, seja sugerindo planos de tomadas para o registro, seja participando como sujeito fotografado, selecionando as imagens a serem expostas depois de uma sessão ou apreciando-as mais tarde, como “expectador”, já que o objeto de estudo e as investidas do pesquisador condicionam uma determinada forma de construção de texto em que envolve antropólogo-informante-leitor, como observa Peirano (1995).

A maioria das trabalhadoras acenou positivamente, quando perguntadas se permitiriam que eu as fotografasse e para a publicação de suas imagens neste trabalho, participaram ativamente do processo. Convidadas a organizar os registros numa sequência lógica de ordem de prioridade, as entrevistadas foram apontando suas fotografias “favoritas” e descartando aquelas que não ficaram agradáveis a seus olhos, por motivos, quase invariavelmente, relacionados à dimensão estética.

Por isso, o exercício de desfazer-me das fotografias indesejadas era também uma forma de conhecimento. Informava gostos, interesses pessoais, ideias sobre o trabalho e o desemprego. Foi assim que em 2011, por exemplo, uma das entrevistadas no Recife me contou sobre o peso da atividade na aparência pessoal. Descartando o primeiro registro, C. pediu licença para trocar de roupa e arrumar o cabelo, “não gostei”, disse-me ela naquela ocasião: “estou com cara de desempregada mesmo”. Referia-se, esclareceu, à aparência desleixada. C., então, pediu-me licença e poucos minutos depois voltou sorridente, de cabelos soltos e calça jeans: “agora sim, pode tirar a foto”.

Fotografia 4 - C. em sua casa no Recife. Julho/2011.

Fonte: elaboração própria.

O Mesmo se passou com outra participante. Depois de muitos anos trabalhando como empregada doméstica, S. teve a oportunidade de fazer um curso de cabeleireira, sonho antigo. Passados alguns anos, depois de um período curto em que exerceu a nova profissão em salões de beleza de outros proprietários, abriu seu próprio estabelecimento. Conversei com S. algumas vezes em períodos de 2013 e 2014. Estive com S. novamente em maio deste ano (2015) e nesta ocasião, lembrou- me de uma pendência: precisava trocar a foto registrada um ano antes do salão, realizada por ocasião de sua entrevista. O motivo? Esclareceu preocupada e cuidadosa: “estava muito bagunçado naquele dia [...]”.

Alguns momentos foram descartados e substituídos, portanto, por causa de uma espécie de censura pessoal que interrompeu a emergência indesejável de “segredos”. A condição de desemprego que se refletia numa “aparência desleixada”,

a “bagunça” pontual de um estabelecimento que recebe clientes numa pesada rotina diária de trabalho.

Fotografia 5 - O salão de S., ex-empregada doméstica, num bairro do Recife. Compondo também o espaço, seus gatos de estimação. Maio/ 2015.

Fonte: elaboração própria.

Revisitar cada encontro por meio das fotografias (apreciando-as, separando- as, “descartando-as”), despertou-me a saudade dos momentos marcados, sobretudo, pela boa recepção. Ao refletir sobre a memória coletiva de um grupo de aposentados da mineração do carvão e seus familiares, Eckert (1997) nos mostra como a comunhão em diversas formas de interação podem negar a volatilização do tempo por meio das lembranças reproduzidas e idealizadas no presente. Há uma clara consciência do grupo, na tentativa de “controlar” o tempo, reelaborando o passado no presente.

Uma relação de continuidade igualmente semelhante é fornecida pelas imagens. A separação (depois do encontro) não interrompe a continuidade, já que se pode, ensina Mauss (2006, p. 100), “reconstituir ou suscitar um todo com o auxílio de uma de suas partes”, em sua reflexão sobre a magia, afirmando que a essência das

coisas está tanto em seus fragmentos quanto em seu conjunto (ou no todo). As imagens têm também algo de mágico. Em nossas pesquisas, elas trouxeram para os dias atuais a transferência de sentimentos e reforçaram aquela força: o vínculo da parte com o todo, perpetuando o encontro. A imagem, em suma, é definida por sua capacidade de “tornar presente uma pessoa” (MAUSS, 2006, p. 104) ou um conjunto de recordações.

Pude guardar um mundo marcado por profundas ambiguidades, como é a fotografia, que além de congelar a flecha do tempo, como pontua Prigogine (1996), permite a todos, que assim desejarem, estudar o campo hoje cristalizado por mim, prova de que a fotografia notadamente conhecida como recurso artístico, também pode servir como documento histórico e elemento reflexivo sobre a condição humana, que talvez, como aponta Lévi-Strauss, seja a tarefa maior da antropologia.

É preciso lembrar que a dimensão imagética nunca esteve inteiramente ausente na antropologia, como atestam os trabalhos de autores clássicos como Boas, Malinowski e o próprio Lévi-Strauss, por exemplo. Entretanto hoje, especialmente com relação à etnografia, os registros fotográficos e audiovisuais representam mais que uma questão de estilo, mas “o cenário no qual as atividades diárias, os atores sociais e o contexto sociocultural são articulados e vividos” (BITTENCOURT, 1998, p. 199). Além disso, ela, a fotografia, pode estimular a criatividade e despertar o interesse temático e ético por sua força e sedução.