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ENTRE NÓS: COMPREENSÃO E JUÍZO COMO MODALIDADES DA POLÍTICA

EM HANNAH ARENDT

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POR Sofia Roque2

Resumo: A pergunta sobre o que é o sentido da política e a resposta arendtiana – «o sentido da política é a liberdade» – não são, actualmente, evidentes nem imediatamente plausíveis. A questão actual é muito mais radical, mais agressiva e mais desesperada, traduzindo-se antes na interrogação sobre se a política ainda terá sentido, o que coloca a própria faculdade de julgar no centro do inquérito sobre as condições de possibilidade da acção humana. A partir do pensamento de Hannah Arendt, este estudo reflecte sobre estas questões, abrindo um caminho interpretativo sobre a sua teoria do juízo político.

Palavras-Chave: Hannah Arendt; Filosofia Política; Juízo Político.

Abstract: The question of the meaning of politics and Hannah Arendt’s answer to it – «The meaning of politics is freedom» – are not obvious nor straightforwardly sound at the present time. The current question is much more radical, more aggressive and more desperate. It is rather a matter of questioning whether politics still make sense, which is a move that places the faculty of judgement at the core of the research on the conditions for the possibility of human action. This study is a reflection about these issues, grounded in Hannah Arendt’s thought and opening up an interpretive path for her theory of political judgement. Keywords: Hannah Arendt; Political Philosophy; Political judgment.

Na célebre entrevista que concedeu a Günter Gaus (1964), Hannah Arendt afirma que o mais importante para si é compreender, referindo-se mesmo a uma «necessidade» de compreensão. Arendt definiu esse tipo de compreensão especial que o pensamento político exige, afirmando que só a imagi- nação torna possível ver as coisas segundo uma perspectiva própria, sem distorções ou preconceitos e que, sem este modo da imaginação que é, na realidade, a própria compreensão, «jamais seríamos capazes de nos situar no mundo. (…) só somos contemporâneos daquilo que a nossa compreensão

1 Este texto apresenta, sob uma forma resumida e introdutória, a comunicação realizada no Colóquio O Pensamento, Hoje,

ainda Tem Efeitos Práticos? (FCSH, Lisboa, Novembro de 2017). Os temas aí apresentados resultam do trabalho de investigação

desenvolvido no âmbito do meu Doutoramento em Filosofia Política, ainda em fase de conclusão, e destinam-se a publicação posterior.

alcança»3. Mas como compreender as condições do presente que Arendt caracteriza essencialmente como o tempo do não-lugar da política, o de uma ausência instalada no «deserto» que se alimenta da actual «ausência de mundo, a extinção de tudo aquilo que existe entre nós»4? O seu presente não é o nosso, é certo. Porém, o seu tempo não se encontra suficientemente distante, nem se apresenta consideravelmente diferente do nosso, a ponto de nos impedir de encontrar a semelhança terrífica que nos leva a partilhar as suas preocupações. Além disso, a pergunta sobre o que é o sentido da política e a resposta arendtiana – «o sentido da política é a liberdade»5 – não são, actualmente, evidentes nem imediatamente plausíveis. A questão actual é muito mais radical, mais agressiva e mais deses- perada, traduzindo-se na interrogação sobre se a política ainda terá sentido. Assim, a necessidade de compreensão vem colocar a própria faculdade de julgar no centro do inquérito sobre as condições de possibilidade da acção. Este é o horizonte ético-político do estudo sobre estas duas modalidades que se traduzem numa experiência muito particular da vita activa, a experiência da política, indiciando uma relação complementar aparentemente impossível: a do agente, aquele que julga para agir, e a do espectador, aquele que julga para recuperar o sentido do passado.

A política ocupa-se da coexistência e da associação de homens e mulheres diferentes e, por isso, as pessoas organizam-se politicamente «de acordo com certos aspectos comuns essenciais» que descobrem num «absoluto caos de diferenças»6. Para Hannah Arendt, a pluralidade humana não é a qualidade do múltiplo e dos muitos, mas sim a expressão de um comum essencial e em aberto, ou seja, trata-se da «paradoxal pluralidade dos seres singulares»7. Por conseguinte, a condição humana da política, a pluralidade, é também a condição básica da acção e do discurso e pressupõe igualdade e distinção. Com efeito, é sobre a definição desse comum que a política tem sido pensada ou expe- rienciada, seja esse o elemento da relação que inclui ou exclui, ou que hierarquiza e distribui o poder; ou o critério do interesse, do bem, da classe, das fronteiras, do privado e do público; ou o princípio das leis, das constituições e da soberania; ou ainda o conteúdo de uma identidade nacional, cultural, étnica, de género, etc. Contudo, a fundação de corpos políticos baseados no conceito de família e concebidos à imagem da família, tem nos seus alicerces a ideia de «parentesco» que, como aponta Arendt8, tanto permite ligar diferenças individuais extremas como é também o meio pelo qual cada grupo pode, entre outros, ser isolado e comparado. Neste sentido, quando o comum corresponde ao critério do «parentesco», trata-se de uma forma de organização que anula toda a diferenciação original, do mesmo modo que a igualdade essencial dos humanos contida na ideia de «Homem» é também destruída. A «queda» da política nestas duas direcções – a da anulação da diferença e da igualdade – tem origem no modo como os corpos políticos se desenvolvem a partir do conceito de família9. Na verdade, segundo a autora, a família e o critério do parentesco permitem desempenhar o papel de Deus, uma vez que a pertença não se refere apenas à activa participação numa pluralidade: é como

3 C Hannah ARENDT, «Understanding and Politics», in Essays in Understanding: 1930-1954, Ed. e Int. de Jerome Kohn

(New York: Schocken Books, 2005), p. 323.

4 Idem, «Epilogue», in The Promise of Politics, Ed. e Int. de Jerome Kohn (New York: Schocken Books, 2005), p. 201. 5 Idem, «Introduction into Politics», in The Promise of Politics, p. 108.

6 Idem, «Introduction into Politics», p. 93.

7 Idem, The Human Condition, 2.ª Ed. (Chicago: The University of Chicago Press, 1998 [1958]), p. 176. 8 Idem, «Introduction into Politics», p. 94.

se, na vertigem de uma soberba sobre-humana, pudéssemos escapar naturalmente ao princípio da diferenciação e, também nós, pudéssemos «criar o homem à nossa semelhança»10. O que está aqui em questão é a crítica de uma concepção da política que se esgota na experiência do «pertencer» – o que é, tantas vezes, a condição paradoxal do privilégio e da exclusão – e também num processo de constituição de comunidades baseado na produção de diferença e semelhança, porém, sempre num movimento abrangente de homogeneização. Por outro lado, lembra Hannah Arendt, o universal «Homem», tal como a filosofia e a teologia o conhecem, realiza-se na política «apenas nos direitos iguais que aqueles que são extremamente diferentes garantem entre si»11, ou seja, não nascemos iguais, tornamo-nos iguais12. Que comum pode, então, ser desejado e encontrado entre nós, seres singulares, de tal modo que esse laço não implique a perversão da política, nem proscreva a própria qualidade essencial da pluralidade humana?

10 Idem, «Introduction into Politics», p. 94. Note-se ainda o modo como Hannah Arendt estabelece uma ligação entre os

conceitos de família, sociedade e Estado-Nação, partindo não só de uma crítica da moderna transformação da ciência política em «economia social» [«Volkswirtschaft»] ou «economia nacional», mas também de uma implícita denúncia da perversidade do uso político do critério de «parentesco», cujo caminho totalitário segue no sentido da descrita soberba e encarna no sintagma «sangue e solo» dos nacionalismos contemporâneos: «(…) o colectivo composto por famílias organizadas economicamente no fac-símile de uma única família sobre-humana é o que chamamos “sociedade”, e a sua forma de organização política chama-se “nação”», in Idem, The Human Condition, pp. 28-29.

11 Idem, «Introduction into Politics», p. 94.

12 Cf. Idem, «The Perplexities of the Rights of Man», in The Origins of Totalitarianism, 3.ª Ed. (New York: Houghton Mifflin

É POSSÍVEL CONCEBER UM FUTURO