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REJEIÇÃO DO NEGATIVO

POLEMOLOGIA ESPIRITUAL E PRAXIS POLÍTICA POR

5. REJEIÇÃO DO NEGATIVO

O que está, aqui, então, em jogo é a constituição da imanência, de uma esfera integralmente positiva que rejeita todo o aspecto negativo e reactivo pela qual a prática é subordinada ao carácter

4 Como fundamento teórico deste excurso remeto o leitor para os artigos, referidos na bibliografia, de Joseph Gauvin e

extrínseco da acção: medo, ressentimento, inveja, culpabilidade, má consciência.

A rejeição do negativo não significa, no entanto, o abafamento da consciência pelo ensimes- mamento empolado na acção. Essa rejeição do negativo não é um pressuposto teórico ou meramente reflexivo da acção, mas um pressuposto prático – neste âmbito encontramos todo um domínio higiénico e terapêutico pelo qual a consciência se mantém limpa, sem «negativo».

A constituição da imanência pode tender para a intensificação egóica – tanto sob a forma do individualismo como do colectivismo – e talvez na maior parte dos casos em que se trata desta constituição assim seja de facto. Aqui seria necessário colocar a questão de um centro ou pólo de orientação pelo qual superação e abandono de si se podem configurar como movimentos simultâneos. Neste sentido, transcendência e imanência não são tomados como conceitos dialécticos, mas toda a verdadeira imanência depende de uma dimensão transcendente pela qual o negativo é transfigurado, dado que é somente nesse e por esse cruzamento que se pode realmente passar da morte à vida. A constituição da imanência não se opera num vácuo. Se desde dentro do espaço curvo antropotécnico autonomia e heteronomia se indistinguem – a começar pelo carácter auto-referencial da relação prática a si, pelo qual um outro em si mesmo se supõe –, a ligação solidária com um outro exterior e com uma forma de vida comunitária é ela mesma pré-suposta. Deste modo, o mero individualismo é superado pelo enxerto num movimento formativo sempre precedente e pela incorporação numa tradição – no verdadeiro sentido da palavra – prática.

Desde dentro desta esfera, eminentemente realista e não idealista, o negativo ele mesmo não é negado, mas suposto e afirmado – o que quer dizer abertura total à existência do dissenso, da dife- rença e da distinção. E acentuo distinção, dado que algo como uma filosofia da diferença em geral se encontra continuamente sob o risco de conduzir, por uma rejeição de princípio de toda e qualquer identidade, a uma indistinção e a uma mesmidade generalizadas. A própria guerra e destruição e, inclu- sivamente, a destruição do planeta e das condições de vida planetárias, desde dentro desta esfera, são elas mesmas possibilidades imanentes não negadas. Muito do pensamento ecológico contemporâneo, integra hoje, de diversas maneiras, a possibilidade de destruição da vida planetária ou pelo menos da vida humana, diferentemente do ecologismo político ingénuo.5 Que o fim da vida planetária seja uma possibilidade imanente dá um outro sentido à precedência, no mínimo ética, do espírito propriamente dito sobre a vida.

Não creio, ainda, que democracia e comunismo, como nomes e formas ideológico-políticas, esgotem este movimento de imanência, antes são eles mesmos aspectos internos desse movimento que não podem designar o todo sem totalização. Isto porque toda a forma ideológica retém o negativo ele mesmo sob o modo da negação e não da afirmação. O pensamento que aqui exponho não é despro- vido de inimigo. Em perspectiva, o inimigo é o negativo e o seu princípio – a morte e a corrupção –, mas o negativo é suposto e afirmado, não negado. Que eu ame o meu inimigo não significa que o possa anular como inimigo e expurgá-lo. É fora do controlo que o inimigo seja inimigo.

Todavia, como formulado no capítulo 50 do Tao Te King: a arma não encontra sítio onde varar aquele que entra sem couraça nem armas no seio do exército inimigo; e porque acontece isto? Nele nenhum lugar se abre para a morte.

Não me parece que a democracia possa designar esta abertura radical a que me refiro, dado que não me parece possível pensar a democracia fora do âmbito representativo e dialéctico, isto é, para lá da redução da diferença a pressupostos dialógicos que determinam a equivalência de diferentes posições e a legitimidade ou legitimação dessa diferença no interior de um mesmo quadro ou esquema comunicacional, pelo qual o conflito é regulado. Já o comunismo integral é caracterizado pela abolição total do inimigo, ou tende a reduzir a figura do inimigo às figuras do criminoso, do fora-da-lei, do ilegí- timo. Nisto, o comunismo, como sistema total, partilharia o mesmo princípio estrutural com o racismo biologizante. Nesta ordem de ideias, Donald Trump, a despeito dele mesmo, tinha razão quando afirmava que o conflito em Charlottesville, entre anti-fascistas e anarquistas, de um lado, e nacionalistas e neo- nazis, do outro, era da responsabilidade de ambas as partes. Dir-se-ia que aqueles que são incapazes de se medir à altura do seu combate interior estão condenados a ver-se confrontados consigo mesmos na figura de um outro que lhes é estranho.

Como critérios ontológicos da formação de comunidades, a prática, no seu aspecto polemológico, e a constituição da imanência são superiores a qualquer outro critério – como aqueles retirados do âmbito da representatividade política e da sua polarização inerente. Diferentes linhas de empenhamento prático podem ser conflituais e divergentes entre si, já que o dissenso não está fora das possibilidades da imanência. A vontade de sistematização e a imposição de critérios extrínsecos à prática conduz tanto a divergências artificiais e contraproducentes como a unificações totalizantes que neutralizam a diferença e a distinção na mesmidade e na homogeneidade. Diferentes focos de acção não são inconciliáveis entre si apenas porque divergem topicamente, mas nem essa conciliação se manifesta necessariamente sob a forma do consenso, antes reside, aquém, na comunidade inoperante das práticas de si.

6. CONCLUSÃO

A noção polemológica de prática supera, portanto, a aparente oposição da qual partimos entre pensamento e acção. Para Bataille, a acção encontrava-se inevitavelmente do lado da dormência huma- na, do concatenamento necessário dos homens na esfera do utilitarismo servil. Do outro lado, estaria, para ele, o consumo improdutivo, a despesa luxuriante, como movimento de soberania e de libertação face ao servilismo da história. Mas já que essa soberania estava também em relação estrita com a transgressão dos limites impostos e pressupostos pela necessidade do trabalho e do labor histórico, pensados como «alienação», não vemos como poderia ser verdadeiramente livre esse movimento.

A noção e a realidade da prática supera esta dialética. O paradigma da prática é distinto do paradigma do trabalho. Repito: a prática é activamente inoperante – a obra, bem como a acção, têm aqui como princípio e fim a conservação da potência de obrar e de agir no círculo da imanência, sem esgotamento nem alienação no ato.

A acção – e não o resultado da acção – é o troféu e o espólio natural da prática, do combate vitorioso consigo mesmo, nunca final mas sempre a recomeçar; combate pela forma, cuja energia de potência plástica se liberta e dissemina como um sopro vivo, excedendo a própria forma pela qual a

prática se decidiu.

Não penso que seja, no entanto, possível dar querendo e sabendo que se dá. Ainda que nada haja de mais lúcido e de mais consciente. Mas só profusamente transbordando, como nascituro no seio da vida jorrante do espírito, se transvasa o impossessível – o mais comum e o mais próprio. Em prática e, portanto, podendo, assim somos, assim vivemos, assim nos formamos.

BIBLIOGRAFIA

Bataille, G. (1976), «La Souveraineté», in Oeuvres Complètes VIII, Paris: Éditions Gallimard.

Foucault, M. (2006), É preciso defender a sociedade, trad. Carlos Correira Monteiro de Oliveira, Lisboa: Livros do Brasil. Gauvin, J., «Entfremdung et Entausserung dans la Phénoménologie de l'Esprit de Hegel», in Archives de Philoso- phie, octobre-décembre, 1962, pp. 555-571, Paris: Éditions Beauchesne.

Mendonça, J. J. T., «Hegel nos “Manuscritos de 1844” de Karl Marx», in Revista da Faculdade de Letras: Filosofia, série II, vol. 10, 1993, pp. 143-184, Porto.

Sloterdijk, P. (2010), Cólera e Tempo, trad. Manuel Resende, Lisboa: Relógio D'Água Editores. Sloterdijk, P. (2013), You must change your life, trad. Wieland Hoban, Cambridge: Polity Press.

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