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O PENSAMENTO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O PENSAMENTO – REDUTO ANALÉPTICO E PROLÉPTICO DE MEMÓRIAS E SABERES

1. O PENSAMENTO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Sabendo como o pensamento e o sentimento se associam, reconhecemos que o homem, ao interrogar-se e ao socorrer-se da memória seletiva adquire capacidade de análise, de conhecimento pessoal e global, descobrindo em si múltiplas competências e diversas vontades que o levam a entender o questionamento da vida e a importância da liberdade e da democracia.

A este propósito é importante salientar a mais-valia das Ciências Sociais e Humanas, como nos refere Nuccio Ordine, em A Utilidade do inútil, ao afirmar que “a literatura e os saberes humanísticos, a cultura e a instrução, constituem o líquido amniótico ideal em que as ideias de democracia, de liber- dade, de justiça, de laicidade, de igualdade, de direito à crítica, de tolerância, de solidariedade, de bem comum, podem conhecer um desenvolvimento rigoroso.”

A própria Constituição da República Portuguesa afirma, no Artigo 37.º, que “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio bem como o direito de informar, de se informar, de ser informados.”

Também Tzevetan Todorov, em Os Inimigos da Democracia, afirma que “no seio de uma De- mocracia, pelo menos teoricamente; todos os cidadãos são iguais em direitos, todos os habitantes são iguais em dignidade” e acrescenta que “a vontade do povo deve estar subordinada aos grandes princípios definidos após uma ponderação cuidada e inscritos na Constituição do país.”

Sabendo nós que o diálogo, a conciliação e a moderação são os principais amigos da Democracia, reconhecemos no entanto que, se um destes elementos se emancipa abre-se caminho a diversos peri- gos, tais como ocasiona o populismo, o ultraliberalismo ou o messianismo que se revelam verdadeiros inimigos da Democracia. Deste modo, a manutenção dos princípios democráticos tem de estar atenta à tendência, dentro do seu seio, para se ultrapassarem os limites estabelecidos à incapacidade de se limitar o poder económico e a desmesura democrática. Assim sendo têm de se estabelecer regras e limites geralmente difíceis de aceitar e que ocasionam conflitos e corrosão no interior do próprio sistema democrático. Ao mesmo tempo torna-se difícil reconhecer e aceitar o inimigo no seu próprio espaço político e enfrentá-lo como autêntico inimigo interno.

Urge admitir-se que as mentalidades evoluíram e existe hoje uma visível vontade de recuperar o Projeto Democrático através do equilíbrio dos seus princípios: o poder do povo, a fé no progresso, as liberdades individuais, a economia de mercado, os direitos naturais e a socialização do indivíduo. As consequências deste processo são visíveis nos amplos debates sobre a crise financeira, sobre os acidentes tecnológicos e sobre os problemas ambientais e revela-se também através de manifestações de rua organizadas por movimentos espontâneos contra a viragem neoliberal de que são exemplo as situações vividas em Espanha, na Grécia ou em Portugal. Neste último, pode citar-se o movimento dos Indignados.

Mas, afinal, poderemos interrogar-nos para onde nos conduz a Democracia? Sendo esta, como afirmou Abraham Lincoln o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, Manuel Antunes, em A Anatomia

do Presente e a Política do Futuro, tendo em mente o cenário governativo português responde, com

desalento, a esta questão: “É o descrédito – terrivelmente perigoso – de uma classe política, pouco preparada, que rapidamente ascendeu e, não menos rapidamente, está a declinar a olhos vistos, devido à incompetência, ao oportunismo, ao demagogismo e à excessiva partidarização dos seus quadros. É o desencanto ante o muito que se prometeu, no concernente à saúde, à educação, aos transportes, às assimetrias regionais, à habitação, ao nível e estilo de vida, à justiça social para todos, o muito que se prometeu e o muito pouco que se realizou em todos esses domínios” e acrescenta “que é pela mentalidade que um projeto político se converte em instituição e, mais ainda, em estilo de vida”.

O futuro da Democracia não pode depender do enriquecimento económico como se ele fosse o maior bem da humanidade. É necessário valorizar o ambiente psíquico, físico, cultural e social dos povos – Ecologia Social e Política – e entender a necessária complementaridade entre o indivíduo e a coletividade, reformulando deste modo a importância da Economia, do Ambiente e do Homem no seu todo, sem esquecer a escassez de recursos terrestres (energia, água, terras férteis) e apelando à negociação amigável e à convergência de interesses.

Manuel Antunes considera ainda que a verdadeira Democracia só poderá ser autêntica se desempenhar cabalmente as suas funções, e aponta como imprescindível para que tal aconteça que os governantes sejam suficientemente corajosos para “desburocratizar, desideologizar, desclientelizar, descentralizar” acrescentando que tudo isto exigirá um procedimento adequado que salvaguarde e defenda todos aqueles que são governados, tendo como primeiro objetivo encontrarem-se os homens certos para os lugares certos sem amiguismos nem outras razões supérfluas. Terão de ser verdadeiros conhecedores da gestão democrática, da área que vão representar e das relações humanas, isto é “homens de carácter e competência que nos façam conceber pelo nosso meio e pela nossa espécie uma admiração e um respeito”, que “concretizem algumas ideias fecundas que andam no ar e que generalizem exemplos isolados”, que criem “um estado de espírito em que os portugueses se sintam solidários e mobilizados para as tarefas comuns”, que se encontrem “os autênticos valores da demo- cracia” que conduzam à mobilização dos “meios da educação e da cultura da informação e da acção”, admitindo que o importante é conseguirmos ser uma sociedade verdadeiramente democrática “que pouco a pouco vai concretizando os seus objetivos, reconhecendo que para que tudo isto seja viável será premente a existência real de uma Democracia do Estado e de uma Democracia da sociedade civil, tendo ambas que caminhar juntas.

Também Manuel Arriaga, em Reinventar a Democracia, considera, de igual modo, que as demo- cracias “não estão a funcionar e precisamos de recuperar o controlo sobre o nosso futuro”, defen- dendo que a raiz do problema reside nos sistemas políticos e no facto dos políticos que governam não representarem o povo a governar. Reconhece, assim, a necessidade de “aumentar o controlo dos cidadãos sobre o governo” de modo a que este aja de acordo com o interesse e as necessidades públicas e admite este facto como primordial. Para este autor, o sucesso da Democracia depende, na sua essência, do “equilíbrio delicado entre os sonhos e os (aparentes) obstáculos” e acrescenta que é necessário “conceber as nossas instituições deliberativas de modo a que elas tragam ao de cima, de uma forma fiável, o melhor que os cidadãos têm dentro de si” e cita os exemplos a seguir da Colúm- bia Britânica e do Oregon, reconhecendo que, com grande perseverança e entusiasmo conseguiremos construir um futuro verdadeiramente democrático, mas admite que as dificuldades serão inúmeras visto que, tal como dizia Rousseau “ as pessoas acreditam ser livres, mas estão seriamente enganadas. São livres apenas durante as eleições para o seu Parlamento. Quando as eleições acabam, voltam a ser escravas.”. Deste modo se reconhece que os verdadeiros valores da Democracia não são respeitados, eles vigoram apenas quando interessam aos governos.

Pretendendo não deixar morrer a autêntica Democracia, reconhecemos como vantagens potenciais da Europa na persecução deste objetivo a prática do pluralismo através do relacionamento de etnias e de famílias de pensamento, como os sofistas, os platónicos, os cristãos, os ortodoxos, os heréticos, os humanistas, os anti-humanistas, os liberais, os socialistas, os sociais-democratas, etc.. Deste modo, o futuro depende da vontade humana e de uma cidadania ativa e universal.

Os novos tempos colocam a humanidade em permanente alerta de mudança para eventuais situações políticas ou outras, exigindo ao homem uma disponibilidade constante para alterar lógicas e princípios que os regem. A este respeito, tal como afirma Zygmunt Bauman em A arte da vida, “apren- demos com Sartre que para cada projeto haveria, em anexo, um mapa de estradas e uma descrição detalhada do itinerário”, mas hoje percebemos, como refere ainda Bauman, que “Embora ainda se

possa sonhar em descrever antecipadamente um cenário para toda a vida, e mesmo trabalhar ardu- amente para transformar esse sonho em realidade, apegar-se a qualquer cenário, mesmo ao do seu próprio sonho, é assunto arriscado e pode revelar-se suicida. (…) Os sinais da estrada que marcam as trajetórias de vida aparecem e desaparecem quase sem aviso. Os mapas do território que deverá ser atravessado nalgum ponto do futuro devem ser atualizados quase diariamente.” E por isso mesmo Tzvetan Todorov, na obra anteriormente citada, refere que “O absoluto precisa de ser criado e bafejado pelo sopro da vida - e não apenas num único ato da criação; só pode existir num estado de criação permanente, precisa de ser constantemente recriado dia após dia, hora após hora, os absolutos não se encontram – são feitos (…).” A Democracia não pode parar e é necessário uma redobrada atenção para que ela permaneça e se revigore de acordo com as exigências do mundo atual. Ela pertence ao povo e dele dependerá sempre, mesmo que os governos esqueçam essa verdade soberana. É necessário ter um plano, ter uma visão a longo prazo, ver ao longe e não atender apenas ao instante presente, tendo sempre em mente um futuro continuadamente democrático e, tal como Manuel Arriaga cita, referindo-se a Brian Eno, é preciso prestar “atenção às questões a longo prazo que constituem, essas sim, o verdadeiro interesse da humanidade” e a Democracia é, na verdade, o sistema político que se deseja prolongar no tempo, preservando-a e melhorando-a a cada dia que passa. Refere ainda o autor, optando por aquilo que ele denomina de painéis de pensadores que conduzem à deliberação cívica, que esses ”painéis de cidadãos pensam melhor sobre as consequências a longo prazo das escolhas políticas hoje realizadas do que os políticos profissionais, pressionados por objetivos eleitorais a curto prazo e sujeitos a serem influenciados por interesses económicos, entre outros.”.

Deste modo, os valores do pensamento e do ideário democrático necessitam urgentemente de se manter vivos e atuantes e permanentemente abertos à mudança construtiva que apela à dignidade do indivíduo, à melhoria do seu nível de vida, ao seu bem-estar físico, psíquico e social e, em síntese, à verdadeira representatividade de uma nação democrática. As bases da Democracia ficaram para trás, mas permanecem no ideário democrático, o presente e o futuro apelam ao seu vigor e à sua renovação.

É a Hora! Tal como Fernando Pessoa apela no último poema da Mensagem.

BIBLIOGRAFIA

ANTUNES, Manuel – Padre SJ – (2017). A Anatomia do Presente e a Política do Futuro, 1ª edição, Bertrand Editora. ARRIAGA, Manuel (2015). Reinventar a Democracia, 1.ª edição, Manuscrito Editora.

BAUMAN, Zygmunt (2017). A arte da vida, Relógio d’Água Editores

Constituição da República Portuguesa (2017), 7.ª edição, Coleção Legislação, Porto Editora.

DAMÁSIO, António (2017). A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas, 1.ª edição, Temas e Debates – Cír- culo de Leitores.

Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

DRYZEK, John (2002). Deliberative Democracy and Beyond: liberals, critics, Contestations, Oxford University Press. ORDINE, Nuccio (2017). A utilidade do inútil, Kalandra Editora Portugal Lda.

PESSOA, Fernando (1934). Mensagem, Editorial Império.

SOARES, Bernardo (2006). Livro do Desassossego, Lisboa, Edição de Richar Zenith, Assírio & Alvim. STEINER, George (2003). As Lições dos Mestres, Gradiva.

STEINER, George (2011). A Poesia do Pensamento – Do Helenismo a Celan, Antropos. TODOROV, Tzevetan (2012). Les ennemis intimes de la démocratie, Paris, Éditions Robert Laffont.

POLEMOLOGIA ESPIRITUAL E PRAXIS POLÍTICA