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Entre a revolução e o pragmatismo: a formação e o status popular da Cooperlírios

5. Análise dos resultados: um olhar interpretativo

5.1 Entre a revolução e o pragmatismo: a formação e o status popular da Cooperlírios

A história da concepção até o início do processo organizativo da Cooperlírios, narrada e construída nessa pesquisa, apresenta pontos interessantes de análise, abarcando não apenas o caso em si, mas resgatando o debate teórico da Economia Solidária e seus empreendimentos. Um debate que re-inaugura a questão entre revolucionários versus reformistas, focando na análise do princípio motivador da constituição desse tipo de empreendimento: seria um princípio revolucionário, a iniciativa de contestar a exploração do sistema capitalista por meio da organização da sociedade civil em bases socialistas de produção? Ou um princípio pragmático, de se constituir uma alternativa reformista viável para se resolver a questão do emprego?

Como analisado nos itens Por uma arqueologia da Economia Solidária e

Cooperativismo: filosofia e práxis, as indagações acima possuem suas justificativas no

próprio histórico do surgimento do cooperativismo, o qual foi marcado em seu início pela existência de forte discurso revolucionário por detrás das ações de formação das primeiras organizações cooperativas. Tanto nas primeiras empreitadas do cooperativismo na Europa do

século XVIII, como atualmente ainda propugnam alguns dos órgãos e sindicatos de trabalhadores ligados ao cooperativismo e à Economia Solidária, a principal motivação que incentiva a iniciativa de formação de empreendimentos solidários está na contestação do capital (MARX, 1985) e do sistema capitalista. A própria análise de Singer (1999) corrobora tal princípio, quando o economista escreve que a formação desses empreendimentos são pilares, quiçá possibilidade, de uma contra-revolução socialista em curso.

Entretanto, ao que tudo indica e aqui se defende, atualmente essa linha revolucionária do princípio organizativo parece perder seu caráter motivador, tornando-se, apenas, pano de fundo retórico com a vaga pretensão de fundamentar saudosas ações políticas localizadas à esquerda no espectro político-partidário.

Conforme desenvolvido no item Cooperativismo e Cooperativismo Popular:

releituras para um novo cooperativismo, nos dias atuais, o debate entre os revolucionários versus reformistas parece pender mais para a inspiração reformista quanto às motivações das

iniciativas cooperativistas e de empreendimentos solidários. Observa-se que estas iniciativas, de modo geral, não estão pautadas na contestação do sistema, mas, principalmente, numa alternativa prática para a crise da sociedade salarial. Com analisou Vieitez (1997), a motivação de formação das empresas de autogestão no Brasil não tem sido doutrinária, no sentido revolucionário, mas, predominantemente, pragmática. Não se busca, em essência, a contestação do capital e de seu sistema, mas, exclusivamente, de se constituir oportunidades de emprego formal.

Nesse ponto, é importante ressaltar que o reformismo alinhado ao princípio pragmático não nega a doutrina filosófica e bases organizacionais do cooperativismo, todavia, não observa, nesse modelo, uma ação de ruptura do capital, mas apenas sua reforma, como alternativa viável e eficaz para inserção positiva de indivíduos no mercado de trabalho.

Esses são pontos de debate que surgem na constituição da Cooperlírios. Como apresentado no item Da concepção à constituição da Cooperlírios, a sua formação como uma cooperativa surgiu de um processo de interação entre a Prefeitura Municipal de Americana e a comunidade do Jardim dos Lírios por uma ação de intervenção que objetivou organizar os indivíduos da comunidade que viviam da coleta e venda de materiais recicláveis e/ou reutilizáveis. A motivação para essa intervenção estava dada em dois pontos principais: primeiro, o de organizar essa atividade no local, tendo em vista que sua prática precária estava trazendo prejuízos à salubridade do bairro; e segundo ponto, o de garantir a manutenção econômica dessa atividade, dado que ela era, na maioria dos casos, a única fonte de renda dos indivíduos e das famílias praticantes da coleta.

A primeira ação encetada foi o galpão de reciclagem. Nesse sentido, apresentou-se como totalmente alinhado com o primeiro objetivo da Prefeitura: organizou as atividades de coleta, retirando a armazenagem das casas dos indivíduos. Entretanto, o segundo objetivo, a manutenção econômica das atividades dos catadores, não estava garantido, uma vez que o galpão não possuía estrutura organizacional adequada. Buscou-se, então, uma alternativa que pudesse, satisfatoriamente, atingir os objetivos de modo sustentado.

A opção para consecução desses objetivos foi a formação de uma cooperativa. A justificativa da escolha da organização em uma cooperativa, conforme relatado no item

Necessidades organizacionais: a cooperativa pelo vereador Kim, líder do projeto, era que

esse tipo de organização não apenas garantiria, de modo formal, o principal objetivo de manutenção dessa atividade econômica, mas também, porque seu marco institucional, pautado pela igualdade e solidariedade, poderia levar à organização, e seus indivíduos, de forma sustentada, à prosperidade.

Depreende-se, então, que a motivação norteadora da formação da Cooperlírios não ocorreu pelo princípio revolucionário de contestação do sistema. Não se buscou, quando da

proposta da formação da cooperativa, a criação de um modelo de resistência ao capital, de características e bandeiras socialistas. Como frisou o vereador, o objetivo final era a ação pragmática de garantia formal de emprego, capaz de gerar renda e vida digna para as famílias locais praticantes das atividades de coleta de materiais recicláveis e/ou reutilizáveis.

Contudo, o histórico da formação da Cooperlírios indica que o aspecto pragmático não encerra, apenas no pragmatismo, sua principal motivação. A despeito de estar focada na questão do emprego, a Prefeitura vislumbrou, no cooperativismo, uma alternativa sustentada de prosperidade para os catadores. Não se focou o aspecto revolucionário de crítica ao sistema, mas levou-se em consideração sua doutrina, seus princípios e seu arranjo organizacional.

Ao optar pelo cooperativismo, a Prefeitura constituiu um empreendimento que não apenas garantisse o emprego com segurança institucional, mas, principalmente, que incitasse a formação de liame social, o qual pudesse gerar contexto organizacional e social catalisadores da prosperidade do empreendimento e de seus indivíduos. Remonta-se, no limite, certa inspiração owenista.

E como infelizmente a nossa sociedade tem uma relação desgastada de confiança mútua, né? Então se torna difícil você constituir um grupo coeso. E a gente procurou inverter esse papel, trabalhando pra dizer que mesmo que eu não confio em ninguém, mas se nós fizermos uma estrutura com regras claras, tudo feito por escrito, né, vai dar uma proteção pra todos, né? O meu companheiro de trabalho vai estar protegido contra uma eventual má intenção da minha parte e vice e versa, então todos nós deveremos respeitar as regras e dessa forma nenhum deverá ser lesado por conta de uma atitude desviada de um outro colega ali daquela mesma organização (Vereador Kim).

(...) durante esse processo todo, trabalhar para junto aos diferentes órgãos do poder público, de que era importante, era necessário investir na organização dessa empresa comunitária. E mais do que isso, porque empresa comunitária? Porque também ela tem o ganho social, né? Seria muito simples falar assim: vamos então contratar uma empresa privada pra cuidar da reciclagem, né? Poderia ser um outro caminho. Agora nós defendemos que essa fatia do mercado, vamos assim dizer, não deixa de ser um direito daquele que começou fazendo isso, puxando carrinho, revirando a lata do lixo, enfim, se dedicando a questão de selecionar esse material reciclado por uma necessidade que ele tinha de trabalho e renda. Então essa pessoa, se nós formos é até mesmo retirar dele esse resíduo da sociedade, então é condená-lo à exclusão total! Eu acho que nós temos que fazer um papel de inclusão. Então houve todo esse trabalho de procurar resgatar é daquelas pessoas aquele grupo que pudesse continuar trabalhando, e mais do que isso, que pudesse progredir, né, no seu negócio e ter uma boa organização e uma boa condição de vida (Vereador Kim).

Nesse sentido, pode-se dizer que as motivações da formação da Cooperlírios, por parte de seu proponente, a Prefeitura Municipal de Americana, foi dada por inspiração reformista, em relação direta e fronteiriça entre o pragmatismo e as bases doutrinárias e organizacionais do movimento cooperativista.

Essa motivação e ação da Prefeitura acabam por ter forte eco no próprio discurso de um novo cooperativismo (NASCIMENTO, 2004), entendido como aquele que rompe com a deturpação das coopergatos, objetivando ações que visam constituir empreendimentos de utilidade pública voltados, principalmente, para o estabelecimento de liame social, com vistas à inclusão promotora do desenvolvimento socioeconômico (FRANÇA FILHO, 2002). Uma nova direção do cooperativismo, que, como já desenvolvido conceitualmente no item

Cooperativismo e o Cooperativismo popular: releituras para um novo cooperativismo,

adquiriu o status de popular. Nesse sentido, o cooperativismo popular, como expressão da Economia Solidária, busca resgatar os pressupostos do movimento cooperativista clássico com objetivo de promover desenvolvimento local para a inclusão de camada de baixa renda em situação de risco.

A Cooperlírios alinha-se a esses pressupostos. Por sua concepção não estar totalmente encerrada num pragmatismo que exclui o caráter doutrinário do movimento, mas que leva em consideração seus pressupostos e lógicas organizacionais, ela pode ser tipificada como uma ação e expoente alinhados com o novo cooperativismo propugnado pela Economia Solidária brasileira (NASCIMENTO, 2004). Demonstra-se como um processo que, a priori, aparenta adaptar, com sucesso, uma necessidade pragmática por renda e trabalho por meio da constituição de liame social de uma comunidade local via empreendimento solidário.