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2. Cooperativismo: filosofia e práxis

2.2 O cooperativismo: princípios doutrinários e estruturantes

O primado do ideário cooperativista está arraigado nos pensadores de tradição socialista, que tinham por objetivo propor a reformulação da sociedade por meio da organização coletiva do trabalho. Na prática, ele se constituiu por inúmeras iniciativas de organização coletiva do trabalho, das quais algumas vingaram, outras não. Aos poucos, principalmente a partir da experiência de Rochdale, esse ideário revelou-se um movimento que foi ganhando embasamento e experiência, adquirindo um caráter doutrinário.

É interessante observar no cooperativismo que, apesar de nascer enquanto modelo na Inglaterra (Rochdale), o desenvolvimento mais claro de sua doutrina é possível de ser constatado na França. Por iniciativa de Boyve, Fabre e Gide, professores franceses de economia política, foi fundada na França, em 1886, a Escola de Nimes, com objetivo de discutir problemas sociais ocasionados pelo desenfreamento do capitalismo, tornando-se rapidamente uma entidade doutrinária de disseminação institucional do cooperativismo, uma espécie de programa oficial do movimento cooperativista francês (PINHO, 1977).

O discurso doutrinário por detrás da defesa da organização coletiva de trabalho cooperativista é o de que esse modelo centra no indivíduo suas condutas e ações econômicas, promovendo liberdade econômica, social e democrática. É uma proposta de reforma do meio socioeconômico, concretizada de maneira gradual e pacífica por meio da implantação de cooperativas (PINHO, 2004).

O entendimento da doutrina cooperativista e seu modelo organizacional, como algo reformador tanto do homem como da sociedade, como seu próprio precursor Owen propugnava, podem ser dados pela análise dos valores e princípios que os regem. Foram pelas mãos, suor e dedicação dos pioneiros tecelões de Rochdale, quando da criação de um modelo de organização e de gestão cooperativista que alcançassem com sucesso os objetivos

solidários de sua fundação, que foram formulados sete princípios fundamentais: adesão livre; controle democrático; devolução ou retorno sobre as compras; juros limitados para o capital; neutralidade política e religiosa; vendas em dinheiro e à vista; e fomento ao ensino (IRION, 1997), os quais são, ainda hoje, as expressões e os sentidos dos valores, ideais, espírito e práticas organizacionais cooperativistas: ajuda mútua, responsabilidade, democracia, igualdade, eqüidade e solidariedade (OCB, 2006).

Esses sete princípios fundamentais rochdaleanos foram formulados por meio das experiências anteriores vividas pelos seus membros (owenistas e cartistas) e que, pela prática de sucesso do empreendimento, permanecem até os dias atuais. Para se adaptar aos contextos contemporâneos, esses princípios foram ajustados pela ACI – Aliança Cooperativa Internacional às mudanças e diversidade cultural do mundo (TESCH, 2000). Os princípios já passaram por três revisões: 1937, em Paris; 1966, em Viena; e 1995, em Manchester. As revisões foram dadas em grandes consultas e discussões da ACI - Aliança Cooperativa Internacional, em que participaram teóricos e acadêmicos do cooperativismo, dirigentes de cooperativas e representantes de seu movimento (SCHNEIDER, 1999).

Os sete princípios ficaram, conforme descreve Tesch (2000), assim estabelecidos pela ACI – Aliança Cooperativa Internacional, em 1995:

A. Adesão livre e voluntária

As cooperativas são organizações abertas a todas as pessoas aptas a usar seus serviços e dispostas a aceitar as responsabilidades como sócios, sem discriminação social, racial, política ou religiosa e de gênero.

O princípio da adesão livre e voluntária trata diretamente do estabelecimento de critérios básicos para a adesão e a saída de indivíduos dos empreendimentos cooperativos. Seu conteúdo determina que a cooperativa seja aberta, isto é, ninguém é obrigado a ingressar em seu quadro, porém, quando consciente de sua vontade, seu acesso será livre e destituído de

discriminação. Contudo, na prática, deve-se levar em conta que algumas cooperativas, por questões técnicas, podem limitar ou restringir o número e/ou tipo de sócios. De uma perspectiva econômico-administrativa, pode-se dizer que o primeiro princípio estabelece que, dada a cooperativa ser um empreendimento econômico, fica a critério do cálculo do indivíduo (custo versus benefício) sua opção de adesão ou não. Destaca-se que esse raciocínio econômico-racional não é regra, podendo se ter a adesão de indivíduos por causas altruísticas, entretanto, considera-se uma disposição residual.

B. Controle democrático pelos sócios

As cooperativas são organizações democráticas, controladas por seus sócios, os quais participam ativamente no estabelecimento de suas políticas e na tomada de decisões. Nas cooperativas singulares, os sócios têm igualdade na votação (um sócio, um voto), independentemente do volume de quotas-partes.

O princípio do controle democrático pelos sócios está relacionado à gestão da empresa. Trata-se, portanto, de estabelecer que todas as esferas de decisão da organização, de seus objetivos aos seus meios de realização e gestão de suas operações, serão tomadas de modo democrático, no qual cada indivíduo tem direito a um voto. Sendo todas as informações disponibilizadas para os cooperados. Nesse sentido, a determinação de poder e ponderação de voto não estão pautadas pela participação no capital aportado pelos indivíduos na organização, mas na existência de um trabalhador-sócio. Com isso, a gestão democrática desvincula a decisão do capital e a centraliza no trabalho. Tal princípio remete, também, ao sistema de autogestão, foco do cooperativismo.

C. Participação econômica dos sócios

Os sócios contribuem de forma eqüitativa e controlam democraticamente o capital de suas cooperativas. Parte deste capital é de propriedade comum das cooperativas. Usualmente os sócios recebem juros limitados (se houver algum) sobre o capital, como condição de sociedade. Os sócios destinam as sobras aos

seguintes propósitos: desenvolvimento de cooperativas (possibilitando a formação de reservas, parte dessas pode ser indivisível); retorno aos sócios na proporção de suas transações com as cooperativas e apoio a outras atividades que forem aprovadas pelos sócios.

O princípio da participação econômica dos sócios apresenta um controle democrático do capital, o qual está diretamente subordinado ao trabalho. Há remuneração do capital, todavia, os resultados são destinados ao trabalho e sua produção, depois de pagos todos os fatores da organização.

D. Autonomia e Independência

As cooperativas são organizações autônomas para ajuda mútua, controladas por seus membros. Entretanto, em acordo operacional com outras entidades, inclusive governamentais, ou recebendo capital de origem externa, elas devem fazê-lo em termos que preservem o seu controle democrático pelos sócios e mantenham sua autonomia.

O princípio da autonomia e independência estabelece o caráter autônomo da cooperativa. Seus rumos e decisões gerenciais são dados em assembléias de cooperados, não havendo interferência de externos. É a normativa que também baliza a possibilidade da autogestão. Pode-se dizer ainda que esse princípio, atualizado ao contexto atual, é reflexo da tomada do cooperativismo como política pública pelo Estado. Assim, os governos podem fomentar a implementação de cooperativas, porém, devem preservar suas características ontológicas e, principalmente, de independência.

E. Educação, treinamento e informação

As cooperativas proporcionam educação e treinamento para sócios, dirigentes eleitos, administradores e funcionários, de modo a contribuir efetivamente para seu desenvolvimento. Eles deverão informar ao público em geral, particularmente os jovens e os líderes formadores de opinião, sobre a natureza e os benefícios da cooperação.

O princípio de educação, treinamento e informação retoma a questão da importância do cooperativismo como organização que promove reforma na vida e nas condições socioeconômicas dos cooperados. Nesse sentido, esse princípio foca a necessidade de disseminação do movimento para que os sócios o entendam e, desse modo, estejam preparados para assumir a cooperação na prática. Esse princípio também carrega a função de disseminação do cooperativismo pela sociedade.

F. Cooperação entre cooperativas

As cooperativas atendem seus sócios mais efetivamente e fortalecem o movimento cooperativo, trabalhando juntas em estruturas locais, regionais, nacionais e internacionais (já existem diversos exemplos na prática de parcerias entre cooperativas: de consumo com agropecuárias, agropecuárias, agropecuárias com trabalho, de consumo com artesanato, das habitacionais com as cooperativas de trabalho na construção civil etc.).

Esse princípio retoma fortemente as primeiras iniciativas de Rochdale, que propunha a colaboração entre colônias ou associações cooperativas, com idéia de fortalecer não apenas o movimento, mas criar sinergias e complementaridades nas organizações em si enquanto movimento.

G. Preocupação com a comunidade

As cooperativas trabalham pelo desenvolvimento sustentável de suas comunidades, através de políticas aprovadas por seus membros.

A cooperativa, como iniciativa solidária, é capaz de se organizar e potencializar desenvolvimento local. O princípio da preocupação com a comunidade estabelece que para a cooperativa crescer e respeitar sua razão filosófica deve estimular a promoção da elevação geral da qualidade de vida de seus sócios e da comunidade a sua volta.

Analisa-se que a institucionalização desses princípios, bem como sua revisão, têm como objetivo constituir as bases teóricas comuns da doutrina do movimento cooperativista. Por corolário, os princípios adquirem, dessa forma, caráter estruturante fundamental de seu modelo organizacional. São diretrizes de conduta e atuação das cooperativas, os quais, alinhados com os pressupostos filosóficos e operacionais da organização coletiva do trabalho, institucionalizam e modelam a cooperativa enquanto organização específica; tornam-se, inclusive, referência internacional de prática e reflexão, contribuindo para a formação de identidade organizacional cooperativista.

Desses princípios pode derivar a definição geral, doutrinária e identitária de cooperativas, conceituando-as como empreendimentos solidários, abertos, geridos de forma democrática, autônoma e independente, para centralizar a remuneração no trabalho, neutra de interesses políticos, religiosos e/ou de raça, cujo objetivo é promover o desenvolvimento de seus sócios e comunidade local.