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35Entretanto, Correia e Silva defende que “(…) não foram raros os casos

das escravas que se amancebavam com os seus próprios senhores, obtendo deste facto posições materiais e simbólicas importantes no seio da fazenda (…)” (2001, 327).

Em refutação à situação “mulher vítima”, Correia e Silva defende que “os

laços afectivos são manipulados pelas estratégias de ascensão social subtilmente delineadas pelas mulheres. Ao dizermos isso, apartamo-nos, implicitamente, da ideia tradicional, que não vê nestas mulheres mais do que manifestações de domínio sexual do homem sobre a mulher, do escravocrata sobre a escrava, do branco sobre a negra, do sujeito sobre o objecto” (2001, 328).

Assim, podemos constatar, como é realçado por António Carreira, que “a sociedade no todo, ou em grande parte, aceitou pacificamente que o

homem, mesmo casado pela Igreja, pudesse viver maritalmente com uma ou mais mulheres ao mesmo tempo, quase sempre, para não dizer sempre, cada uma delas em casa própria. Nas ilhas esse tipo de ligação foi mais ou menos aceite pela comunidade sem grande constrangimento” (1977, 23).

Que as mulheres menos favorecidas fizessem disso um mecanismo de ascensão social também não foi constrangedor. Era, sobretudo, coerente com a posição das mesmas na pirâmide social da época.

Lopes Filho considera que desde muito cedo instituiu-se uma ten- dência para a união livre no comportamento dos moradores das ilhas. Considera, nesta mesma óptica, que estas uniões, irregulares em relação às leis e aos costumes da época em Portugal, revelam a existência de uma poligamia de facto e não de direito. Oficialmente, o regime ma- trimonial era a monogamia, mas na prática a monogamia era imposta apenas às mulheres. Defende ainda que a tendência para a poligamia, institucionalizada nas uniões livres seria consequência deste compor- tamento dos senhores que faziam gala em ostentar inúmeras amantes e filhos bastardos e não uma reminiscência das sociedades tradicionais africanas (1996, 70).

Uma perspectiva similar tinha sido defendida por Carreira que propõe que se pode falar de uma poligamia de facto mas não de direito e reforça que estas ligações irregulares nunca foram um apanágio dos grupos mais pigmentados, nos quais talvez se pudesse falar de reminiscências africanas. Este autor observa que “em algumas ilhas (por exemplo, no Fogo) o homem

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reinol ou «branco de terra», fez sempre gala em manter ostensivamente uma ou mais amázias, e delas haver imensos filhos bastardos, facto nunca escon- dido da esposa legítima” (Carreira apud Lopes Filho; 2003, 137).

Uma carta que data de 1784 mostra como se edificava a sociedade de Santiago, o que, segundo Carreira (1977), poderia aplicar-se a todas as restantes ilhas. Nesta carta, a sexualidade surge como o vício dos morado- res das ilhas e o redactor anónimo mostrou-se indignado com a liberdade sexual que possuíam as negras:

“O vício (…) que, pela ociosidade é mais determinante nesta gente, é o da

sensualidade (…). Porém o que mais admira é não se envergonharem as mulheres pretas desta ilha (Santiago) do exercício deste vicio horrendo nem de se deshonestarem e tratarem com homens que não são os seus legí- timos maridos…” (Apud Carreira; 1977, 24).

Assim, podemos perceber que do ponto de vista sexual, institui-se nas ilhas, desde muito cedo, uma tendência para a união livre, generalizada em todas as ilhas e em todos os extractos sociais. Se, oficialmente, o regime matrimonial vigente era a monogamia, na prática era imposta somente às mulheres e, assim, da mulher exigia-se castidade e fidelidade absoluta e isso inserido num processo de socialização que se iniciava muito antes do casamento.

Analisando o perfil do escravocrata, Correia e Silva afirma que os objectivos da classe regulavam o comportamento sexual dos membros uma vez que “na sociedade agrária de então o controlo do casamento dos

herdeiros, mesmo o de mancebos, tornara-se um factor de maior relevância. Quanto aos rapazes, porém, a restrição não recaia tanto sobre a sexualidade, mas sim, sobre o casamento. A estes, diversamente das donzelas, a sociedade tolerava uma sexualidade socialmente permissiva, sobretudo quando as parceiras fossem escravas ou forras” (2001, 335).

Tendo presente o processo histórico e os condicionalismos sociais que deram origem à família cabo-verdiana analisaremos, em seguida, como esta se estruturava e os valores predominantes.

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1.2.2. as relações familiares e os valores tradicionais

João Lopes Filho afirma que o que podemos considerar como «família cabo- verdiana» assenta na continuidade da tradição colonial, numa relação onde é patente o domínio do homem em relação a mulher, facto que, segundo ele, deve-se ao carácter patriarcal da escravatura doméstica. Este domínio do homem revela-se na distribuição dos papéis no interior da família, na divisão do trabalho, por exemplo, em que há uma nítida separação entre os domínios e competências do homem e os da mulher. Esta separação seria acompanhada de uma hierarquia no seio da família em que os papéis e os domínios do homem são (teoricamente) superiores aos da mulher (1996, 75).

Lopes Filho reforça esta ideia quando afirma que “(…) a mulher nestas

ilhas foi desde muito cedo considerada como produtora de trabalho e como objecto de prazer pelos senhores e donos, factos que ao longo dos tempos mar- caram a maneira do homem cabo-verdiano entender a mulher normalmente como ser inferior” (1996, 75).

Este autor considera ainda que mais do que uma sociedade pater- nalista, a sociedade cabo-verdiana assumia aspectos de uma sociedade masculina, onde não só no interior mas também no exterior da família se assistia a uma valorização e predominância do homem e das suas acções e valores, enquanto que a mulher, quase sempre menosprezada e subva- lorizada, era destinada aos trabalhos domésticos, os quais usufruíam de pouco reconhecimento social (1996, 125).

Pedro Calderan Beltrão definiu a família como “um grupo social carac-

terizado por comum residência, colaboração económica e reprodução. Inclui pois, adultos de sexo diferente, dos quais dois ao menos mantêm relações sexuais socialmente aprovadas, e um ou mais filhos, próprios ou adoptados, dos adultos que coabitam sexualmente” (1973, 17).

Destaca três tipos de organização familiar: a família nuclear ou conju- gal que é formada pelos pais e os respectivos filhos e onde ocasionalmente entram tios, sogros e domésticos; a família poligâmica, que é formada por mais de um núcleo familiar ligado por progenitores comuns (se o progeni- tor for a mulher temos a variante denominada poliandria e se o progenitor for o elemento masculino temos a poligamia); e a família extensa que é constituída pela família nuclear do adulto e a dos seus pais.

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No caso de Cabo Verde, não poderíamos classificar a família cabo- verdiana como pertencente a um dos tipos acima citados. Encontramos uma multiplicidade de agregados familiar que englobaria todos os já citados e outros que por força das circunstâncias culturais e sociais apa- receram no arquipélago. Como um exemplo, encontramos o tipo de “lar simples” que corresponderia à família nuclear, constituído por um casal, unidos ou não pelo casamento mas reconhecidos socialmente, e pelos respectivos filhos.

O correspondente à família extensa é a família alargada, onde en- contramos várias gerações convivendo sob o mesmo tecto. Há casos em que jovens casais não deixam a casa dos pais, e outros, em que trazem para casa um parente mais velho, tio, pai, mãe, avó. “Salienta-se (…)

que, numa sociedade em que há pouca protecção na velhice (…), quer sejam pensões de reforma e viuvez e assistência na doença e invalidez, um grupo numeroso de filhos constitui, de facto, uma garantia de segurança para a velhice, segundo um aforismo popular «os filhos são a riqueza do pobre»”

(Lopes Filho; 1996, 119).

No caso cabo-verdiano, é sempre um homem o progenitor comum de algumas famílias. Assim, é o caso de alguns homens casados que têm uma família legítima e possuem outras amásias, com as quais geraram um novo núcleo familiar. O número de filhos, na tradição crioula, atesta a virilidade do homem e o número de mulheres atesta a sua fama de conquistador (Lopes Filho; 1996, 70).

Contudo, não seria cientificamente correcto chamar a este tipo de família de poligâmica, uma vez que a “(…) norma permissiva estabelece

a poligamia como sistema segundo o qual um dos cônjuges pode ter mais parceiros. Se a escolha plural implica mais mulheres, tem-se a poliginia, se implica mais homens, tem-se a poliandria, ou seja, a união de uma mulher com mais homens” (Bernardi; 1978, 271).

A poliginia seria a forma mais difundida. Bernardi considera que estruturalmente reflecte o módulo monogâmico, no sentido em que se devem realizar tantas cerimónias de casamento quantas as mulheres com quem o marido se casa. Cada mulher constitui um núcleo familiar e matrimonial próprio, o que se traduz na separação de casas, campos de cultivo, propriedades e das bases familiares mães e filhos (1978, 271).

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