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Capítulo III – Estratégia metodológica

3. Um exame crítico sobre as técnicas de investigação utilizadas

3.1. As entrevistas biográficas

Conforme se afirmou previamente, a técnica da entrevista biográfica (Ferraroti, 1990), destinada à construção de “histórias de vida” (Denzin, 1989; Atkinson, 1998; Poirier et al., 1999; Bertaux, 2005), foi o pilar, por excelência, desta investigação.

As entrevistas biográficas, observa Franco Ferraroti, são “interacções sociais

complexas” que “escondem tensões, conflitos e hierarquias de poder” (Ferraroti, 1990,

p.52). Por conseguinte, o investigador social deve atender a um conjunto de preceitos para realizar as entrevistas biográficas. Robert Atkinson abona que a melhor estratégia consiste em o entrevistador se “mostrar verdadeiramente interessado naquilo que as

(Idem), é fundamental que o entrevistador tenha destreza para conduzir a entrevista e lidar com as emoções do entrevistado, seja um bom ouvinte e demonstre gratidão no final das sessões biográficas. Na óptica de Daniel Bertaux (2005), o entrevistador deve agir, acima de tudo, com naturalidade, revelando concentração, mas, igualmente, predisposição para a comunicação.

No que respeita à presente investigação, diligenciei sempre para cumprir as normas inerentes à realização de entrevistas biográficas. Obviamente, entrevistar pessoas que são portadoras de uma doença que tem características de “estigma” (Goffman, 1988) e que já provocou mais de 25 milhões de mortos desde o ano de 1981 até à actualidade, revolver todo o mal-estar que a patologia trouxe às suas vidas nos diversos aspectos da existência, foi uma tarefa exigente. Em determinados momentos das gravações das sessões biográficas vi a minha sensibilidade ser ferida, noutros, despertou em mim o sentimento de compaixão. Ora, nas doze entrevistas que realizei, procurei, a todo o custo, evitar a indiscrição e a colocação de perguntas susceptíveis de causar melindre aos entrevistados. A título ilustrativo, Marta, uma das minhas entrevistadas, durante a primeira sessão biográfica declarou que ainda lhe custava falar sobre a sua doença quando a interpelei sobre aquilo que sentira no momento em que foi notificada do contágio pelo VIH. Até ao fim da entrevista e no decorrer da segunda sessão biográfica, eximi-me a rebater essa questão, percebendo, desde logo, o choque emocional que a notificação da seropositividade lhe causou. Foi também na gravação da primeira sessão biográfica com Marta que sobreveio em mim o sentimento de compaixão mais intenso, dadas as circunstâncias em que a utente da Abraço/Delegação Norte se contaminou com o VIH (através de relações sexuais desprotegidas com um namorado que lhe ocultou o vicio em heroína durante um ano).

É importante referir, igualmente, as dificuldades que senti em abordar a temática da sexualidade nas sessões biográficas realizadas com Marta e Liliana, em concreto as questões que formulei em relação às implicações que o contágio pelo VIH despoletou na vida sexual dos entrevistados. De facto, Marta e Liliana evidenciaram posturas mais sisudas do que os restantes entrevistados e, nessa razão, tive algum pudor em interrogá- las sobre o ritmo de actividade sexual, quer no que toca ao período que antecedeu o contágio pelo VIH, quer no que toca à actualidade. Quando chegou o momento de colocar as mencionadas questões às duas entrevistadas tive que ser afoito, mantendo um tom sério e profissional. Felizmente, Marta e Liliana responderam de forma aberta às questões que lhes coloquei acerca da temática da sexualidade. Mesmo assim, Marta

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lançou-me um olhar que exprimiu alguma repugnância quando a questionei sobre o seu ritmo de actividade sexual semanal no momento actual.

Devo sublinhar, ainda, a mudança que se verificou nas minhas representações sociais sobre os homossexuais masculinos com a realização das sessões biográficas com Eduardo e Fábio. Como ajuíza José Machado Pais, “as cabeças dos sociólogos não são

imunes aos preconceitos” (Pais, 2001, p.259), pelo que antes das gravações das

entrevistas com Eduardo e Fábio, o estereótipo que tinha formado sobre o homossexual masculino era o de uma pessoa excessivamente efeminizada e fútil. Os dois utentes da Abraço/Delegação Norte contrariaram o meu estereótipo. De facto, nenhum deles manifestou formas de comportamento características de mulheres ou indiciou entorpecimento intelectual. Pude perceber com a sucessão das sessões biográficas com Eduardo e Fábio que os homossexuais masculinos têm uma urbanidade em tudo idêntica à dos heterossexuais masculinos e prostrar as minhas pré-noções.

Continuando, o guião de entrevista biográfica foi construído à luz dos tópicos que Atkinson (1998) e Bertaux (2005) sugerem para a construção de uma “história de

vida” (conglomerando os contributos dos dois autores, são eles: nascimento e família de

origem; tradições culturais; factores sociais; a experiência da escola e da formação de adultos; amor; a inserção profissional; o emprego; eventos históricos; reforma; vida espiritual; grandes temas da vida; visão do futuro; questões de encerramento). Como é evidente, pretendeu-se articular estes tópicos com os objectivos da investigação. O tema específico sobre o VIH/Sida que se incluiu no guião da entrevista biográfica compreendeu treze alíneas (a saber: momento da vida em que se deu o contágio; via de transmissão; conhecimento do entrevistado sobre a doença no momento da contaminação; sentimentos despertados pelo contágio; dilemas éticos envolvendo a discriminação; implicações do contágio em termos das práticas culturais, sociabilidades, relações familiares, afectivas e laborais, vida religiosa, actividade sexual e visão do futuro; percepção de si enquanto seropositivo; representações sociais e atitudes sobre a sociedade envolvente; estratégias e lógicas de actuação face à seropositividade; apoios recebidos enquanto seropositivo – serviços públicos e ONG’s –; representações sociais e atitudes sobre o procedimento profissional médico; a terapêutica contra o VIH/Sida; estilo de vida e relação actual com a família, grupo de amigos, colegas ou ex-colegas de trabalho).

Cada sessão biográfica realizada contemplou um procedimento de observação directa cujo objectivo consistiu no apontamento de questões como a caracterização do

espaço físico e condições do local onde decorreu a entrevista, a linguagem verbal, a mímica e a indumentária do entrevistado, as interrupções e as interacções que precederam a seguiram a gravação da entrevista.

Foi lembrado precedentemente que se efectuou um número máximo de duas entrevistas biográficas com cada indivíduo seropositivo que integra a amostra. No essencial, as primeiras sessões biográficas serviram para fazer um apanhado geral da trajectória de vida dos entrevistados. Por sua vez, as segundas sessões biográficas abriram espaço para as rectificações (com destaque para o encadeamento cronológico de determinados acontecimentos da vida dos entrevistados) e propiciaram um aprofundamento dos núcleos temáticos de maior interesse.

Por motivos de natureza ético-deontológica, os nomes dos indivíduos seropositivos que colaboraram na minha investigação foram alterados, assim como alguns dados sócio-demográficos que facilitassem a sua identificação. Os seus lugares de classe individual, de família e de origem foram determinados por intermédio da tipologia classificatória das classes e das fracções de classes de Dulce Magalhães (2005, pp. 479 e 836). A apresentação das “histórias de vida” atendeu a um ordenamento em que se articularam as ordens “temática” e “cronológica” (Poirier et al., 1999).

Na presente investigação, as “histórias de vida” que se recolheram cumpriram as funções “analítica” e “expressiva” (Bertaux, 2005). Os testemunhos dos seis elementos da amostra permitiram a análise das suas vivências e o teste do modelo teórico (“função analítica”), e, não obstante, predispuseram-se para a elucidação de pontos de argumentação mediante a inserção de excertos das transcrições das entrevistas (“função expressiva”).

Resta, por fim, discorrer acerca das distorções associadas ao “método

biográfico”. Para Pierre Bourdieu (1986), o “método biográfico” propõe uma noção de

trajectória que desconsidera o conjunto de relações objectivas que ligaram o agente alvo de estudo aos restantes agentes incluídos no mesmo campo social e que se deparam com o mesmo mundo de possíveis. Por conseguinte, tal método debate-se com um logro de

“ilusão retórica” (Idem).

Outra inconsistência que subjaz ao “método biográfico” substancia-se na aptidão do narrador para “rearranjar a sua própria existência”, efectuando “uma

reconstituição parcialmente falsa e artificial da realidade, apagando as passagens incómodas, privilegiando os factores de coerência, a unidade da vida, em detrimento da diversidade, das eventuais contradições” (Poirier et al., 1999, p.27). Norman Denzin

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(1989) também ressalta os problemas de “ficção” e “ilusão” que marcam os estudos biográficos. No que concerne à minha investigação, a propensão para fantasiar foi mais notória em Paulo, sobretudo quando referiu que em dada altura da sua vida chegou a assaltar cerca de trinta carros por dia. Eduardo revelou, igualmente, alguma tendência para o recurso à hipérbole quando mencionou o rendimento mensal (5.000 Euros) que obteve no período em que realizou espectáculos de transformismo no ano de 2005. Pareceu ainda exagerado o relato de Marta que aludiu a um ganho de 678 contos (na respectiva época) em comissão, numa viagem de trabalho à Madeira.

Uma terceira fragilidade do “método biográfico” respeita aos equívocos verificados na intercompreensão entre narrador e narratário. De acordo com Poirier et al., “os dois parceiros não falam, por vezes, a mesma linguagem; o mais grave é

quando há um mal-entendido a propósito de palavras idênticas, às quais não se dá o mesmo significado; os continentes são os mesmos, mas os conteúdos são diferentes; o problema põe-se em termos tanto mais graves quanto o diálogo se trava, o mais das vezes, entre dois parceiros de gerações diferentes” (Poirier et al., 1999, p.27).

Reportando-me ao meu trabalho, a maior dificuldade foi mesmo compreender algumas palavras pronunciadas por Fábio, visto que é um indivíduo de nacionalidade brasileira. Registaram-se, ainda, falhas no entendimento, não obstante supridas, entre mim e Paulo quando este fez uso da terminologia específica do universo “junkie”. Para fechar, durante a realização das doze sessões biográficas fui obrigado a enformar um contrabalanço entre o meu “habitus” (Bourdieu, 1979), na condição de entrevistador, e o “habitus” dos entrevistados. Nesse sentido, utilizei sempre um registo de linguagem corrente, no intuito de facilitar a intercompreensão entre mim e os entrevistados.