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Capítulo III – Estratégia metodológica

1. Uma “triangulação intra-métodos” predominantemente qualitativa

A “triangulação” é uma noção antiga que teve a sua génese nas disciplinas da topografia, navegação e da logística castrense, assumindo uma significação idêntica nos referidos três campos de conhecimento, a saber, “a utilização de pontos de referência

múltiplos para localizar a posição exacta de um objecto no espaço” (Cea D’Ancona,

1999, p.47).

No âmbito da investigação social, a noção de triangulação é conotativa, aludindo à “aplicação de metodologias diferentes no estudo da mesma realidade social” (Idem).

Martin Bauer e George Gaskell (2000) são dois autores que têm imprimido esforços a fim de ultrapassar o tradicional conflito que opõe a pesquisa quantitativa e a pesquisa qualitativa.

A concretização do intento de Bauer e Gaskell passou pela enunciação de cinco pressupostos. O primeiro pressuposto é o de que “não há quantificação sem

qualificação”, ou seja, a medição dos factos sociais pressupõe, indiscutivelmente, uma

diferenciação qualitativa das categorias sociais.

O segundo pressuposto refere que “não há análise estatística sem

interpretação”. Quer isto dizer que a pesquisa quantitativa se debate com a questão da

interpretação, pelo que, argumentam os dois autores, “(…) é incorrecto assumir que a

pesquisa qualitativa possui o monopólio da interpretação, com o pressuposto paralelo de que a pesquisa quantitativa chega a conclusões quase que automaticamente” (Bauer

e Gaskell, 2003, p.24).

No seguimento, Bauer e Gaskell preconizam, também, o pressuposto de

“pluralismo metodológico dentro do processo de pesquisa: além da lei do instrumento”. Noutros termos, apologiza-se a adopção de uma “visão holística do processo de investigação” que combine as potencialidades das metodologias

quantitativa e qualitativa.

O quarto pressuposto tem em deferência a “ordenação do tempo”. A este respeito, é enaltecida a importância actual da metodologia qualitativa na fase de pós- ordenamento do processo de pesquisa, não se restringindo, meramente, à fase exploratória.

Capítulo III – Estratégia metodológica

Em quinto e último lugar, os dois autores preceituam um “discurso

independente dos padrões de boa prática”. A ideia geral contida neste pressuposto é a

de incremento de procedimentos e padrões que permitam identificar práticas adequadas e práticas desadequadas, de modo a conferir maior autonomia e plausibilidade à pesquisa qualitativa.

De facto, o pressuposto de “pluralismo metodológico” que Bauer e Gaskell enaltecem é partilhado por autores como John Creswell – que utiliza a designação

“investigação combinada” – (1994), Cea D’Ancona – que utiliza a designação “triangulação metodológica” – (1999), José Madureira Pinto – que utiliza a designação “centrifugação e centripetação da análise” – (1984) ou Teixeira Lopes – que utiliza a

designação “ecletismo metodológico” – (2000).

A estratégia metodológica da presente investigação passou por uma

“triangulação intra-métodos” (Cea D’Ancona, 1999) predominantemente qualitativa,

com recurso às técnicas da entrevista biográfica (Ferraroti, 1990), visando a construção de “histórias de vida” (Denzin, 1989; Atkinson, 1998; Poirier et al., 1999; Bertaux, 2005), e da análise de conteúdo, em específico a análise categorial temática e a contagem frequencial (Ghiglione e Matalon, 2001). Durante as gravações das entrevistas biográficas foi, também, utilizada a técnica da associação livre de palavras (Amâncio e Oliveira in Vala e Monteiro, 2002).

Esta opção por uma “triangulação intra-métodos” predominantemente qualitativa justifica-se pela natureza dos objectivos gerais deste estudo, em particular compreender a forma como indivíduos seropositivos da cidade do Porto geriram a sua vida depois de tomarem conhecimento do contágio pelo VIH.

Com efeito, foi intuito da presente investigação perceber as implicações que o conhecimento da infecção pelo VIH despoletou ao nível das práticas sócio-culturais e sistema de representações sociais (Vala e Monteiro, 2002) dos mencionados sujeitos, enfatizando-se, nesta lógica, o seu discurso.

Em linhas muito sintéticas, tratou-se de recolher informação sobre as suas experiências de vida para, assim, interpretar o significado que conferem ao seu “mundo

vivido”.

Como facilmente se pode entender, foram seguidos os preceitos fundamentais do método da “Sociologia Compreensiva” que Max Weber (1944, 1965) propôs. De acordo com o autor alemão, o desígnio da “Sociologia Compreensiva” consiste em elucidar a dimensão subjectiva da acção social (Idem).

Ressalve-se, porém, que os procedimentos de mensuração não foram elididos neste estudo. Conforme se salientou atrás, lançou-se mão do “método da contagem

frequencial” (Ghiglione e Matalon, 2001) no âmbito da análise de conteúdo das

entrevistas biográficas, procedimento que propiciou a identificação dos seus núcleos de interesse.

O grande esteio desta investigação foi a técnica da entrevista biográfica (Ferraroti, 1990), com o objectivo de conceber “histórias de vida” (Denzin, 1989; Atkinson, 1998; Poirier et al., 1999; Bertaux, 2005). Segundo as palavras de Robert Atkinson a “história de vida é a essência daquilo que aconteceu a uma pessoa”, representando “uma forma privilegiada de compreender o passado e o presente, e, ao

mesmo tempo, deixar um legado para o futuro” (Atkinson, 1998, p.8). Não obstante,

este método destina-se, também, a compreender o modo como as vidas individuais interagem com o todo social (Idem). O sustentáculo do “método biográfico” é o conhecimento e a interpretação subjectiva e inter-subjectiva das experiências de vida dos sujeitos (Denzin, 1989).

No caso particular deste estudo, a tónica colocada nas “histórias de vida”, recolhidas através da realização de “entrevistas biográficas”, prende-se com a necessidade imperiosa de obter uma visão da vida de indivíduos seropositivos da cidade do Porto “como um todo” (Atkinson, 1998), considerando, na íntegra, as várias etapas da sua trajectória, no intuito de evitar uma perspectiva redutora e sincrónica que atendesse, tão-somente, ao período cronológico que se seguiu ao conhecimento da infecção pelo VIH.

De facto, para depreender, efectivamente, a “estratégia” (Certeau, 1990) de vida que estes indivíduos adoptaram após tomarem conhecimento da sua seropositividade e os fundamentos que estiveram na base dessa deliberação, foi essencial passar revista ao contexto sócio-cultural em que nasceram e cresceram (Parsons e Bales, 1955), ao seu

“estilo de vida” (Lalonde, 1974; Bourdieu, 1979; Giddens, 1994) – e, em especial, a sua

propensão para os comportamentos de risco – e aspirações durante os ciclos sucessivos da sua existência, e, ainda, à forma como se desenvolveram as suas representações sociais face à doença Sida, em particular o modo como evolui a doença e os seus estados clínicos, assim como as vias de transmissão. O “testemunho vivido” que é a

“história de vida única” (Poirier et al., 1999) apresentou-se, portanto, como o método

mais adequado para este trabalho de investigação, dada a sua questão orientadora e os objectivos gerais.

Capítulo III – Estratégia metodológica

De modo a garantir o acesso à população de indivíduos seropositivos da cidade do Porto pela via diplomática (Burguess, 2001), foi feita uma aproximação à instituição Abraço/Delegação Norte, cujas instalações se situam em Vila Nova de Gaia, e ao Hospital de Joaquim Urbano (H.J.U.), o centro de tratamento de doenças infecciosas com maior relevo na cidade do Porto, conforme se mencionou anteriormente. Consegui obter permissão nas duas instituições para desenvolver o meu trabalho de investigação, que pressupunha a realização de entrevistas biográficas com os seus utentes. Os episódios que tiveram lugar na pesquisa de terreno serão apresentados, sumariamente, no subcapítulo seguinte.

A amostra deste estudo, de tipo “intencional” (Almeida e Pinto, 1995) é composta por seis indivíduos seropositivos, três do sexo masculino (Eduardo, Fábio e Paulo) e três do sexo feminino (Marta, Andreia e Liliana). Eduardo, Fábio, Marta e Andreia são utentes da Abraço/Delegação Norte e contaminaram-se com o VIH pela via sexual. Nos casos de Eduardo e Fábio, a infecção deu-se por meio de relações homossexuais desprotegidas. Quanto a Marta e Andreia, infectaram-se através de relações heterossexuais desprotegidas. Já Paulo e Liliana são pacientes do H.J.U.. Paulo não sabe ao certo se o seu contágio pelo VIH ocorreu por intermédio da partilha de agulhas de seringas ou pela via sexual (relações heterossexuais desprotegidas), mas supõe que a primeira hipótese é mais viável. Por sua vez, Liliana assegurou que a sua seropositividade resultou da partilha de agulhas de seringas.

Efectivamente, a amostra recolhida não contempla indivíduos seropositivos infectados através da recepção de transfusões de sangue ou pela via peri-natal, por um lado, nem um indivíduo do sexo masculino contaminado, de certeza absoluta, através de uma relação heterossexual desprotegida, factos que representam, claro está, estrangulamentos.

Sublinho que depois de ter logrado a permissão da Abraço/Delegação Norte e do H.J.U. para pôr em curso a pesquisa, expressei a minha intenção junto dos profissionais das duas instituições (no âmbito da Abraço/Delegação Norte, o Psicólogo Gonçalo Lobo, a Assistente Social Ingride Ferreira e a Educadora Social Márcia Rodrigues; no âmbito do H.J.U., a Dra. Teresa Duarte, funcionária do Secretariado de Comissão Ética – estes profissionais cumpriram o papel de intermediários no processo de negociação de entrevistas biográficas com os indivíduos seropositivos –) em construir uma amostra de indivíduos seropositivos abrangente em termos de género e das vias de transmissão da doença. A instituição Abraço/Delegação Norte mostrou-se mais receptiva em atender ao

meu pedido. No entanto, apesar da diligência e da boa vontade dos profissionais da mencionada instituição, não foi possível incluir na amostra indivíduos seropositivos contaminados por meio da recepção de transfusões de sangue e pela via peri-natal, bem como um indivíduo do sexo masculino infectado, com toda a certeza, por meio de uma relação heterossexual desprotegida. A explicação que tive da parte dos profissionais da Abraço/Delegação Norte foi que os poucos utentes da instituição cujo perfil obedece às supracitadas características em termos da via de transmissão da doença e do género, no momento em que começaram a ser negociadas as entrevistas biográficas (fins de Março de 2008), viviam uma fase de instabilidade emocional e, como tal, entenderam que seria inoportuno abordá-los para colaborarem na minha investigação. Evidentemente, acatei a justificação e não insisti mais nessa questão.

No total, realizaram-se doze entrevistas em profundidade (foram efectuadas, portanto, duas sessões biográficas com cada elemento da amostra). Poirier et al. advogam que “a história de vida realiza-se sempre a partir de entrevistas repetidas” (Poirier et al., 1999, p.50), pelo que “a repetição das entrevistas é condição necessária

para o aprofundamento da informação e do seu controlo” (Idem). A realização de um

número máximo de duas sessões biográficas por cada indivíduo seropositivo incluído na amostra prendeu-se, essencialmente, com a disponibilidade que estes revelaram para colaborar no meu estudo (frise-se, todavia, que a Abraço/Delegação Norte só permitiu que os seus utentes fossem entrevistados nas instalações da própria instituição, em dias úteis, entre as 9 horas e as 18 horas e 30 minutos). De facto, quatro elementos da amostra (Eduardo, Fábio, Marta e Andreia) exercem uma actividade profissional, circunstância que limita o seu tempo livre para cooperarem em estudos académicos. Neste sentido, o investigador social, quando está a concretizar a pesquisa de terreno, deve pautar a sua acção pelo bom senso e evitar, a todo o custo, ser impertinente com o seu objecto de estudo, ultrapassando os limites do razoável. Sobre esta matéria, a questão que Marta me colocou momentos antes da realização da segunda sessão biográfica é eloquente: “Ivo, a entrevista vai demorar tanto como a primeira?”. Inclusive Liliana, que está desempregada de momento, revelou algum desprazer em conceder-me a segunda sessão biográfica.

De modo a manifestar o meu agradecimento aos seis indivíduos seropositivos que participaram neste trabalho de investigação ofereci pequenas lembranças a cada um deles após a gravação das segundas sessões biográficas. A Paulo, o primeiro elemento da amostra com quem foram realizadas duas entrevistas aprofundadas, ofereci um porta-

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chaves oficial do F.C.P., visto que é um adepto ferrenho do clube. Liliana foi a segunda pessoa incluída na amostra a terminar o relato da sua história de vida. Esta mulher é fã dos The Doors há cerca de três décadas. Por esse motivo, resolvi presenteá-la com um livro de poemas da autoria de Jim Morrison, o “frontman” da banda norte-americana dos anos 60.

Na medida em que os gastos com as prendas de Paulo e Liliana ultrapassaram o orçamento inicialmente previsto, optei por oferecer garrafas de vinho aos restantes elementos da amostra. Devo admitir que a ideia da oferenda de garrafas de vinho não foi a mais acertada, uma vez que se tratam de indivíduos infectados com o VIH que estão a cumprir o tratamento anti-retroviral. Por lapso, olvidei esta circunstância, o que me valeu uma pequena nota crítica da Dra. Márcia Rodrigues, recordando, uma das técnicas da Abraço/Delegação Norte.

No decorrer da investigação fomentou-se, sempre, a “circularidade de relações

entre a teoria e o processo de demonstração empírica” (Pinto, 1984). Com efeito, foi

através da realização de uma entrevista em grupo com a Dra. Cristina Sousa (Coordenadora Geral da Abraço/Delegação Norte), a Dra. Carla Pereira (Enfermeira da mesma instituição) e o Dr. Gonçalo Lobo (como já foi referido, Psicólogo da Abraço/Delegação Norte), no dia 6 de Março de 2008, que tomei conhecimento de que o VIH/Sida constitui, desde o ano 1996, uma doença crónica. Este achado constrangeu- me a reajustar os objectivos gerais do meu trabalho (aqueles que constaram no Projecto de Investigação entregue no mês de Dezembro de 2007) e a imprimir um novo exercício de pesquisa bibliográfica (as obras consultadas até essa data eram perfeitamente obsoletas).

A “dinâmica da pesquisa observacional” (Idem) permitiu, igualmente, lograr uma maior “clarificação dos conceitos” (Idem), em específico no que se refere aos aspectos médicos do VIH/Sida (desenvolvimento da doença, acompanhamento médico e tratamento anti-retroviral). Os relatos de vida dos indivíduos entrevistados, designadamente os de Paulo e Andreia, puseram a nu outro aspecto não descortinado, a princípio, pelas leituras e entrevista exploratória (Quivy e Campenhoudt, 2003), o uso obrigatório do preservativo nas trocas sexuais entre casais seropositivos (um membro do casal tem, por norma, uma carga viral mais elevada do que o outro e, como tal, pode verificar-se a reanimação da replicação do vírus do parceiro com menor carga viral). Confirmei este facto através de um diálogo por telefone com uma das enfermeiras do Centro de Terapêutica Combinada (C.T.C.) do H.J.U..

O propósito de um “estudo de casos” como o que foi levado a cabo não consiste na generalização estatística, antes em dar achegas às teorias publicadas (Yin, 1994) ou avançar novas pistas para o desenvolvimento de investigações futuras (Stake in Denzin e Lincoln, 1994).

Com efeito, no âmbito do método do “estudo de casos” (Bell, 2008), o objectivo de representatividade estatística é acessório, valorizando-se a singularidade, o contexto e a história dos casos investigados (Stake in Denzin e Lincoln, 1994). Um caso, abona José Machado Pais, “não pode representar o mundo, embora possa representar um

mundo no qual muitos mundos semelhantes acabam por se reflectir” (Pais, 2001,

p.109).

2. Algumas notas sobre a pesquisa de terreno e as dificuldades