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Capítulo V – O VIH em mulheres infectadas pela via sexual: os relatos de vida de Marta e Andreia

2. O percurso de Liliana: “Quer dizer, consumia de vez em quando (referindo-se ao facto de ter mantido o hábito de consumo ocasional de cocaína em paralelo com o

tratamento anti-retroviral, durante dez anos)… Era uma vez por mês, quando recebia… Mas, era só cocaína… (…) Agora, não, graças a Deus… (…) Eu, agora, estou junta com um rapaz, que ele está ali (referindo-se à sala de espera do C.T.C. do H.J.U.)… Ele também tem (entenda-se é seropositivo), mas a gente não usa preservativo…”

Liliana, uma antiga empregada de limpeza e actual paciente do H.J.U., é natural de Vila Nova de Gaia, cidade onde nasceu no dia 7 de Agosto de 1962. Esta mulher tem uma origem pequeno burguesa técnica e de enquadramento intermédio. O pai era encarregado geral de uma empresa de autocarros (proveio de uma família pequeno burguesa executante) e a mãe era costureira (Liliana não conheceu os avós maternos).

A actual paciente do H.J.U. cresceu na freguesia de Madalena. No decorrer dos primeiros anos de vida, o seu agregado familiar era formado pelos pais e três irmãos (dois rapazes e uma rapariga; Liliana tem mais três irmãs e um irmão, que nasceram posteriormente). Esta mulher residia com a família numa “ilha” e tinha como vizinhos três tios e uma tia da parte da sua mãe. As relações no seio da sua família foram perturbadas pelo comportamento adúltero constante do pai em relação à mãe. Apesar disso, frisou que a sua família era “muito unida”.

Do período da infância, Liliana relembrou com especial carinho as idas a festas de carácter popular, os passeios com amigos e o convívio familiar:

“Ai, era ir aos bailes… Sei lá?... Passear com os meus amigos… Os tempos que eu vivia com a minha família, que eram muito bons… Era tudo muito bom… A minha infância foi muito boa… Muito boa mesmo…”

Esta mulher recebeu uma educação assente em valores conservadores. Liliana frequentou a catequese desde cedo e cumpriu os sacramentos do Baptismo e da 1ª e 2ª Comunhões. Todos os dias, rezava em casa antes das refeições e antes de se deitar. Ao Domingo, ia sozinha à missa porque a mãe tinha muito trabalho como costureira e o pai e os irmãos não tinham esse hábito.

A passagem pelo sistema educativo foi iniciada aos 6 anos de idade, numa escola primária da freguesia de Madalena, próxima de sua casa. O Ciclo foi feito na Escola da Rosa, situada no centro de Vila Nova de Gaia. Liliana completou o 6º Ano de

Capítulo VI – A experimentação da seropositividade entre ex-toxicodependentes

escolaridade, com 13 anos, averbando uma reprovação na 1ª Classe. Esta mulher teve sempre o sonho de ser médica, mas abandonou a escola depois de concluir o 6º Ano de escolaridade para auxiliar a sua mãe nas tarefas como costureira, dada escassez de rendimentos do agregado familiar:

“Mas, como naquela altura o dinheiro era pouco… E éramos muitos irmãos… Eu tive que deixar de estudar… Tive pena, porque eu quis ser médica e não consegui derivado a ajudar a minha mãe, não era?… Primeiro estava ela… E, para mais, ela era muito doente… Ainda por cima… Trabalhava sem poder… Tinha bronquite asmática…”

Os seus irmãos mais velhos também abandonaram a escola de forma precoce para colaborarem na manutenção do agregado doméstico (os irmãos trabalhavam na empresa de autocarros onde o pai estava colocado; a irmã laborava numa fábrica de confecções).

Liliana coadjuvou a sua mãe nas actividades de costura entre os 13 e os 19 anos. Durante esse período, prestou cerca de quatro horas de trabalho diárias como auxiliar de costura da sua mãe. Em termos gerais, as suas tarefas consistiam em retirar os alinhavos e descoser as bainhas. Além disso, também fazia entregas dos serviços da mãe às clientes. Embora não tivesse salário fixo, a mãe providenciava-lhe dinheiro sempre que precisava.

O grosso da sua adolescência foi passado, essencialmente, no espaço doméstico a auxiliar a mãe na costura. Durante o período adolescente, esteve sempre proibida pelos pais de realizar saídas nocturnas.

Com 16 anos, iniciou-se no consumo de haxixe com o grupo de amigos da freguesia de Madalena. Liliana fumava esta substância quase todos os dias, nessa época. O hábito de fumar haxixe com regularidade permaneceu até aos 31 anos, momento da sua vida em que se iniciou na heroína e na cocaína.

Esta antiga empregada de limpeza teve o seu primeiro envolvimento amoroso aos 17 anos, com um vizinho da freguesia de Madalena. Foi neste namoro que encetou a sua vida sexual. O seu namorado opôs-se, desde o princípio da relação, à utilização do preservativo. O método contraceptivo que Liliana adoptou foi a pílula feminina. Contudo, tal método anticoncepcional não foi suficiente para evitar uma gravidez, ainda com 17 anos. Liliana acabou por realizar um aborto que quase lhe roubou a vida numa

clínica da cidade do Porto. O namoro com o vizinho da freguesia de Madalena terminou ao fim de sete anos em virtude dos maus-tratos constantes que aquele lhe infligia por crises de ciúme:

“Porque ele era muito ciumento e batia-me com os ciúmes… E a gente teve que se separar por causa disso… (…) Ao princípio, pensávamos que era para o futuro… Mas, depois, começámos a ver que era só discussões… Ele batia-me muito, por tudo e por nada… Era muito ciumento… Ciúmes loucos, mesmo… Loucos… (…) Eu nem à janela podia ir, veja lá? Não é para me gabar, mas eu era muito bonita quando era nova… Tinha esses azares…”

No decurso da sua adolescência (segunda metade da década de 70 do século XX), o VIH/Sida era uma patologia que ainda não tinha despontado na sociedade portuguesa (conforme se mencionou atempadamente, o registo dos primeiros casos de Sida em Portugal data do ano de 1983). Como tal, a temática do VIH/Sida nunca foi aflorada pelos seus familiares ou pelo grupo de amigos, nessa fase da vida.

No ano de 1983, tinha Liliana 21 anos, a sua mãe faleceu vítima de um problema cardíaco. Esta mulher sentiu muito a perda da mãe.

A protagonista desta história de vida teve sempre maior apego pela mãe do que pelo pai. Quando evocou a imagem da sua mãe, fez uma associação mental imediata à transmissão dos conhecimentos de costura:

“Gostava muito do meu pai, mas preferia a minha mãe… Porque a minha mãe era mais meiguinha… Tinha outro feitio… O meu pai era mais brutal, era mais egoísta… (…) Eu, hoje, sei costura à custa dela… É essa lembrança que eu tenho dela… Tenho várias, mas principalmente essa… Coitadinha… Ensinou-me a costurar… E eu levava a roupa às clientes… Fazia, assim, os recadinhos dela…”

Logo depois de cessar a actividade como auxiliar de costura da mãe, Liliana iniciou funções numa empresa do sector têxtil, na cidade do Porto, como operadora de uma máquina automática de cortar tecidos.

Nesta fábrica, trabalhava de 2ª a 6ª Feira, cerca de 6 horas por dia (entrava às 8 horas e saía às 15, usufruindo de uma hora de pausa para almoço). O salário mensal que auferia era de “vinte e tal contos”, segundo as suas palavras. Esta mulher exerceu as

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funções de operadora de máquina automática de corte de tecidos durante três anos, altura em que a empresa entrou em falência.

A sua experiência profissional seguinte foi como empregada de limpeza. Liliana começou a desempenhar a actividade de empregada de limpeza numa mansão particular de proprietários brasileiros que viviam em Vila Nova de Gaia. Na referida mansão dos proprietários brasileiros, laborava de 2ª a 6ª Feira, à volta de 4 horas por dia (começava às 14 horas e terminava às 18). O vencimento mensal rondava os 60 contos.

Nesta altura, continuava a viver com o pai e os irmãos na “ilha” situada na freguesia de Madalena.

Com 24 anos, assumiu nova relação afectiva com um indivíduo residente na zona de Candal, em Vila Nova de Gaia. Em similitude com aquilo que aconteceu durante o primeiro relacionamento amoroso, o seu segundo namorado repelia a utilização do preservativo. Para evitar a concepção, Liliana tomava a pílula feminina. Este relacionamento amoroso teve a duração de sete anos. Novamente, os maus-tratos incessantes do namorado sobre si ditaram o fim da relação.

No período compreendido entre o término do primeiro namoro e o início do segundo, esta mulher não substanciou trocas sexuais.

Aos 31 anos, teve um “affaire” de três meses com um indivíduo de origem sueca que tinha familiares que residiam na freguesia de Madalena (tratou-se do primeiro relacionamento que teve depois do termo do segundo namoro). Liliana e o indivíduo de origem sueca eximiram-se a utilizar o preservativo nas relações sexuais, uma vez que a primeira já estava familiarizada com a toma da pílula anticoncepcional feminina.

Foi com este indivíduo sueco que teve a sua iniciação na heroína (substância que começou por fumar através da prata) e na cocaína (substância que começou por consumir pela via nasal).

Ao longo de um ano, consumiu as duas drogas diariamente sem recorrer à via endovenosa. Esta mulher comprava doses de heroína e cocaína a traficantes residentes na freguesia de Madalena. Cada dose individual das duas drogas tinha o preço de 1.000 Escudos, naquela época. O seu irmão mais novo também era consumidor regular de drogas.

Durante este momento da sua vida, Liliana mantinha a ocupação como empregada de limpeza, prestando serviço, no entanto, na mansão de uma senhora de naturalidade portuguesa que morava na zona de Coimbrões. Enquanto empregada de limpeza da senhora residente na zona de Coimbrões, continuou a exercer 4 horas de