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CAPÍTULO 2. O LETRAMENTO ESCOLAR E A TEORIA DA PRÁTICA

2.6. ENUNCIADO DA HIPÓTESE

No contexto das pesquisas em Linguística Aplicada, quando se discute as práticas sociais de letramento veiculadas na escola pública brasileira, é comum a consideração de uma hipótese de cunho sócio-cultural, segundo a qual as famílias estão longe das práticas de letramento legitimadas pela sociedade.

Esse aspecto aproxima o trabalho clássico de Heath (1983) das considerações de Lahire (2002, p. 184, grifos meus) quanto à constituição do universo familiar como um “[...] local pedagogicamente incitante, que faça a criança participar em atividades que necessitam de leitura e escrita, porque fornecem modelos de identificação práticos próprios para dar vontade de imitar, de fazer como”. Eles são modelos globalmente “difusores” de efeitos cognitivos ou organizacionais ligados à incorporação pelos pais de uma cultura da escrita; estando os filhos, então, em condições ideais para construir habilidades, representações, gostos pela escrita e pela leitura:

a combinação desses diferentes ingredientes só é encontrada nas famílias cujo grau de antiguidade de acesso à escola e à escrita é particularmente elevado. De fato, tudo opõe as crianças que têm avós e/ ou pais quase analfabetos ou com dificuldades com a escrita àqueles cujos pais, avós e, às vezes, várias gerações anteriores não apenas são ou foram alfabetizadas, mas conheceram longos percursos escolares. (LAHIRE, 2002, p.185).

Paralelamente, há uma grande preocupação de ordem psicopedagógica com a boa ou má formação dos professores, com as noções de currículo e de disciplinas escolares que se ligam às ideias de controle do processo pedagógico, estabelecimento de prioridades, segundo as finalidades da educação (de acordo com o público a que se destina e com interesses em disputa), ordenação, sequenciação e dosagem dos conteúdos do ensino.

Desse quadro macrossocial, as pesquisas sobre formação do professor, em língua materna no Brasil vêm se empenhando no conhecimento de aspectos micro-etnográficos no que diz respeito às especificidades das práticas de ensino que envolvem o letramento.

Os estudos contemporâneos avançam e explicitam que os descaminhos e insucessos dessas práticas se devem, de um lado, ao desconhecimento, por parte dos professores, de pressupostos da psicolinguística para uma ação na Educação Infantil e Ensino Fundamental; da falta de entendimento das inovações teóricas sobre ensino e linguagem e formas de letramento prescritas pelas mudanças legais; e de outro, ao fato de que as inovações teóricas provindas da academia que visam a fortalecer as práticas de ensino desses professores, apesar de competentes, não funcionam em sala de aula, caso não sejam bem compreendidas e incorporadas ao saber fazer tradicional desse professor, o que faz com que o professor passe por um processo de deslegitimação de seus saberes.

Se as ações de ensino que envolvem o letramento (e dentre elas, a alfabetização), praticadas pelos professores não são as mesmas formuladas pela formação dada pela academia ou estabelecidas pelas prescrições legais, isso implica a tese de que as práticas interventivas no trabalho pedagógico cotidiano do professor nos ambientes sócio-culturais de inserção da comunidade escolar podem possibilitar o reconhecimento dos saberes hibridizados e plurais, entre o que se constitui historicamente como saber local e as injunções dos saberes “dominantes” que circulam globalmente, no processo de formação de leitura dessas professores. Isso implica uma reflexão que vá ao encontro de um contexto nem sempre possível de ser avaliado e refletido cotidianamente pelos professores que nele estão inseridos e que, por sua vez, possa subsidiar travessias por meio de práticas de ensino que envolvam letramentos, mais significativas para esses professores e para seus alunos.

A pretensão desta investigação é enveredar pelo conjunto das teorias que acreditam em práticas sociais de linguagem e em tudo que, por conseguinte, implica essa crença: práticas sociais de letramento e práticas sociais de veiculação de saberes institucionalizadas por suas agências sociais, como a escola e, intrinsecamente, a questão da formação do professor dentro de condições institucionais determinadas.

Sobre as práticas sociais de letramento situado das professoras da rede pública municipal da Amazônia paraense, esta tese pretende não ‘perder de vista’ o campo das relações sociais mais amplas em que professoras, possíveis agentes sociais e culturais de letramento, se constituiram socialmente. Dessa forma, o campo educacional, onde estão família e escola, insere-se nos Campos Sociais (no sentido

bourdieusiano do termo, interpretado por Lahire (1998), adaptados da sociologia da prática), que designam um espaço delimitado de posicionamentos e de tomadas de novos posicionamentos por meio dos quais os valores transitam, por intermédio das ações dos agentes culturais e de letramento que possuem trajetórias ou carreiras e se engajam em vários posicionamentos.

Nesses campos sociais, circulam valores, tais como o capital e o poder econômico simbólico; e as posições dos agentes podem ser ocupadas somente por

coletividades (organizações profissionais, “comunidades”, classes, corpo

departamental), cujas interações são mediadas pela escrita, por meios eletrônicos ou por outros instrumentos. Assim, hospital, universidade, profissão, disciplina acadêmica, tribunal, supermercado, aeroporto, congregação religiosa, vizinhança são todos campos sociais que formularam pluralidades de repertórios de esquemas de ações incorporados socialmente – habitus, igualmente utilizado neste trabalho a partir do redimensionamento que os estudos de Bernard Lahire dá a esse termo bourdieusiano.

Uma forma de visualização dessas injunções pode ser apresentada na seguinte configuração:

GRÁFICO 3 – Arqueologia da tese

Posicionamentos

Tomadas de novos posicionamentos

ESQUEMAS DE HABITUS

CAMPO EDUCACIONAL

Pluralidade de repertórios de esquemas, de disposições e de percepções: nos discursos em ação sobre ensino de leitura e alfabetização.

Pluralidade de repertórios de esquemas, de disposições e de percepções: nos discursos narrativos sobre formações de leitura em forma de reflexões. 1. Não reconhecimento da oralidade

2. Correlações entre aquisição da escrita e o desenvolvimento cognitivo

MODELOS DE LETRAMENTO AÇÕES DOCENTES (discursos em ação )

Os usos de teorias e saberes em ação

CAPÍTULO 3. IMPLICAÇÕES METODOLÓGICAS: