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LETRAMENTO COMO UMA PRÁTICA SOCIAL SITUADA

CAPÍTULO 2. O LETRAMENTO ESCOLAR E A TEORIA DA PRÁTICA

2.3 LETRAMENTO COMO UMA PRÁTICA SOCIAL SITUADA

O letramento define-se, hoje, como um conjunto de práticas sociais ligadas, de uma ou de outra maneira, à escrita, em “[...] contextos específicos, para objetivos específicos” (KLEIMAN, 1995, p. 19). Nesses contextos, como a escola, por exemplo, as práticas letradas passam, então, a ser apenas um tipo de prática social de letramento, que, embora continue sendo, nas sociedades complexas, um tipo dominante – relativamente majoritário e abrangente –, desenvolve apenas algumas capacidades e não outras.

Práticas de letramento precedem e sucedem a alfabetização escolar, visto que em certas classes sociais as crianças são letradas, no sentido de possuírem estratégias orais letradas, antes mesmo de serem alfabetizadas. Isso quer dizer que os alunos não são um depósito vazio e zerado antes da alfabetização, que o educador estaria enchendo com informações mecânicas e institucionais, por meio da escolarização, o que já fora criticado por Paulo Freire com os estudos sobre “educação bancária”, na década de 80.

As crianças já possuem sua peculiar capacidade de leitura, dentro do seu contexto social, para sobreviver em meio ao grupo em que vivem. A alfabetização, como prática do letramento, trará a essas crianças capacidades, competências, habilidades diversas para que elas se envolvam de forma autônoma com as variadas demandas sociais da leitura e da escrita.

O ponto de virada para essa perspectiva foram os estudos de cunho antropológico e sociolingüístico realizados na década de 80, os quais consolidaram um novo olhar para investigar os usos da escrita, os chamados “New Literacy Studies” – NLS (em GRAFF, 1979; SCRIBNER e COLE, 1981; HEATH, 19383; STREET, 1984, 1993; GEE, 1986; 1996; SCOLLON e SCOLLON, 1981; BARTON, 1994);conhecidos no Brasil como Estudos de Letramento. Nessa abordagem o letramento é concebido como algo necessariamente plural: sociedades diferentes e subgrupos sociais têm diferentes formas de letramento e esse letramento tem distintos efeitos sociais e mentais em distintos contextos sociais e culturais.

Por essa vertente, as abordagens etnográficas vindas das investigações antropológicas colocaram em ‘xeque’ a dicotomia letrado/iletrado, substituindo, desse modo, as relações implícitas nessa dicotomia entre civilizado e primitivo. A importância desses estudos, como o realizado por Scribner e Cole (1976), foi questionar o vínculo que, frequentemente, se supunha existir entre o letramento e habilidades mentais de ordem superior tais como o pensamento analítico, lógico ou abstrato.

Juntamente com Street (1984), Scollon e Scollon (1981) e Heath (1983) esses estudos delinearam os novos rumos dos estudos do letramento, mobilizando uma nova compreensão para um outro sentido em termos de ensino que envolvam eventos de letramento em espaços sociais de aprendizagem, dentro ou fora da escola.

O trabalho de Street (1984) discute como uma prática específica de letramento comercial foi desenvolvida numa comunidade no Irã, durante os anos 70 e descreve as condições socioestruturais que fizeram o uso do letramento necessário e possível. O trabalho ilustra que novas práticas de letramento não são criadas aleatoriamente e estão sempre muito relacionadas às formas de letramento já em uso pela comunidade.

Foi assim, usando uma evidência empírica, que Street (1984) questionou concepção tradicional de letramento como restrita a um conjunto de habilidades técnicas e neutras que podem ser aplicadas universalmente em qualquer contexto de uso – o modelo autônomo de letramento –, e argumentou em favor de um modelo ideológico de letramento.

O modelo autônomo está pressuposto nos modelos de escolarização para analfabetos, que assumem haver efeitos sociais de melhoria econômica para esses sujeitos, independentemente da suas condições sociais, econômicas e culturais, a partir das mudanças de competências cognitivas. Essa mudança melhoraria as condições sociais dessas pessoas, tornando-as melhores cidadãos a partir do letramento escolar.

Como alternativa a esse modelo, pelo modelo ideológico de letramento é possível ter uma visão mais sensível das práticas de letramento, como atreladas a contextos particulares de utilização da leitura e da escrita e, assim, compreender como as pessoas utilizam-se da leitura e da escrita para se relacionar com a sociedade em que vivem e a identificarem-se nesse grupo.

Letramento, nesse sentido, é sempre ideológico porque está ‘atrelado’ ao contexto sócio-cultural do qual emerge e pode ser utilizado para consolidar as relações de dominação social de um determinado grupo e de marginalização para outros não dominantes, como também pode veicular contradições a essa ideologia e construir formas alternativas de letramento que possam ser revertidas em favor de quem a utiliza como um ato social (BERNIER, 1988; GEE, 1990; STREET, 1994).

Sob essa compreensão teórica, afirma-se a pluralidade dos letramentos, agora concebidos como histórica e culturalmente construídos e, por isso, inseridos em relações de poder. Por ela, é possível estudar as diversas práticas letradas, bem como elucidar as formas como as linguagens escritas podem autorizar seus usuários em contextos sociais e institucionais diferentes e, assim, possibilitar ou não o acesso

a recursos e oportunidades que se utilizam socialmente da escrita11. De fato, as práticas sociais de letramento podem viabilizar um contexto importante para se pensar no desenvolvimento de uma consciência social (nos moldes preconizados por Paulo Freire na década de 60 em diante, no Brasil), necessária para o entendimento das relações sociais numa vertente mais crítica. São importantes também para assumir os contextos culturais em que vivemos, marcados pelo hibridismo comum à contemporaneidade em que há diásporas, dispersões e desestabilizações de aspectos tradicionais pelo intercâmbio intensivo de informações, por trocas e reconstruções, assimilações, clivagens e projeções com outras formas culturais, que circulam socialmente em todas as linguagens.

Os autores ingleses Barton e Hamilton (2004 [1998]) trabalham de maneira aprofundada os conceitos de prática e evento de letramento, sendo a primeira considerada uma abstração referente ao que é feito com a escrita pelos sujeitos de uma sociedade, ou seja, a maneira pela qual esses sujeitos se apropriam da escrita e a utilizam em suas atividades diversas, permeadas (refere-se ao uso ou à atividade) por seus “valores, atitudes, sentimentos e relações sociais” (p.112). Os eventos de letramento, por sua vez, caracterizam as atividades específicas “em que o letramento tem um papel” (idem), uma função, sendo episódios observáveis que acontecem em um determinado momento histórico e cultural. Ilustrando esses conceitos, os autores trazem o exemplo de uma prática de letramento – “fazer da receita escrita” – e um evento de letramento – o momento em que alguém, “resolve fazer da receita escrita especial, porque vai receber convidados em sua casa naquele fim de semana” (p.115).

Os dois conceitos são importantes porque revelam que a aceitação tradicional da aquisição do letramento como restrito a aprender um programa e um conjunto de habilidades neutras era simplista, visto que as práticas e eventos de letramentos são sempre marcados pelas especificidades histórico-culturais que os envolvem12.

11

Ao conceber o letramento como uma reflexão do ambiente sociocultural, no qual os usuários vivem, revela-se a noção de múltiplos letramentos, não mais restritos unicamente ao campo da alfabetização escolar (LEVINE, 1986).

12

Street (2003) destaca que “um manancial de "etnografias de alfabetização" surgiu da implantação e desenvolvimento destas e de outros conceitos-chave em uma variedade de contextos internacionais, incluindo o Reino Unido (BARTON; HAMILTON, 1998); os E.U.A. (COLLINS, 1995; HEATH, 1983), a

O conceito eventos de letramento provém da ampliação feita por Heath (1982) da expressão eventos de fala da sociolinguística, usado pela primeira vez nos Estudo de Letramento por A.B. Anderson et al (1980), que o definiu como uma ocasião durante a qual a “[...] pessoa atenta a compreender signos gráficos” (p. 59- 65). Para Heath (1982), um evento de letramento, é “[...] qualquer ocasião na qual uma peça de escrita está integrada na natureza da interação dos participantes e seus processos interpretativos” (p. 93).

O conceito de práticas de letramento, por sua vez, vem sendo empregado por Street (1988); Barton e Ivanic (1991); Barton e Hamilton (1998); Bayham (1995) e Kleiman (1995), entre outros, como todos os usos e significados das práticas de leitura e escrita num contexto sócio-cultural e histórico mais amplo, incorporando assim os eventos de letramento, as crenças das pessoas e o entendimento delas sobre isso (STREET, 1995). Em outras palavras, por práticas de letramento podemos entender:

[...] o conjunto de atividades envolvendo a língua escrita para alcançar um determinado objetivo numa determinada situação, associadas aos saberes, às tecnologias e às competências necessárias para a sua realização, como por exemplo assistir aulas, enviar cartas, escrever diários. (KLEIMAN, 2005, p.12).

Assim, não se pode mais falar mais em letramento sem estabelecer as conexões entre dados empíricos e teoria social. Dessa forma, os Estudos de Letramento requerem subsídios de diferentes áreas, tais como: “[...] teorias da globalização, mídia e desenho visual, semiótica social, burocracias e relações de poder, tempo, identidade cultural e conhecimento científico” (BARTON; HAMILTON, 2000, p.12).

Daí as análises das correlações entre as ações docentes e as práticas vividas e localizadas em tempo e espaço específicos, como o fazem as pesquisas contemporâneas, mostrando como resultado que os letramentos são posicionados em relação às instituições sociais e às relações de poder que as sustentam.

Desse modo, o foco de atuação em uma determinada prática de letramento não deve ser visto como uma prática de ensino da linguagem sem África do Sul (PRINSLOO; BREIER, 1996), o Irã (STREET, 1986), a Índia (VASANTA; MUKHERJEE, 2003); o México (KALMAN, 1999); e América do Sul (AIKMAN, 1999);(STREET, 2001)”.

implicações políticas. Esse enfoque deve atentar para as relações entre ideologia e poder entre os atores envolvidos no processo educacional a partir das escolhas de linguagens específicas para práticas de letramento específicas.

A esse respeito, Street (2003) argumenta que o último estágio nos Estudos de Letramento é o foco sobre educação para trazer para o ambiente da sala de aula o conhecimento adquirido sobre a linguagem que resulta das pesquisas, mediante uma série de estudos etnográficos detalhados, nos quais se enfatize a inclusão das práticas locais e se levante propostas positivas para as intervenções do professor. Street (2003), no entanto, chama atenção para a ênfase demasiada aos aspectos locais dada pelos sujeitos envolvidos nas práticas de letramento, afirmando que as práticas de letramento não são inventadas pela comunidade. A principal crítica apresentada por esses estudos é que algumas forças globais também moldam práticas locais de letramento, às vezes negligenciadas por pesquisadores que romantizam as realidades locais. Para reconhecer que as forças globais também surtem efeitos nos usos do letramento, os estudos fora do Brasil deram um passo importante ao desmistificar a ideia de que tudo o que conta na aprendizagem da leitura e da escrita são as práticas em uso na comunidade local.

Preocupado com os recentes rumos positivistas adotados pelos governos do Reino Unido e dos EUA, Street (2003) aponta uma possível saída alternativa para as necessidades de um trabalho que evite as posições locais/globais extremas e

contemple as práticas como um fenômeno híbrido13.

O resultado dos encontros do local com o global em torno do letramento é sempre um novo híbrido e não a versão essencializada de um cada um deles. Essas práticas de letramento híbridas que são focalizadas pelos NSL, ao invés de romantizar o “local” ou conceder o dominante privilégio do suposto “global”, devem reconhecer as hibridizações produtivas entre as práticas de letramento local e as práticas de letramento da escola (STREET, 2003, p. 80).

Street (2003) destaca o trabalho de Bartlett e Holland (2002) sobre identidades em transição como suporte importante para estudos etnográficos do letramento como uma prática social, no sentido de preencher uma lacuna entre instituições sociais e indivíduo, deixada pela teoria da prática desenvolvida por Pierre Bourdieu.

13

O termo híbrido adotado por Street (2003) nos Estudos de Letramento é um conceito dos estudos culturais de Canclini (1995).

Nos estudos sobre o ensino da leitura, essas contribuições têm orientado investigações que buscam uma inserção nas práticas de ensino a partir da etnografia que incitam uma aproximação maior com os sujeitos investigados, no caso, o professor, que permitam uma contextualização de suas práticas de letramento e uma reflexão sobre seu cotidiano de ensino. A tentativa pode possibilitar ao professor alcançar uma forma de re-elaboração da sua prática, reconfigurando o percurso de sua vivência profissional. Isso porque “[...] a reflexão na prática tornou-se a palavra de ordem dos estudos sobre a formação do professor na pesquisa educativa e nos órgãos oficiais” (KLEIMAN, 2001, p. 22).

Nesse sentido, esta tese implica também o trabalho com narrativas das professoras cujas práticas foram acompanhadas durante quatro meses no Ciclo Básico I da escola SN. Para a análise, tanto das ações docentes observadas, quanto das narrativas geradas por meio de entrevistas com as professoras, trabalho com dois conceitos da teoria da prática bourdieusiana: habitus e campos sociais – a partir da interpretação e sistematização em termos de pluralidades de esquemas de ação de Lahire (2000, 2006, 2008).