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2.1 Transmutação e fixismo ao longo do século XVIII e início do XIX

2.1.2 Erasmus Darwin

Médico pouco ortodoxo, do tipo que receitava sexo como tratamento para hi- pocondria, e declaradamente ateu, Erasmus Darwin (1731-1802 - fig. 6) foi uma figu- ra de destaque na Inglaterra do século XVIII. Como entusiasta no que se referia à

13 Gustavo Caponi afirma que essa era simplesmente uma estratégia conciliadora, e que Buffon não

Revolução Industrial, ele divulgava ideias de progresso, tendo deixado contribuições para o processo de industrialização por meio de invenções, como por exemplo um moinho de vento horizontal e uma máquina de cópias para cartas e desenhos (Don- da, 2015, p. 8; McNeil, 1987, p. 5; Smith e Arnott, 2005, p. 198). Para ele, os estudos da natureza eram um prazer que ganhava vida com as discussões que ocorriam na Sociedade Lunar (Desmond e Moore, 2009, pp. 25-27). Além de participar e dirigir muitas das reuniões dessa sociedade sediada em Birmingham (The Lunar Society, 2016), Erasmus era também membro da Royal Society of London (The Royal Soci- ety, 2007) e autor de uma obra vasta que versava sobre medicina, educação e histó- ria natural, além de ter escrito diversos poemas (cf. lista das obras de Erasmus Dar- win em Wilson, 2007). Aqui, destacam-se alguns pontos das obras Zoonomia e The temple of Nature: or, the origin of society: a poem, with philosophical notes (Darwin, E., 1794, 1803), duas das obras em que, de acordo com a análise de Pedrita Donda

Fonte: Imagem retirada de http://www.erasmusdarwin.org. Acesso em 03 jul. 2016.

(2015), são aquelas em que Erasmus divulgou suas ideias sobre transmutação com mais ênfase.

Zoonomia é, primeiramente, um tratado sobre a medicina de Erasmus. Ali es- tão expressas suas ideias sobre movimentos, sistema sensorial, sistema nervoso, sono, sistema circulatório, sistema digestório, temperamentos das pessoas e doen- ças observadas; mas é lá que se encontram também suas ideias a respeito da transmutação das espécies, concentradas na seção XXXIX, intitulada “On Genera- tion”. Erasmus Darwin era um declarado adepto de Buffon, já adotando seus pontos de vista sobre a formação e a idade da Terra em obras anteriores (Garfinkle, 1955, p. 378). Ao longo do Zoonomia, mais uma vez Erasmus deixou claro que lera a obra do naturalista francês, e adotou seus pontos de vista e dados em diversas passa- gens, porém não ficou restrito ao modelo de degeneração concebido pelo naturalista francês. Como discute Ralph Colp Jr. (1986, p. 2), as causas para a transmutação apresentadas no livro de Erasmus poderiam ser diversas, entre elas uso e desuso, seleção artificial, seleção sexual e até mesmo especulações sobre a luta pela exis- tência.

Erasmus também discordou de Buffon quanto à possibilidade da existência de linhagens de seres vivos que tiveram origens totalmente independentes ao longo da história da Terra. Segundo ele, todas as espécies animais teriam derivado de um único “filamento” de vida ancestral, e se modificado, geração após geração, devido a leves mudanças no fluido que envolvia os embriões:

Se o embrião for imerso em um fluido cujo estímulo seja diferente em algum grau daquele que seria natural, [...] as novas irritabilidades ou sensibilidades adquiridas pela acumulação ou crescimento de partes organizadas pode diferir, e então produzir partes que não são simila- res às do pai.

[...]

Dessa descrição da reprodução, parece que os animais têm uma ori- gem similar, isto é, a partir de um único filamento [...] (Darwin, E., 1794, p. 497-498).

Sem ter fornecido grandes detalhes, na sequência, Erasmus apenas admitiu que as plantas que existem hoje também poderiam ter se derivado de um grupo an- cestral (Darwin, E., 1794, p. 499).

Outra grande diferença que pode ser observada entre Buffon e Erasmus Dar- win é a argumentação teleológica deste último. Qualquer mudança ocorrida natural-

mente acarreta algum tipo de melhoria para a espécie: “[...] tudo isso exatamente como é observado nas transmutações do girino, que adquire pernas e pulmões quando quer, e perde sua cauda quando essa já não lhe é mais útil” (Darwin, E., 1794, p. 502). Note-se, contudo, que essa é uma teleologia que difere da tradição em que estava inserido John Ray (cf. Solinas, 2015, cap. 3); para Erasmus Darwin, a vontade do animal é que assume o papel de causa final para as formas de seus ór- gãos:

Um grande anseio de uma parte do mundo animal consistiu no dese- jo da possessão exclusiva de fêmeas, e estes adquiriram armas para combater um ao outro por este propósito [...]

[...] A causa final dessa competição entre os machos parece ser que o animal mais forte e mais ativo propague a espécie, que deverá, en- tão, ser melhorada (Dawin, E., 1794, p. 503).

Além da possessão de fêmeas, outros “anseios” que os animais buscariam suprir seriam a necessidade de alimento e a necessidade de segurança, ambos an- seios também capazes de modificar e melhorar a espécie (Darwin, E., 1794, p. 503). Segundo Michale Ruse, Erasmus Darwin não tinha argumentos e fatos sóli- dos para realizar essas afirmações. Suas ideias seriam, então frutos de uma espe- culação que empregaria a lógica do progresso – assunto pelo qual ele era apaixona- do. Segundo Ruse, “para Erasmus Darwin, o progresso do mundo sociocultural se traduziria como evolução no mundo orgânico” (Ruse, 2016, p. 15). Esse ponto de vista de Ruse é sustentado também pela análise sistemática realizada por Pedrita Donda a respeito do caráter especulativo da obra de Erasmus (Donda, 2015)

Apesar da ampla venda do Zoonomia, “imediatamente traduzido para o ale- mão, francês e italiano” (Woodall, 1884, p. 4), essas ideias sobre a transmutação das espécies não foram bem recebidas. Ideias sobre modificação de espécies eram associadas ao pensamento francês e quem as defendia na Grã-Bretanha costumava ser considerado entusiasta da Revolução Francesa: isso não era um problema a princípio, mas, com o surgimento do império napoleônico e suas guerras para ex- pansão territorial, tudo que se relacionava com a França passou a ser visto com maus olhos (Ruse, 2016, pp. 15-16); como consequência, o sobrenome Darwin ga- nhou mais um motivo para ser “associado ao ateísmo subversivo” (Desmond e Moo- re, 2009, p. 32). Erasmus, no entanto, não deixou de divulgar suas ideias: anos mais tarde, voltou a escrever sobre transmutação em uma versão que dialogava mais

com as crenças religiosas e que se destinava a um público não-acadêmico (Browne, 2011, pp 73-75). No canto inicial de The temple of nature, ele escreveu:

DEUS, A PRIMEIRA CAUSA!14 – nesta moradia terrena A jovem natureza ceceia15, ela é a criança de DEUS. De nascimentos embrionários, suas formas variáveis melhoram, Crescem, conforme vivem, e se fortalecem conforme se movem.16

(Darwin, E., 1803, p. 19)

Erasmus Darwin parecia querer mostrar aos seus leitores como suas ideias estariam de acordo com a visão ortodoxa de que ciência e religião eram complemen- tares, não contraditórias, e que as investigações cientificas confirmariam a verdade das escrituras sagradas (Garfinkle, 1955, p. 376). Em um trecho sobre a geração espontânea, ele escreveu:

A vitalidade espontânea de animais microscópicos Então, sem pais, por nascimento espontâneo Surgem os primeiros pontinhos de terra animada (Darwin, E., 1803, Canto I, linha 227)

14 (Nota original de Erasmus Darwin) A[b] Jove principium, musæ! Jovis omnia plena. VIRGIL. (Tradu-

ção livre: De Júpiter comecemos, musas! Todas as coisas são plenas de Júpiter. VIGÍLIO)

In him we live, and move, and have our being. ST. PAUL. (Tradução livre: Nele nós vivemos, e nos

movemos, e temos nosso ser. SÃO PAULO.)

15 (Nota original de Erasmus Darwin) A produção perpétua e o aumento dos estratos de calcário das

conchas de animais aquáticos e de tudo aquilo que recai sobre eles, das secreções (recrements) dos vegetais e dos animais terrestres, é agora bem entendido a partir de nosso ampliado conhecimento de geologia; e mostra que as partes sólidas do globo estão aumentando gradualmente, e consequen- temente que ele [o globo] é jovem, pois as partes fluidas ainda não se converteram, todas, em sóli- das. Soma-se a isso que algumas partes da [T]erra e seus habitantes parecem mais jovens que ou- tras partes e outros habitantes; assim, as mais elevadas altitudes das montanhas da América pare- cem mostrar que o continente é menos antigo que a Europa, Ásia e África, pois seus cumes foram menos desgastados e os animais selvagens da América, como os tigres e crocodilos são considera- dos como menos perfeitos em relação ao seu tamanho e força, o que os apresentaria como estando, ainda, em um estado de infância ou de aperfeiçoamento progressivo. Por fim, o progresso da huma- nidade nas artes e nas ciências, que continua lentamente a se estender e ampliar, parece evidenciar a juventude da sociedade humana; enquanto que o estado imutável das sociedades de alguns inse- tos, como as de abelhas, vespas e formigas, que é comumente atribuído como instinto, parece evi- denciar a existência mais longa e a maior maturidade dessas sociedades. O caráter juvenil da [T]erra mostra que ela teve um início, ou nascimento, e é um forte argumento natural evidenciando a exis- tência de uma causa de sua produção, isso é, uma deidade.

(Observação nossa) “Cecear” significa pronunciar os sons de /c/ e /z/ como que com a “língua presa”, isso é, colocando-se a língua entre os dentes. Erasmus Darwin, aqui, faz alusão a uma criança aprendendo a falar.

16 A tradução apresentada é literal. Apresentou-se, aqui, apenas uma preocupação em conservar o

E acrescentou, no apêndice:

Preconceitos contra essa doutrina I. A PARTIR de erros conceituais dos ignorantes ou supersticiosos, tem-se pensado que há algo de profano em falar a favor da produção vital espontânea, como se isso contradissesse a escritura sagrada, que diz que Deus criou animais e vegetais. Eles não se lembram que Deus criou todas as coisas que existe, e que estas têm estado, des- de o começo, em um estado perpétuo de melhoria, que se nota a partir do próprio globo, bem como dos animais e vegetais que o habi- tam. E, por fim, de que há mais dignidade em nossa ideia do supre- mo autor de todas as coisas quando nós o imaginamos como sendo a causa das causas, do que a causa simples de eventos que vemos

[...] (Darwin, E., 1803, Apêndice, p. 1).

Essa obra viria a ser publicada apenas após a morte de Erasmus, mas nem isso e nem os argumentos de Erasmus impediram que o nome Darwin virasse, mais uma vez, alvo de críticas. “Parear-se com monstruosidades absurdas”, “negar total- mente qualquer interferência da deidade na criação e preservação de tudo o que existe”, “desvio do senso comum e da filosofia sã”, “filosofia irreal e ininteligível” e “insulto ao bom gosto e ao bom senso” são alguns dos comentários compilados por Norton Garfinkle sobre as ideias de Erasmus a partir de revistas da época, como Anti-Jacobin Review e The British Critic17 (Garfinkle, 1955, p. 386).