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2.2 Charles Darwin e o conceito de seleção natural

2.2.6 O Origem das Espécies e seu impacto

Após ver o trabalho publicado pela Linnean Society, Wallace escreveu para Hooker, agradecido pela publicação e pelo reconhecimento, uma vez que Darwin claramente tinha a prioridade de publicação, e acrescentou:

Teria me causado muita dor e arrependimento se o excesso de gene- rosidade do Sr. Darwin o levasse a publicar meu trabalho desacom- panhado de suas visões muito anteriores e, sem dúvida, muito mais completas a respeito do assunto (Darwin Correspondence Project, “letter no. 2337”).

Darwin, por sua vez, ficou mais tranquilo a respeito de seus medos em publi- car. Não houve reação à publicação conjunta sobre a modificação de espécies – o presidente da Linnean Society, Thomas Bell (1792-1880), inclusive lamentara que o ano não fora “marcado por uma dessas descobertas admiráveis que revolucionaram [...] o departamento de ciência” (Desmond e Moore, 2009, p. 491). Naquele momen- to, Darwin estava com outras preocupações: seu filho, Charles Warring Darwin, de dois anos, havia falecido em função de um surto de escarlatina; sua filha, Henrietta,

também estava doente; e sua irmã mais velha, Marianne, faleceu 15 dias após seu menino (Desmond e Moore, 2009, pp. 491-492).

Ainda que preocupado com a família, Darwin tinha pressa para publicar um relato mais desenvolvido de sua teoria do que aquelas poucas páginas lidas pela Linnean Society. Ele, então, abriu mão de publicar seu grande livro, Natural Selec- tion, e começou a trabalhar no que seria um resumo dele – que terminaria com 155 mil palavras, revisadas por Thomas Huxley e recomendadas por Lyell ao editor John Murray (Desmond e Moore, 2009, p. 494). O título original deveria ser Resumo de um Ensaio sobre a Origem das Espécies e Variedades por Meio da Seleção Natural, mas, por influência de Murray, Darwin o reduziu para Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural (Ibidem, pp. 495-496).

O livro continha 14 capítulos, cuidadosamente organizados para construir com o leitor a ideia de como funcionaria o processo de seleção natural – capítulos intitu- lados “Variação sob domesticação”, “Variação na natureza”, “Luta pela sobrevivên- cia”, “Seleção natural” –, mais um capítulo de consolidação – “Leis da variação” –, um capítulo de discussão – “Dificuldades da teoria” –, mais sete de aplicação e apro- fundamento da discussão – “Instinto”, “Hibridismo”, “Sobre a imperfeição do registro geológico”, “Sobre a sucessão geológica dos seres orgânicos”, “Distribuição geográ- fica” (dois capítulos) e “Afinidades mútuas dos seres orgânicos: morfologia; embrio- logia; órgãos rudimentares” – e mais um capítulo de “Recapitulação e conclusão”. Toda essa estrutura foi discutida por Ernst Mayr como um conjunto, na verdade, de cinco teorias: evolução propriamente dita, descendência comum, gradualismo, multi- plicação de espécies e seleção natural; cada um desses pontos é sustentado por diversas evidências e esse conjunto é estruturado de tal maneira que permitiria ao leitor concordar com alguns pontos, mas refutar outros (Mayr, 200534 apud Silva, 2013, cap. 3).

Ao ler toda a complexidade da teoria de Darwin, durante o processo de revi- são, Huxley passou a enxergar também a transmutação como “um elemento sólido para separar a ciência da teologia” – sua grande meta – e, a partir disso e como era particular de seu temperamento, tornou-se um ferrenho defensor de Darwin (Des- mond e Moore, 2009, p. 493). Huxley ficara maravilhado com a ideia de um ancestral

34 MAYR, Ernst. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina

comum entre o homem e os símios, implicada nos escritos de Darwin, pois isso lhe permitia desbancar o que era dito no Gênese bíblico e, munido de novos argumen- tos, acirrou sua disputa com Richard Owen, que não abria mão de princípios teológi- cos (Ibidem, pp. 493-494).

A questão sobre a origem do homem, que não deveria ser diferente da de qualquer espécie, já constava na resenha anônima – provavelmente escrita pelo próprio editor, John Murray – que antecipava a publicação do chamado “livro das espécies” (Bizzo, 2014, p. 8). Essa questão chamou a atenção do público e conquis- tou um bom número de vendas, mas perturbou a comunidade de naturalistas e, mesmo Lyell, que estava admirado com a obra e ansioso para ler mais sobre o as- sunto, ficou incomodado, sentindo que a “dignidade da espécie [humana] estava em jogo” (Desmond e Moore, 2009, p. 496). Em consequência disso, o Origem das Es- pécies ganhou muitas resenhas, que, em geral, eram longas e nada amigáveis (Biz- zo, 2014), mas, segundo William Chambers, as piores críticas ainda não chegavam perto daquilo que havia sido dito anos antes contra o Vestiges of the Natural History of Creation. Para Chambers, a mentalidade das pessoas havia mudado e agora os discursos eram menos religiosos e enfatizavam mais a liberdade de expressão (Chambers, W., 1872, p. 256).

Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau (1810-1892), naturalista francês que desenvolveu suas próprias ideias sobre a modificação das espécies, iria dizer que, além da questão da origem do homem, o ponto da teoria de Darwin que causou mais discórdia em sua época e a tornou impalatável para muitos pesquisadores foi o fato de todos os seres vivos estarem unidos por um ancestral em comum e a ideia de que isso levaria a um organismo único que não teria um antecessor, e cuja ori- gem deveria ser atribuída simplesmente às leis físico-químicas (Quatrefages, 1870). Outro ponto que chamou a atenção foi a comparação dos processos a que estavam sujeitas as espécies domésticas e selvagens, gerando estranheza entre os cientistas e filósofos. Tradicionalmente, esses pesquisadores desenvolviam um tra- balho contemplativo, buscando as “leis e significados dentro da Criação” por meio de análises de espécimes selvagens; não se imaginava que “porcos e pombos fossem a chave do mistério dos mistérios” (Desmond e Moore, 2009, p. 446).

Conforme as críticas surgiam, a saúde de Darwin se debilitava e ele se rendia a seu instinto de ficar recluso. Nesse momento, seus amigos e figuras proeminentes nos estudos da natureza, Thomas Henry Huxley, Joseph Hooker, Alfred Russel Wal-

lace, Charles Lyell e Asa Gray foram os responsáveis pela divulgação da teoria e por sua defesa (Browne, 2011, p. 24). Enquanto essas figuras assumiam a linha de fren- te na defesa do Origem das Espécies, Darwin coletava mais informações e já prepa- rava material para uma segunda edição de seu livro, a ser publicada no ano seguin- te.

Ao longo dos anos, Darwin nunca chegou a publicar Natural Selection como pretendeu um dia, mas fez o melhor possível para responder a todas as questões e críticas que recebia, acompanhando pessoalmente o processo de reedição do Ori- gem, que chegaria à sua sexta edição, em 1872 (Bordalejo, 2009); contudo, apesar dos esforços de Darwin as críticas nunca pararam: pouco tempo após o lançamento do Origem, John Edward Gray (1800-1875), responsável pela parte de zoologia do Museu Britânico, disse a Darwin que ele não fizera mais do que republicar as ideias de Lamarck, e achava uma grande inconsistência ver naturalistas renomados que, por anos haviam criticado Lamarck, abraçarem as ideias de Darwin (Darwin, F., 1887, p. 243-244); o Cardeal Henry Edward Manning (1808-1892), da Catedral de Westminster, denunciou Darwin por ter dispensado Deus do "trabalho da criação"; e William Whewell (1794-1866) negou um lugar para o Origem na biblioteca do Trinity College.

Mesmo imersa em críticas, a obra foi reconhecida, no entanto, como “notável contribuição à cena intelectual” da época (Browne, 2007, p. 8), e com exceção das sátiras, não se atacava, exatamente, a figura de Darwin enquanto naturalista. Na verdade, quando ele faleceu, em 1882, foi enterrado na abadia de Westminster, co- mo “O maior inglês desde Newton”, segundo nota na revista Times da época (Ibi- dem, p. 11). O Origem despertou tanto alvoroço que as ideias descritas rapidamente alcançaram outros países e havia comentários sendo emitidos da França, Alema- nha, Itália, Suécia, Rússia e América do Norte (Ibidem, p. 140). Mesmo dentro da Igreja Anglicana houve quem gostasse da lógica de Darwin, como o reverendo Ba- den Powell (1796-1860), que também era professor de geometria em Oxford: ele considerou o Origem como “um volume magistral”, dizendo que não havia milagres e se pronunciando em favor do “grande princípio dos poderes de evolução autônoma da natureza” (Ibidem, pp. 142-143).

A oposição, apesar de vir de fontes variáveis, raramente se mostrou como al- go permanente. Nas palavras de Janet Browne, “os calvinistas, por exemplo conse-

guiram aceitar a ideia da seleção natural combinando-a com a luta da humanidade para superar o pecado”; “havia também cristãos liberais dispostos a aceitar a evolu- ção como um fato da natureza e, se fosse possível, conciliá-la com princípios mo- rais”. A evolução, aos poucos, era compreendida como uma lei natural; talvez criada por Deus e, mesmo aqueles que haviam criticado Darwin, em um primeiro momento, confortavam-se com essa ideia (Browne, 2007, p. 144). Alguns cientistas – já ado- tando o vocábulo introduzido por Whewell e difundido por Huxley– também encontra- ram conforto nesse panorama e passaram a associar ao trabalho de Darwin um olhar teleológico que, segundo Janet Browne, não existia (Ibidem, p. 145), mas que ainda é objeto de debate (ver, por exemplo, Regner, 1995; Richards e Ruse, 2016).

Darwin, apesar de não sair de sua casa, acompanhou tudo de perto por meio de sua rede de correspondência; uma das maiores e mais eficientes redes de cor- respondência sobre história natural da época (Browne, 2011, p. 657, e 2007, p. 146). Por um lado, é provável que, sem essa supervisão minuciosa, sua teoria poderia não durar tanto tempo (Browne, 2007, p. 146); por outro lado, todo esse debate trouxe bastante angústia e mal-estar a Darwin (Bizzo, 2014, p. 8).

Os trabalhos em função do Origem e de suas reedições ocuparam muito a mente de Darwin até o final de sua vida, mas suas atividades não se limitaram ape- nas a isso. Ele acompanhou de perto também as reedições de suas demais obras sobre a viagem a bordo do Beagle, discutindo também algumas de suas traduções, escreveu livros sobre a fertilização de orquídeas, e sobre a fertilização cruzada e autofertilização em geral; outros livros sobre os movimento das plantas – em espe- cial de trepadeiras e plantas carnívoras –; desenvolveu trabalhos sobre as expres- sões de emoções nos homens e nos animais; dedicou um livro à variação sob do- mesticação, e produziu mais dois volumes sobre a descendência do homem e o pa- pel da seleção sexual; escreveu diversos trabalhos discutindo a natureza da experi- mentação em animais e vivissecção; escreveu uma biografia sobre seu avô e uma autobiografia, cujos excertos seriam publicados por seu filho, Francis (1848-1925), e uma versão completo seria editada por sua neta, Emma Nora Barlow (1885-1989); e terminou sua vida escrevendo sobre húmus e minhocas, além de ter produzido mais de 170 artigos após o Origem das Espécies (Wyhe, 2002c).

Quando Darwin faleceu, poucos tomavam a seleção natural como um princí- pio capaz de modificar as espécies; outras ideias foram surgindo ou sendo resgata- das, caracterizando o que foi chamado de “Eclipse do Darwinismo”; a “lei natural” de

Darwin passaria por um longo período de debate até ser resgatada na “síntese mo- derna da evolução” (Bowler, 1983). No entanto, mais do que esse legado, a vida e a obra de Darwin são um exemplo de que um cientista não trabalha de maneira isola- da. Para desenvolver suas ideias, angariar dados e divulgar seus resultados, Darwin esteve o tempo todo imerso em um processo coletivo.

3 Descobrindo a seleção natural: uma proposta de sequência didá-