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2.2 Charles Darwin e o conceito de seleção natural

2.2.1 Primeiros contatos com a transmutação

Nascido em 1809, em uma Inglaterra que viveu o debate entre a transmuta- ção e o fixismo e que agora se inclinava mais para essa segunda visão de mundo, Charles Robert Darwin teve a oportunidade de vivenciar bem as duas versões de interpretação da história natural. Em casa, ele tinha o legado de seu avô paterno, Erasmus Darwin, que já podia lhe fomentar o raciocínio sobre os mecanismos de funcionamento da natureza – e de fato a história natural foi uma das poucas áreas do conhecimento que lhe encantou desde pequeno. Do lado materno, seu outro avô, Josiah Wedgwood, adotara a fé unitarista, o que, segundo Erasmus, não era mais do que um fino colchão de plumas para aparar um cristão em queda e separá-lo do chão do ateísmo. A mãe de Charles, Susannah, também era unitarista, no entanto ela morrera quando ele tinha oito anos, não tendo deixado um legado profundo a respeito da religião – ou de qualquer ensinamento profundo, segundo o próprio Dar- win (Browne, 2011, pp. 51-52). Por fim, seu pai, Robert, não era um homem religio- so. O contato com o fixismo veio de fora de seu núcleo familiar. O jovem Darwin teve contato com as críticas feitas ao avô, e estudou em um presbitério durante a infân- cia, e, na adolescência, frequentou o colégio dirigido pelo Reverendo Samuel Butler (1774-1839) (Browne, 2011, pp. 38-42; Desmond e Moore, 2009, cap. 1).

O pai de Darwin era um médico de sucesso, como fora seu avô, e gostaria que seu filho seguisse o mesmo caminho; assim ele não dispensou a melhor educa- ção que podia oferecer, decidindo-se por enviar Charles para estudar na Escócia, na Universidade de Edimburgo, “uma universidade liberal, centrada na ciência”, diferen- te do ensino oferecido em Oxford e Cambridge – as duas únicas universidades da Inglaterra na época –, que estavam vinculadas à Igreja Anglicana. O que se viu foi que o ramo da medicina não era para Charles, que tinha um “medo mórbido de san- gue” e não era capaz de assistir às cirurgias feitas às pressas, com cortes precisos e sangrentos enquanto os pacientes deveriam ser contidos à força em uma época an- terior à invenção da anestesia (Desmond e Moore, 2009, pp. 37-41 e p. 47). Janet Browne conjectura que o que tanto devia ter impressionado Darwin quando ele foi assistir a uma cirurgia, é que essa devia ter sido uma cirurgia de amputação: “depois disso, os gritos, o sangue e a violência deixaram-no desassossegado e vítima de inevitáveis noites de insônia” (Browne, 2011, p. 103).

A pesar da forte impressão negativa, foi também em Edimburgo, em 1826, que Darwin frequentou sua primeira sociedade científica, a Plinian Society, na qual “estudantes radicais, ferozes democratas livre-pensadores, exigiam que a ciência fosse baseada em causas físicas, e não em forças sobrenaturais” Desmond e Moo- re, 2009, p. 50). Darwin gostou desse ambiente e, aos poucos, a história natural, assunto frequentemente presente na Plinian, tornava-se um mecanismo de escapar da medicina, que tanto o atormentava (Browne, 2011, p. 107).

Foi ainda em Edimburgo que Darwin frequentou as aulas de zoologia de in- vertebrados de Robert Grant (fig. 13). Grant participava de algumas reuniões da Pli- nian Society, tendo sido também secretário da sociedade, e foi provavelmente lá que ele e Darwin se conheceram (Browne, 2011, p. 119). A formação de Grant e a ex- tensão de seus conhecimentos criaram uma boa impressão em Darwin – Grant for- mara-se médico em Edimburgo em 1814 e, depois disso, foi à França, estudar ana- tomia com Georges Cuvier e com Étienne Geofroy Saint-Hilaire (1772-1844), voltan-

Litografia produzida em 1852, quando Grant contava 59 anos de idade. Retirado de Desmond e Moore, 2009.

do para Edimburgo e assumindo a cátedra de animais invertebrados em 1824 (Browne, 2011, p. 119). Em contato com Darwin, rapidamente Grant também perce- beu talento e potencial para a história natural no rapaz e passou a convidá-lo para viagens de coletas de invertebrados – especialmente pólipos e esponjas – nas praias de Leith, na foz do Rio Forth. Caminhando ali ou nos arredores da universida- de, Grant demonstrava todo seu entusiasmo pelos ideais franceses e pela ideia de progressão dos animais de Lamarck – então uma figura “infame”, com cerca de 80 anos e cego devido ao desenvolvimento de catarata – e de Erasmus Darwin (Des- mond e Moore, 2009, pp. 52-54; Martins, L., 1993, pp. 7-8).

A essa altura do século XIX, os poucos naturalistas que consideravam a pos- sibilidade de transmutação costumavam “manter a cabeça baixa”, mas esse não era o caso de Robert Grant que, então, com a ajuda de Darwin, buscava ativamente evi- dências para a teoria de Lamarck de que as esponjas estariam próximas às funda- ções da vida no planeta (Browne, 2011, p. 120; Desmond e Moore, 2009, p. 56). Guiado por Grant, Darwin tomou, então contato com as obras de Lamarck, com suas ideias de progressão das espécies e com seus sistemas de classificação, que pas- sou a estudar e a empregar em seus trabalhos (Desmond e Moore, 2009, pp. 56-57).

Faz-se necessário explicar aqui que as contribuições de Grant para que Dar- win tomasse contato com a teoria e com os sistemas de Lamarck é defendida por Adrian Desmond e James Moore, mas não foi algo reconhecido por Darwin em sua autobiografia:

Ele [Grant], um dia, quando estávamos caminhando juntos, irrompeu em alta admiração a Lamarck e suas visões sobre evolução. Eu es- cutei com espanto silencioso e, até onde posso avaliar, sem nenhu- ma influência em minha mente (Darwin in Barlow, 1958, p. 49).

Como indica Frank Egerton, é provável que, ao escrever, no final de sua vida, sobre seu antigo professor e sobre as impressões que tinha de Lamarck, Darwin não conseguisse se lembrar desses momentos com tanta clareza. Egerton aponta que, em meio às notas da época em que Darwin estudava em Edinburgo, encontram-se traduções de próprio punho de trechos do Système des animaux sans vertèbre, de Lamarck, sobre a classificação dos seres vivos, e Egerton lembra ainda que a aber- tura dessa obra continha uma exposição sobre a ideia de progressão dos animais, o que permitiria a Darwin ter se aprofundado no assunto (Egerton, 1976, pp. 454-

456)27. Na própria autobiografia de Darwin, o trecho “[...] Dr. Grant, meu sênior por vários anos, mas como eu o conheci, não consigo lembrar” (Barlow, 1958, p. 49) cor- robora o argumento de Egerton e, afinal, Darwin reconhece:

De qualquer forma, é provável que ouvir assim tão precocemente es- sas visões mantidas e louvadas pode ter favorecido que eu as sus- tentasse de uma maneira diferente em meu Origem das Espécies (Darwin in Barlow, 1958, p. 49).

Definitivamente mais interessado na história natural do que na carreira como médico, não demorou muito para que o pai de Darwin notasse que o filho não daria continuidade à linhagem de médicos com que viera sonhando (Browne, 2011, p. 82). Em 1828, Robert Darwin enviou Charles para estudar em Cambridge, universidade em que a história natural estava imbrincada com a teologia natural. Com a formação em Cambridge, Charles Darwin poderia adquirir conhecimentos para dirigir uma pa- róquia própria, com propriedades que alugaria para a população local e com traba- lhadores que lhe pagassem impostos, além de se dedicar aos estudos da natureza de que tanto gostava (Desmond e Moore, 2009, pp. 66-68).

Em Cambridge, Darwin encontrou um novo mentor: John Stevens Henslow (fig. 14), professor de botânica e reverendo da Igreja Anglicana com quem Charles passeava pelos arredores da universidade, conversando sobre assuntos diversos, mas especialmente sobre história natural. Nessas conversas, “Charles vislumbrou pela primeira vez como podia ser agradável a vida de um docente clerical” (Des- mond e Moore, 2009, p. 99). Também foi no convívio com Henslow que Darwin ob- teve sua formação em botânica, tendo assistido às suas aulas entre os anos de 1829 e 1831 – segundo Janet Browne, foi essa a sua instrução formal em Ciências Naturais durante os anos em Cambridge (Browne, 2011, p. 182). Foi lá ainda que Darwin leu Natural Theology, de William Paley, e “se deliciara” pela lógica observada (Ibidem, p. 97). Apesar de tal entusiasmo pelos argumentos de Paley, não era pos- sível deixar de notar como esse autor divergia radicalmente dos pontos de vista que Darwin havia aprendido com a obra de seu avô, Erasmus; da mesma forma que se notava como eram diferentes as concepções de Grant e de Henslow sobre a nature-

27 A importância de Grant e sua marca deixada em Darwin também é reconhecida por Michael Ruse

za. Segundo Adrian Desmond e James Moore (2009, p. 109), na mesma época em que Darwin analisava esses contrapontos, ele estudava o Preliminary discourse on the study of natural philosophy, de John Herschel (1792-1871), e assim ele se mos- trava mais inclinado a imaginar que a ciência teria poder para explicar os fenômenos observados na natureza e dessa maneira, mais cedo ou mais tarde, ela prevaleceria às visões puramente religiosas – visão também mantida por Henslow e Adam Segwick (1785-1873), professor de geologia que estava presente no círculo de ami- zades de Darwin; Henslow, Herschel e Sedgwick defendiam a ideia de que a ciência poderia, inclusive, ser o caminho para as “verdades supremas de Deus” (Browne, 2011, p. 196).

Outra leitura que inspirara Darwin fora o relato de viagem de Alexander von Humboldt (1769-1859). Essa obra despertava a imaginação também de John Hens- low, que reacendeu seu sonho de participar de uma viagem de exploração (Browne, 2011, p. 201). Inspirados por Humboldt, Darwin e Henslow fizeram planos para uma

Retrato produzido por Thomas Herbert Maguire, 1851. Retirado de Darwin Correspondance Project Database <https://www.darwinproject.ac.uk/john-

stevens-henslow>. Acesso em 14 jul. 2016. Figura 14 – John Stevens Henslow (1796-1861).

incursão autofinanciada a Tenerife, nas Ilhas Canárias. Em meio ao planejamento para a viagem, perceberam que Darwin precisava contar com uma melhor formação em geologia. Henslow ajudou com uma formação teórica, mas, para uma experiên- cia em campo, recorreram a Adam Sedgwick que, como apontam Desmond e Moore (2009, p. 113), já conhecia bem o histórico escolar de Darwin. A formação se deu às pressas, mas Charles se mostrou um bom aprendiz, rapidamente desenvolvendo gosto por esse ramo da história natural. Darwin treinou sua geologia e sua habilida- de para se deslocar sozinho em um ambiente natural, munido de instrumentos e mapas, em Gales; ao final, Sedgwick se declarou “extremamente orgulhoso” de seu pupilo (Browne, 2011, pp. 203-213; Desmond e Moore, pp. 113-115). Na mesma época, como parte dos preparativos, estudou espanhol intensamente (Browne, 2011, pp. 202-203).

Somando essas incursões em Gales às suas leituras, às palestras que assis- tiu e às conversas e preparativos particulares, já se contavam alguns meses ao lon- go dos quais a viagem vinha sendo planejada. Tal planejamento, no entanto, passou por turbulências: a esposa de Henslow acabara de dar à luz e agora o professor se via imerso em novas responsabilidades, fazendo-o desistir da viagem. Para seu lu- gar, acompanhando Darwin, Henslow indicou Marmaduke Ramsay (?-1831), tutor universitário com quem Charles havia feito amizade por meio de Henslow. O golpe definitivo para o fim da viagem viera, então, por meio de uma carta recebida em agosto de 1831, quando Darwin se encontrava em Barmouth, na costa oeste do País de Gales: Ramsay havia morrido (Desmond e Moore, 114-116).

A frustração com a possibilidade de ter seus planos de viagem cancelados e a ansiedade de considerar a possibilidade de viajar sozinho duraram pouco. Em se- tembro, de volta a Londres, entre a correspondência que o aguardava, Darwin en- controu uma carta de Henslow (Darwin Correspondence Project, “letter no. 105”), indicando-o para uma nova viagem, mais extensa, passando pela Terra do Fogo e pelas Índias Ocidentais, em companhia do capitão Robert FitzRoy (1805-1865).