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2.1 Transmutação e fixismo ao longo do século XVIII e início do XIX

2.1.3 Georges Cuvier

Georges Cuvier (1769-1832 - fig. 7) nasceu em Montbeliard, cidade próxima à divisa entre França e Suíça, no ano de 1769. Frequentou a Hole Karlsschule (Aca- demia Carolina) em Stuttgard de 1784 a 1788, onde teve contato com a história na- tural. Em seguida, tornou-se o preceptor de uma família nobre francesa que residia na Normandia, de 1788 a 1794. Ao longo desses seis anos na Normandia, conforme

17 Revistas conservadoras que apresentavam resenhas sobre as obras lançadas na época. Segundo

M. O. Grenby (2004, p. xi), os textos veiculados nessas duas publicações expunham uma posição sempre contrária aos ideais da revolução francesa e a quem se mostrasse a favor deles e buscavam divulgar romances e obras que mantivessem um caráter que valorizasse a monarquia e a igreja como instituições fundamentais de uma nação.

aponta Felipe Faria (2012, cap. 2), Cuvier aprofundou seus conceitos de anatomia comparada e publicou alguns trabalhos de descrição anatômica, como Mémoire sur les cloportes, Anatomie de la Patella comune e Observations sur quelques diptères, todos de 1792. No entanto, ali Cuvier não dispunha nem de uma boa quantidade de espécimes e nem do volume de referências a que gostaria de ter acesso. De alguma maneira, ele compreendeu que, para se dedicar aos estudos da natureza da manei- ra que almejava, deveria ir para Paris, onde poderia ter acesso ao Gabinete do Rei. Para conseguir um emprego na capital francesa, no entanto, Cuvier precisaria de boas indicações e, para conquistá-las, ele buscou manter correspondência com di- versos pesquisadores, mas especialmente com os parisienses (Faria, 2012, p. 62).

Por meio de correspondência, Cuvier discutiu as ideias geológicas de Buffon, teve acesso aos trabalhos dos cristalógrafos e mineralogistas Romé de Lisle (1736- 1790), René Just-Haüy (1787-1789) e Jean-Claude Delamétherie. Também por cor- respondência, manifestou sua vontade de ir a Paris, ousando fazer a proposta de substituir Lacépède, que trabalhara com Buffon no Jardim do Rei e que, em meio ao

Retrato publicado por James Thomson para a coleção Portrait prints of men

and women of science and technology in the Dibner Library. Disponível em

<www.sil.si.edu/DigitalCollections/hst/scietific-identity/fullsize/SIL14-C6- 10a.jpg>. Acesso em 06 jul. 2016.

desenrolar da Revolução Francesa, estava ocupado como membro da Assembleia Legislativa. Seu pedido foi declinado e, quando o Jardim do Rei foi reestruturado e rebatizado de Jardin des Plantes, e o Gabinete do Rei se tornou o Museu Nacional de História Natural, foi Étienne Geoffrey Saint-Hilaire (1772-1844) quem recebeu o cargo almejado por Cuvier (Faria, 2012, pp. 58-61). Os esforços de Cuvier e a quali- dade de seu trabalho, no entanto, não passaram despercebidos e, em 1794, em uma sessão da Sociedade de História Natural de Paris secretariada por Saint- Hilaire, ele foi nomeado membro daquela sociedade, da qual também Lamarck fazia parte (Ibidem, p. 63).

Uma vez em Paris, Cuvier deu início a uma produção intensa de trabalhos, o que contribuiu para sua rápida ascensão à cátedra de Anatomia Comparada do Mu- seu Nacional. Em seu discurso de posse da cátedra, Cuvier anunciou seus objetivos, criticando e distanciando-se daqueles que queriam “reduzir toda a ciência a siste- mas” e que não faziam um real uso de “visões comparativas” (Cuvier, 1795, p. 148). Assim, sem citar nomes de naturalistas, Cuvier já apontava como era avesso à tradi- ção em que Buffon estivera inserido e a que Lamarck buscava dar continuidade. Como aponta Felipe Faria (2012, p. 65), no mesmo ano em que assumira as aulas de anatomia comparada, Cuvier, como fizera Buffon, começou a comparar espécies animais fósseis e viventes para poder, assim, construir uma história da vida na Ter- ra. Ao aplicar seus conhecimentos em anatomia comparada para analisar crânios de um mamute e de um elefante vivente – seres estudados por Buffon e considerados como pertencentes a uma única espécie – Cuvier, com a ajuda de Saint-Hilaire, apoiou-se sobre as diferenças encontradas para afirmar que esses animais perten- ciam a espécies diferentes. No ano seguinte, em uma publicação que assinava sozi- nho, o ataque às ideias de Buffon ficou mais evidente:

[...] Alegar que todos os quadrúpedes podem derivar de uma só es- pécie, que as diferenças que eles apresentam são apenas degenera- ções sucessivas, em uma palavra, isso seria reduzir a nada toda his- tória natural, pois que seus objetos não consistiriam senão de formas variáveis e de tipos fugazes (Cuvier, 1796, p. 12).

E o argumento de que as formas viventes e fósseis eram realmente espécies diferentes foi reafirmado e expandido, comparando-se, então, o elefante, o mamute e um fóssil chamado “animal de Ohio”, que Cuvier nomearia de Mastodonte:

1º: O animal cujos restos foram encontrados no Canadá é do gênero do elefante.

2º: Ele difere, por espécie, dos elefantes de hoje e do mamute. [...]

4º: Essa espécie viveu na América e em muitos lugares do velho mundo.

5º: Enfim, não se encontrou qualquer traço desse animal entre os quadrúpedes que existem nos dias de hoje.

(Cuvier, 1796, pp. 19-20)

Cuvier declarava-se, assim, um fixista. Para ele, formas orgânicas que fossem encontradas apenas no registro fóssil diferiam, em espécie, das formas orgânicas viventes, e não teria havido qualquer tipo de transformação de uma em outra, mas apenas o desaparecimento (ou a extinção) das formas fossilizadas:

Pergunte-se por que se encontram tantos restos de animais desco- nhecidos, ao mesmo tempo em que não se encontra quase nenhum que se possa dizer que pertença às espécies que conhecemos, e ver-se-á o quão é provável que tais restos tenham pertencido a seres de um mundo anterior ao nosso, a seres destruídos por alguma revo- lução do globo; seres daqueles que existem hoje preencheram seu lugar, para se ver, talvez um dia, igualmente destruídos e substituí- dos por outros (Cuvier, 1796, p. 21).

Com tal explicação, Cuvier mostrou-se também um catastrofista – isto é, al- guém que imaginava o mundo operando por repentinas revoluções18 – e deu a en- tender que ele figurava uma história da Terra em que, outrora, as espécies viventes e fósseis teriam coexistido no tempo, mas não no espaço. Com a morte daqueles seres que viriam a ser fósseis, as demais espécies teriam migrado e habitado a re- gião do globo que, então, estaria vazia. Afirmar que as espécies teriam sofrido al- gum tipo de modificação, como fizera Buffon, era um erro para Cuvier, endereçando uma crítica carregada de ironia:

[...] Buffon não pode considerar esses objetos [os fósseis; os “monu- mentos da natureza”] sem aquela inquietude que caracteriza o gênio; sua imaginação, aquecida por tamanho espetáculo, lançou-se no

18 O termo “catastrofismo” opõe-se a “gradualismo”, que é o pensamento sobre o mundo mudando de

maneira lenta e gradual, ao longo de milhões de anos, como Buffon descrevera o resfriamento do planeta. O gradualismo também pode ser exemplificado pelas ideias de Charles Lyell em Principles of

passado, [...] acreditou estar traçando a história quando, na verdade, não produzia, senão, sua própria criação (Cuvier, 1801, p. 254).

Um argumento que parecia apresentar maior resistência às suas afirmações sobre a extinção de espécies inteiras era o de que, talvez, em algum lugar do mun- do, poderia se encontrar aquelas espécies tidas como desaparecidas – o argumento do “fóssil vivente”. Cuvier esquivava-se, então, desse criticismo mantendo-se inte- ressado em estudar os grandes quadrúpedes terrestres, grupo de animais menos numeroso e mais fácil de ser avistado (Cuvier, 1801, p. 256). Assim, atacando ideias defensoras da transmutação e protegendo-se contra críticas, Cuvier prossegue pu- blicando o maior número possível de trabalhos, em periódicos diversos que incluíam publicações inglesas e alemãs, diversificando seu público, convidando naturalistas a replicarem seus métodos e testarem seus resultados (Faria, 2012, pp. 66-98). O re- sultado de tal “campanha”, como expõe Felipe Faria, foi a conquista de respaldo e a construção de uma rede de colaboração internacional (Ibidem, p. 104).

Cuvier tornara-se uma figura notória e elogios do tipo “Cuvier encontrou a ra- zão dessa singularidade...”, “Cuvier, assim, bem o demonstrou, ...” “o célebre Cuvier afirma...” “o savant Cuvier reconheceu...” “Cuvier aumentou muito nosso conheci- mento...” e “A que merece maior consideração [...] é aquela do Professor Cuvier”, compilados por Felipe Faria (2012, pp. 105-106) marcavam a primeira década do século XIX e a consolidação de um panorama fixista que era abraçado pela maior parte dos naturalistas.