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A.2 – UNIVERSO DE REFERÊNCIA

II. 1 – O ERRO E A CONSTRUÇÃO DE SI MESMO

Como se sabe, o corpo não é só somente um conjunto de órgãos. Sem entrarmos no domínio controverso da explicação da afectividade e da moral pela existência ou não duma alma (“sans l’âme, le corps ne serait rien”?157), existe no organismo uma vasta gama de potencialidades e capacidades que estão à nossa disposição, mas não são utilizadas porque não há estímulo nesse sentido, bem pelo contrário. A educação baseada no educare não incentiva o conhecimento e desenvolvimento da consciência de si mesmo, e assim sendo estas competências não fazem parte dos programas de educação. Ao contrário, exige-se do aluno uma postura passiva, de assimilação dos conteúdos sem sentido crítico, sem possibilidade de testar o aprendido. Esta situação tem consequências diversas, inclusive no desenvolvimento das capacidades cerebrais, se tivermos em conta a importância que exerce o estímulo exterior para a vitalidade do cérebro, conforme refere Evaristo Fernandes:

“embora tanto a geração como a diferenciação dos neurónios corticais, se desenvolvam de dentro para fora, vastas constelações de estímulos que eles necessitam para se desenvolverem vão de fora para dentro como sucede, por exemplo, com as áreas de desenvolvimento da somatossensorização, da visão, da audição, da linguagem, etc, as quais necessitam da acção das suas propriedades funcionais e, através de tais desenvolvimentos, de um estado de multi-potencialidade inicial passam a um estado de potencial funcionalidade única, graças à orientação das conexões e funções guiadas e desenvolvidas através daquelas sequências de dinamização orientada”158

Assim, o organismo absorve e se desenvolve internamente graças à intervenção dos estímulos exteriores, no entanto, há necessidade de exteriorizar, ou testar, o que foi interiorizado para expandir as capacidades adquiridas.

157

Jodelet, Denise, Le corps, la personne et autrui, in Psychologie Sociale des Relations à Autrui, op cit. p.45

158

Fernandes, Evaristo, V, Aprendizagem humana e suas dificuldades, cérebro, emoção, mente e acção, Edipanta, Porto, 2002, p. 186

Esta necessidade e importância da acção, ou do movimento, para a aprendizagem e expansão do ser humano, já tinha sido assinalada no século XVIII por Jean Jeacques Rousseau quando este filósofo escreve:

« Ce n’est que par le mouvement que nous apprenons qu’il y a des choses qui ne sont pas nous ; et ce n’est que par notre propre mouvement que nous acquérons l’idée de l’étendue.159»

Assim, durante a primeira infância J.J. Rousseau considera que

« moins contrariés dans leurs mouvements, les enfants pleureront moins160. (…) Il faut que [les enfants] sautent, qu’ils courent, qu’ils crient, quand ils en ont envie. Tous les mouvements sont des besoins de leur constitution, qui cherche à se fortifier161 ».

Mas, não é só o corpo físico que beneficia do movimento visto que, também segundo este autor, este tem efeitos no raciocinio :

« qu’il agisse, qu’il coure, qu’il crie, qu’il soit toujours en mouvement ; qu’il soit homme par la vigueur, et bientôt il le sera par la raison162. »

Por outro lado, é conveniente que essa acção seja livre para que as crianças aprendam a « pensar por si »

« si votre tête conduit toujours ses bras, la sienne lui devient inutile.163 » (…) « Laissez-le seul en liberté, voyez-le agir sans lui rien dire ; (…) N’ayant pas besoin de se

159

Rousseau, Jean Jacques, Emile ou de l’éducation, Edition Garnier Frères, Paris, 1964, p. 44 160 Ibid. p. 51 161 Ibid. p.71 162 Ibid. p. 118 163 Ibid. p.118

prouver qu’il est libre, il ne fait jamais rien par étourderie, et seulement pour faire un acte de pouvoir sur lui-même 164»

Não restam, portanto, dúvidas que só pela acção é que se descobrem todas as potencialidades, agindo numa repetição constante até se obter a maior satisfação possível.

Ora, a acção certeira é rara ou até impossível. Os erros podem diminuir com a repetição, ao longo do tempo, mas esperar que os primeiros passos sejam seguros, e certos, parece inconcebível. O que o é, indubitavelmente, é de exigir a ausência de erro, ou penalizá-lo, numa fase de início de aprendizagem. A consequência óbvia de semelhante pedagogia será, forçosamente, a inibição da acção.

Por isso, uma educação que censura, recrimina, penaliza o erro, pode ser destrutiva porque inibe a vontade de agir, impede os movimentos livres, a descoberta das capacidades e até “uma transformação feliz da evolução”, segundo Edgar Morin, porque “o ruído”, o erro, provoca o aparecimento de uma inovação e de uma complexidade mais rica. Nesse caso, o erro, em vez de degradar a informação, enriquece-a. O “ruído”, em vez de provocar uma desordem fatal, suscita uma ordem nova.” 165

Portanto, erro e acção são vitais tanto mais que, se no interior do próprio corpo há um movimento constante, caso contrário deixa-se de existir, por que razão deveria ser diferente no exterior? É possível, assim, deduzir que uma pessoa parada, estagnada, que não se movimenta, estará a cavar o seu próprio túmulo, conforme referido acima. Estará o sistema de ensino conivente com este intento?

É eventualmente pertinente questionar se ao impedir a abertura e descoberta do “si mesmo”, e de toda a complexidade nele inerente, não haverá, de alguma forma, uma intenção de “morte”, pelo menos do “verdadeiro eu”, incentivando, isso sim, a construção

164

Ibid. p.179 165

Morin, Edgar, O Paradigma Perdido: A Natureza Humana, op. cit., p. 114

dum “falso eu” que seja o mais parecido possível com a representação que se tem do outro que se quer modelar.

Os meios utilizados para este efeito, pode ser o recurso de certos veredictos ou “avaliações”, facto ilustrado acima. Além das palavras, ou adicionada a estas, existem outras possibilidades que podem actuar como meio de repreensão, daí resultando uma determinada representação de si. Entre outros, o olhar é, possivelmente, o que mais atinge o “culpado” de um erro. No olhar está a expressão das intenções profundas que podem ser de simpatia/antipatia, recriminação/aceitação, abertura/clausura, etc…

A aprendizagem dos códigos desta linguagem faz-se logo nos primeiros meses de vida, o olhar e o sorriso sendo os principais sinais comunicacionais que o recém nascido capta. Por isso, “la mirada provocará en el niño el impulso o la desconfianza; esta experiência continuará ejerciendo, en el adulto, una influencia variable pêro real166”

De facto, é pelo olhar que se descobre ao longo da vida a diferença entre o eu e o outro e, assim a aceitação, ou recusa, da alteridade, estas duas opções contribuindo para a abertura de si mesmo e, reactivamente, dos outros, ou o contrário. Assim, a abertura do eu de cada um, está sujeita ao tipo de olhar dos outros, e, enquanto não tiver adquirido imunidade, tenderá a proteger-se escondendo-se atrás de máscaras, num processo parecido às técnicas da Comédia Dell Arte, acima referidas, porque conforme refere Amélia Lopes, o Eu verdadeiro …“é hipersensível ao “olhar” dos outros. Por isso só sobrevive à custa de um falso Eu, constituído por mecanismos de defesa necessários para ultrapassar a ansiedade gerada pelo desprezo ou tentativas de destruição dos outros” 167

Assim, se o olhar é reprovador, há possibilidades de desencadear bloqueios que impedem a acção, travando-a, impossibilitando-a de ir mais além na auto-descoberta. É que, saber-se no centro de atenções desfavoráveis, pode prender mais que qualquer cadeado ou prisão, porque não é fácil ultrapassar os efeitos de halo, lógicos, de tendência

166

J. Maisonneuve – Psicologia social, op. cit. p.23 167

central, de polarização, de recenticidade, de osmose, de pigmaleão, etc… ou então superar o erro constante, de “primeira impressão”, de semelhança, de fadiga ou rotina, etc…

Por isso, o bom uso desta “linguagem”, e a compreensão da existência do erro, também são requisitos a adicionar à qualidade da interacção facilitadora do educere.

Convém, então, prestar uma atenção mais prolongada aos “olhares” (ou representações) mais recorrentes no espaço escolar para que se saiba os que contribuem para a abertura e construção, ou não, da “pessoa” que o(a) aluno(a) é. É o que se vai expor a seguir.