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2 – OLHARES/REPRESENTAÇÕES COMO FACTOR DE CONSTRUÇÃO

A.2 – UNIVERSO DE REFERÊNCIA

II. 2 – OLHARES/REPRESENTAÇÕES COMO FACTOR DE CONSTRUÇÃO

Na precedente abordagem sobre a percepção de si mesmo e dos outros em si, ficou explícita a importância da multiplicidade dos olhares/representações. Olhares reais ou imaginários, o aluno está só face ao seu próprio olhar, face ao olhar dos colegas e face ao olhar dos professores. O seu crescimento, pleno e total, depende da capacidade de saber fazer face a estas adversidades. Assim, o poder positivo do olhar é um dos factores que pode contribuir para a abertura e construção do Eu, assim como o inverso pode produzir o efeito contrário. Vejamos, então, em primeiro lugar a perspectiva impeditiva de abertura.

II.2.1 - “OLHARES”/REPRESENTAÇÕES QUE IMPEDEM A ABERTURA DO EU II.3.1.1 – Olhar/Representar os alunos como “tábuas rasas = “eles não sabem nada, eu tenho de lhes ensinar tudo”

Esta atitude subentende que todo o conhecimento provém do professor; o aluno é um recipiente vazio, e como tal, tem que se manter numa situação passiva, à espera de receber o “saber” que só pode ser transmitido por um canal credenciado pelo sistema de ensino; é o ensino entendido como educare. Assim, os conhecimentos adquiridos fora da escola, a curiosidade e esforços espontâneos, não são levados em consideração, pelo contrário, são encarados como duvidosos. Evidentemente, neste tipo de “olhar”, o professor é a figura central, a autoridade máxima na sala de aula, e como tal, está fora de questão permitir a intervenção do aluno. É possível que a função de professor exercida segundo estes princípios, se confunda com a própria identidade da pessoa, num processo idêntico ao referido por Pierre Bourdieu. Para este sociólogo, alguns cargos ultrapassam a noção de papel: a pessoa “casa-se” com a profissão, e deixa-se possuir por ela. P. Bourdieu emprega as palavras “habitus”, “casa”, casar-se, porque o corpo está habitado pela função que exerce. A pessoa “identifica-se com a função que exerce, como a criança se identifica com o seu pai e adopta, sem sequer precisar “fingir”, uma certa maneira de falar [de olhar, de andar, de se movimentar] que lhe parece constituir o ser social do adulto perfeito (…) ele está demasiado apanhado pela função (…) para ter mesmo uma ideia

dessa distância” 168. Basicamente, o que sucede neste caso é simplesmente uma identificação com a persona.

Poderíamos, então, supor que o(a) docente que vive a sua profissão conforme estes critérios, arvora em permanência uma máscara, deixando o seu eu real “trancado”, isolado? Terá medo de abrir, de “inscrever”, e nesse caso, volta-se a perguntar, haverá “existência”? Segundo José Gil, sem abertura não há inscrição do real, e como tal o corpo torna-se objecto169: “a inscrição abre os corpos. Se a potência de vida aumenta, a inscrição incorpora-se no desejo de tal maneira que a sua “marca” ou “selo” desaparece. Se se mutila ou esmaga o desejo, fica apenas um corpo-objecto marcado a ferros – corpo aprisionado. Quando o corpo se fecha, há não inscrição. A inscrição é pois a condição da produção do desejo e do real. ”.

II.3.1.2 – Olhar/Representar para os(as) alunos(as) como seres indefesos

Este modelo indica que os horizontes da criança são limitados, não existindo estímulos para ir muito longe; uma barreira psicológica limita a criança, impedindo-a de crescer; se a criança aceitar esta imagem, ela interioriza que, de facto, não tem capacidades para crescer, para resolver os problemas, para se tornar autónoma; há um bloqueio que a mantém sempre naquele padrão, naquele estigma, naquele formato. Neste tipo de relação existe uma dependência mútua que não é sadia nem para uns nem para outros.

II.3.1.3 - Olhar os(as) aluno(as) como seres insignificantes, inferiores, ignorantes

Os alunos sujeitos a este tipo de avaliação (vítimas do efeito de pigmaleão) têm, evidentemente, poucas hipóteses de progredirem, e de descobrirem as suas potencialidades. Se o conseguirem, será graças às suas capacidades de resilência, o que significa enormes esforços para provar que há engano ou até injustiça. Vimos acima os efeitos que advêm da

168

Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico, Memória e Sociedade, Lisboa, Difel, Difusão Editorial, Lda, 1989, p.88 A famosa descrição dos empregados de café realizada por Jean Paul Sartre em L’Etre et le Néant, também se enquadra neste conceito.

169

José Gil, Portugal, Hoje, O medo de existir, Relógio d’Agua Editores, Col. Argumentos, Lisboa, 2005, p. 49

classificação (“la categorisation” segundo Marcel Postic). Sobre esta temática, este autor acrescenta o seguinte:

“ On voit, dans ces conditions, le danger que représenterait la création d’un dossier scolaire, qui suivrait l’intéressé du début à la fin de sa scolarité et qui contiendrait l’ensemble des jugements portés sur lui. On risquerait de l’enfermer très vite dans une catégorisation dont il ne pourrait plus se dégager. Nous avons pu constater personnellement que des élèves sur lesquels pesaient des appréciations défavorables, renforcées par un effet de groupe chez les enseignants, n’ont pu se mettre à travailler et n’ont pu obtenir de bons résultats que lorsqu’ils ont changé d’établissement, étant donné que leurs nouveaux professeurs n’ont jamais eu de communication de leur dossier antérieur170”

II.3.1.3 - O olhar protector em relação aos filhos de pais influentes

Se os horizontes dos alunos pertencendo a classes “desfavorecidas” são condicionados por diversos estereótipos, os filhos de pais influentes, com poder económico, podem sofrer de estigmas opostos. Aliás, é bem possível que seus eus verdadeiros terão ainda mais dificuldades que os outros em se exteriorizarem, porque podem “sofrer” de um mal ainda mais difícil de combater, a saber, a idolatria. Um ego insuflado, é um grande impedimento à “abertura” porque adquiriu privilégios e poder que não está disposto a perder. É possível que estes alunos venham a sofrer, mais que os outros, de “não inscrição”, e que seus corpos se tornem “objectos” de exibição. Assim, paradoxalmente, este tipo de olhar pode representar, também, um impedimento de liberdade e de abertura do eu. Além disso, pela ausência de limites171 que o olhar protector do adulto implica, há o risco do desenvolvimento de emoções e sentimentos negativos (egoísmo, orgulho, arrogância, prepotência, tirania, etc…), podendo transformar-se em vícios difíceis de ultrapassar.

170

Postic, Marcel, La Relation Educative, op. cit., p. 96

171

Os alunos “protegidos” pelo(a) professor(a) representam um incómodo para todos: para o aluno que aprende a ser “tirano”, para o professor que perde a autoridade, para a turma que sofre “ao vivo e quotidianamente” a injustiça e a discriminação.

II.3.2 – OLHARES/REPRESENTAÇÕES “LIBERTADORES E CONSTRUTORES DO