• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO CINCO ENTRE TRADICIONALIDADES E DESLOCAMENTOS

5.8 ESCAPANDO DA VISÃO FATALISTA DO DESCENTRAMENTO

Se a sensação que instaura o descentramento, sob a perspectiva dos professores, é de um fatalismo e uma morte simbólica da condição de professor, Martin- Barbero também aponta que esta deve ser, antes de tudo, uma experiência ressiginificadora de práticas educacionais. A ressemantização de práticas implica, por sua vez, que o processo educativo ocorra de forma continuada, ainda que desterritorializada de um espaço específico exclusivo da escola.

O livro, mesmo perdendo o lugar central como "repositório do saber", continuará com um papel fundante na apropriação do código oral-escrito e possibilitador de outras alfabetizações instauradas pelas NTIC. Nessa perpectiva, Martin-Barbero aproxima-se do pensamento freireano, no qual se reconhece que a construção do conhecimento é vista como um processo incessante de elaboração e reelaboração de ideias, dados, percepções e sensações que estão em um complexo trânsito. Um movimento contínuo que também poderíamos chamar de comunicação.

O que eu noto assim, que eles tem aquela ilha e eles ficam ali, quando eles saem daquilo eles vão vivenciar a realidade, mas tipo anestesiado. “Não é muito comigo.” Então eu me pergunto, será que toda essa informação ela está sendo boa pra ele, está formando, mesmo? Porque o conhecimento não é só informação, né. Porque

informação é fato é fato, conhecimento é um conjunto maior, ao meu ver, então

eu acho muito solitário também. (08.02)

Porque ele vai ter acesso à informação, independentemente do professor. Agora,

como ele vai transformar essa informação em conhecimento é o que vai dar a vida ao professor daqui para a frente. Eu percebo assim. Na verdade, o professor

vai se tornar um facilitador desse conhecimento. (12.46)

dele era de mediador, porque você não pode só soltar a tecnologia na mão do aluno e achar que, por si só, ele vai caminhar. Então sempre vai ter que existir o papel do

professor como mediador, incentivador, motivador, para chegar ao que... o

objetivo da escola, mudando de técnica. Por mais tecnologia, por mais tudo maravilhoso que tiver, o aluno não vai ser um autodidata; tem que ter o papel do professor. (11.16)

A condição ressemantizada do professor como mediador reafirma o pensamento de Paulo Freire (1996) de que "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua própria produção ou a sua construção". Freire, em seu livro "Extensão ou comunicação?", afirma que:

O conhecimento (...) exige uma presença do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora da realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer-se, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o "como" de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato (1983, p.27).

A maneira como o pensamento freireano concebe o processo cognitivo assemelha-se em muito com as dinâmicas de acesso à informação e sua articulação em rede instaurada pelas NTIC, em especial, as TIC interativas. Diferentemente da visão belicosa de "invasores tecnológicos" que "assumem" a escola ou de uma horda juvenil que se rebela contra o poder instituído e "mata" a figura do professor, podemos pensar que as NTIC e os processos de descentramento (seja do livro, do saber, das identidades, das sensações) interrogam o professor e a escola e os movimentam na busca pela ressignificação de seus espaços sociais, instaurando um intenso processo, ainda que exaustivo, de renovação da própria condição de professor.

Vimos, nesse capítulo final, que as dinâmicas que os professores participantes dessa pesquisa instauram na sala de aula, por meio das tecnologias de informação e comunicação, são bem diferentes das que eles experienciam em seu cotidiano, fora da escola. Também são diferentes suas percepções do que seja uma TIC, em que, frequentemente, relacionam-nas com elementos maquínicos informatizados. Em suas falas, os professores deixam transparecer a percepção de que são "invadidos" por essas novas tecnologias que os condicionam a se perceber em constante embate entre dois mundos: o "mundo" da escola, que luta para não ser descaracterizada pelo "mundo" da informação em excesso, e o da tecnologia indiscriminada.

descrédito e uma apatia dos professores na introdução das NTIC nas suas práticas pedagógicas. Identificamos que esse comportamento de apatia para a assunção das NTIC impõe ao professor pressões que são sentidas, em maior ou menor grau, vindas da sociedade, do governo (que por vezes exerce pressão inversa) e principalmente de seus próprios alunos.

Nas escolas que foram objeto de pesquisa, identificamos práticas e relatos que as caracterizam como tradicionalistas e de culturas conteudístas. A forma como estabelecem as relações educacionais em sala de aula estruturam-se em uma lógica comunicacional semelhante à da Teoria Hipodémica, como se o conteúdo da aula devesse ser apreendido exatamente como o professor/emissor o produz e que é mensurado em testes oficiais, que condicionam a qualidade da própria escola, ou seja, quanto mais for efetiva a reprodutibilidade desses conteúdos apreendidos, melhor é a escola. Isto provoca na escola um estímulo a práticas que assegurem mais o caráter mnemônico que criativo, reforçando processos de controle da informação pelo professor. Esta condição estimula o professor a permancer em metodologias educacionais que já conhece, como o livro e a lousa. Aliado a isso, os relatos fazem-nos compreender que a assunção de novas metodologias que façam uso de NTIC demandam do professor tempo para planejamento delas, assim como formação específica para um domínio técnico que o permita conhecer as possibilidades de construções narrativas vinculadas aos conteúdos formativos.

Ainda que em espaços marcados por práticas conteudisticas, identificamos nas visitas às escolas, assim como nos relatos oriundos das entrevistas, a presença das NTIC nas práticas escolares. Notamos também que as dinâmicas desenvolvidas com essas novas tecnologias possuíam vários modos de interação entre professor e aluno, mesmo quando se tratava da mesma TIC analisada, comprovando assim que não são apenas os meios comunicacionais os definidores da experiência educacional que se desenvolve na sala de aula. A maneira como os professores entendem as possibilidades das TIC influencia em quais sentidos e em quais intensidades os fluxos comunicativos operam na sala de aula. As condições que permitem entender essas possibilidades dizem respeito diretamente à compreensão que os professores possuem das sociabilidades instauradas pelas NTIC na sociedade contemporânea, em paralelo com suas percepções sobre o sentido de escola e de educação, podendo assim interiorizar ou não essas novas formas de ser e de estar na sua própria vida.

Identificamos, portanto, dois modos de interações que os professores desenvolvem das NTIC: a interação por apropriação das NTIC e a interação por uso das

NTIC. A primeira forma de interação pressupõe do professor o exercício de significar sua prática educacional com a instauração de novos fluxos comunicativos com os seus educandos, utilizando TIC teleativas e interativas com todas as possibilidades comunicativas que elas instauram para além das qualidades das TIC presenciais. Na interação por apropriação das NTIC, o professor percebe as mudanças instauradas pelas novas tecnologias como processos socializadores legítimos que reconfiguram também os processos educacionais e, portanto, torna essas tecnologias próprias também de seu cotidiano escolar. No caso das interações por uso das NTIC, os professores desenvolvem claramente um discurso funcionalista e tecnicista para o uso desses meios comunicacionais na sua prática educacional, geralmente vinculados ao apelo imagético que provocam nos alunos ou as facilidades instrumentais que possibilitam no trato com o conteúdo. É nesse tipo de apropriação que identificamos mais frequentemente discursos de "mundos apartados": mundo dos professores e o mundo dos alunos; mundo dos conteúdos e o mundo dos valores; mundo da fruição e o mundo da educação; mundo dos meios de comunicação e o mundo da escola, onde também identificamos uma postura de resistência com relação a essas NTIC. Os professores que exercem esse tipo de interação por uso mantêm uma percepção inalterada da educação diante das novas sociabilidades instauradas por essas NTIC. A forma de interação, portanto, muda, no aspecto instrumental, mas as dinâmicas educacionais permanecem as mesmas e, por conseguinte, não se desenvolvem todas as possibilidades comunicativas que as NTIC poderiam proporcionar naquela sala de aula.

Dentre as repercussões que as mudanças estruturais provocadas pelas NTIC instauram está o fenômeno do descentramento do livro, em que este deixa de ser o principal, ou o único, repositório legítimo do saber, apresentando-se outros meios como a televisão, o rádio, o cinema, a internet, etc. Este descentramento provoca, por sua vez, outros desdobramentos, como a desterritorialização da escola como espaço natural dos processo educacionais, por estes passarem a se constituir também nas novas mediações descentradas pelas NTIC. Incorre também uma destemporalização do saber não mais restrita a uma lógica etarista, em que "até tal idade deve-se saber só até aqui", pois, com o descentramento do livro e as desterritorializações do saber, perde-se o controle dessas limitações. Assim, a figura do professor e da própria escola vivencia uma condição de ressiginificação ou mesmo de desautorização. No entanto, podemos verificar também possibilidades importantes de revitalização do papel do professor e da própria escola nesse "incômodo" causado pelas mudanças estruturais dos meios de informação e comunicação, na sociedade contemporânea.