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CAPÍTULO CINCO ENTRE TRADICIONALIDADES E DESLOCAMENTOS

5.3 TRADICIONALIDADES E INSTRUMENTALIZAÇÕES

As escolas pesquisadas nesta dissertação demonstraram ser marcadas por uma cultura tradicional e conteudísta, ainda que muitos de seus professores e coordenadores se queixassem dessa condição. Na verdade, sinalizavam ter que assumir em suas práticas uma postura voltada a "passar um conteúdo" por imposições do próprio "sistema educacional" ou sensação de incapacidade e desautorização de promover outra dinâmica dentro da sala de aula.

A questão de material é uma luta mesmo, a gente sente na pele. Eu como sou professor de arte, eu necessito de muito material. Quando não tem material a

gente não faz. Então o trabalho passa a ser tradicional, vamo dizer assim, né. (...)

(04.07)

E eu tentava, eu ia em busca da linguagem deles. Eu acho que as diferenças não eram tão grandes por conta disso. Mas eu senti... logo quando eu comecei a dar aula,

eu senti uma certa dificuldade de entrar na linguagem deles, de entrar no mundo em que eles vivem(...). (12.17)

A escola de perfil tradicionalista funciona sob uma lógica funcionalista dos processos e meios comunicacionais, assim como o faziam a Teoria da Informação ou a Teoria Hipodérmica, “que viam a sociedade industrial do século XX como uma multidão onde os indivíduos estão isolados física e psicologicamente (não existe relações pessoais ou elas não são importantes no processo)” (ARAÚJO in HOHLFELDT, MARTINO e FRANÇA: 2007, p.125). Essa abordagem se aproxima, no espaço da escola, do que Paulo Freire chama de

“educação bancária”, ou seja, o [falso] entendimento de que o processo educativo ocorre pela transmissão de informação que deve ser absorvida pelo alunado, tal qual foi transmitida. Neste processo, o que é mais importante são a reprodução e a assimilação do saber instituído.

Pesquisador: - E o que é o tradicional?

Aluno, quadro e professor: modelo tradicional de aula, passa-se uma atividade, dá o conteúdo, né. Porque realmente sair daquele cotidiano é difícil, pra ele que já

vive há vinte anos, né. Mas tem uns professores inovadores, né. Tem professor que

a tecnologia chega e ele usa, mas uma pouca parcela dentro da escola, muito pouca. (07.20)

É essa aula tradicional de giz e lousa e não sei o quê e blá, blá, blá... Agora, é...

Tá entendo, tem, mas acho que.. de, de, de... Sabe, no fundo acho que é porque às

vezes até com medo de não saber, trabalhar diferente. Acredito que sim. Porque

até eu às vezes eu acho que eu, eu teria, sabe. De certa forma, eu não me sinto tão

preparada assim não. Dá pra eu fazer alguma coisa, mas não, eu não tô indo de acordo com o tempo. Sabe que eu vejo hoje esse pessoal já tá bem mais na frente

em relação a isso aí. (...) (02.32)

Quando levados a refletir sobre sua prática diária dentro da sala de aula, os professores identificam-na como tradicional, de "passar conteúdo", qualificando conhecimento apresentado como desatualizado em relação "ao tempo" e o desvalorizando como algo sem validade, apenas um "blá, blá, blá." Sob um olhar mais tradicionalista, a escola seria o lugar da preservação e transmissão de valores, modos e costumes predeterminados de uma sociedade para um sujeito supostamente passivo dentro de um processo de “transferência de saberes”, de modo a possibilitar a adequada convivência coletiva. Demerval Saviani (2008) agrupa nas correntes tradicionalistas a pedagogia de Platão e a pedagogia cristã, as pedagogias dos humanistas e a pedagogia da natureza, na qual se inclui Comenius, a pedagogia idealista de Kant, Fichte e Hegel, o humanismo racionalista; a teoria da evolução e a sistematização de Herbart-Ziller.

Pautando-se pela centralidade da instrução (formação intelectual), pensavam a escola como uma agência centrada no professor, cuja tarefa é transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade segundo uma gradação lógica, cabendo aos alunos assimilar os conteúdos que lhes são transmitidos. Nesse contexto, a prática era determinada pela teoria que a moldava, fornecendo-lhe tanto o conteúdo como a forma de transmissão pelo professor com a consequente assimilação pelo aluno."(2008, p.82)

Dentre os principais pontos identificados nas falas dos professores para a "opção" por esta abordagem educacional, podemos apontar primeiramente a estrutura educacional na qual o professor está imerso, que se revela de duas formas: a primeira é o tempo que o professor dispõe para suas atividades letivas, pois muitos relatam a exiguidade

do tempo, em face da demanda de trabalho que lhe é imposta:

Então, para o uso dessa tecnologia, precisa de planejamento, e tempo para você buscar essa informação e onde encontrá-la. E o que falta para o professor hoje? Tempo. Tempo para planejar essa aula, utilizando esse recurso, está certo.

Então, além dessas dificuldades que eu falei, da questão da aula expositiva, que muitos trabalham..., e eu acho que talvez seja um dos principais é o tempo.

Porque uma aula utiliza... Se eu for usar o Power Point – ver slides. Então eu tenho que ter tempo para produzir os meus slides. Qual vai ser o tempo que eu tenho para produzir slides, se eu dou aula de manhã, se eu dou aula à tarde, se eu dou aula à noite? Em que horário em vou produzir esses slides? Em que momento? (03.34)

A segunda é, como já apresentamos anteriormente, a pressão imposta aos professores por resultados mensuráveis dos conteúdos "repassados" aos alunos, que os condicionam a permanecer numa prática que "garanta" estes resultados.

(...) Como o professor está trabalhando de maneira tradicional, preocupado

com conteúdo, com aquela gradezinha lá do livro, então é como se essa informação

estivesse estanque – eu só recebo aquela dali. Só que não é assim. (...)(12.47)

O terceiro fator que podemos identificar é mais amplo e representa a soma de todos os outros fatores, ou seja, a própria cultura escolar.

Então a gente vê que eles [os alunos] se empolgam, quem dera a gente pudesse, o professor tivesse condição de trabalhar mais com eles [meios de comunicação], que talvez a coisa andasse mais, né. Mas aí vem a questão estrutural, a organiza... o, é, a

limitação do professor, né, que tradicionalmente ou convencionalmente, sei lá, ele aprendeu o que tem que ensinar no quadro e não sai disso, né, tem uma tremenda insegurança. (05.12)

A assunção de novos instrumentais dentro do espaço da sala de aula requer do professor reformulações na sua prática letiva, cujo uso sistematizado pode até demandar novas posturas pedagógicas mais profundas. Quando esses instrumentais são novas tecnologias de informação ou comunicação, além de reformulações nas práticas educativas e posturas pedagógicas, há a mudança potencial de fluxos comunicacionais e estruturas de poder vigentes nesse espaço.

Porém, o que observamos, e autores como Papert (2008) também relatam, é que mesmo com a instauração na escola de espaços estruturados, como os Laboratórios de Informática Educativa - LIE, que representam também um espaço simbólico importante de aproximação das NTIC no campo educacional, a escola não estabelece novas formas de pensar a relação professor-conteúdo-aluno, ou seja, mesmo dentro do LIE, a maneira como professores e estudantes relacionam-se com a informação e as dinâmicas comunicativas

permanece, via de regra, quase inalterada em relação a uma sala de aula convencional, demonstrando que a mera introdução de novas tecnologias não é por si só suficiente para promover mudanças na relação de poder que se estabelece entre professores e estudantes.

Papert (2008) relata que o computador inserido no espaço da escola "em vez de cortar caminhos, desafiando assim a própria idéia de fronteiras entre as matérias (...), tornou- se uma nova matéria" (2008, p. 51). O depoimento seguinte mostra o quão próxima é esta realidade:

É, nós temos aqui o nosso laboratório de informática, que os alunos têm um curso, né. Eles são convidados a fazer parte desse curso. É como se fosse uma espécie de

introdução à Internet, sendo que eu acho que falta uma continuidade. Vamos se

dizer, ao aumento de nível, certo?. Sempre vai ter a introdução, a introdução.

Todo ano, é um curso só de introdução, introdução. Introdução ao Windows,

introdução... (03.24)

Papert continua: o computador "que começara como um instrumento subversivo de mudança [do processo tradicional de ensino] foi neutralizado pelo sistema, convertido em instrumento de consolidação [do processo tradicional]" (2008, p.51). O relato abaixo ilustra bem o que afirma o autor:

Porque aqui a gente tem a informática. A informática, antigamente, logo que ela entrou na escola, ela entrou como... assim, os meninos iam pra informática, uma professora de informática. E lá ela ia exatamente mostrar o computador, como eles usarem, e tudo. Enfim, hoje em dia, não. Hoje em dia, o computador, a Internet, é uma ferramenta para a gente. Nós vamos para a sala de informática, mas nós,

professores, acompanhando os alunos, já com uma atividade prévia para eles fazerem lá. Então a informática entra como ferramenta. Então eu vejo isso aí

assim: como uma ferramenta para ajudar na educação. (11.09 - 11.10)

Sob esse relato, podemos entender que os meios comunicacionais que poderiam proporcionar ao espaço educativo dinâmicas de produção do saber mais estimulantes para a criança e o adolescente são reduzidos a réplicas "evoluídas" dos mesmos instrumentais comunicacionais, representativos de uma estrutura tradicional de ensino.