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5 ESCOLA: UMA QUESTÃO DE SUSPENSÃO, PROFANAÇÃO E CONDUÇÃO

A escola cria igualdade precisamente na medida em que constrói o tempo livre, isto é, na medida em que consegue, temporariamente, suspender ou adiar o passado e o futuro, criando, assim, uma brecha no tempo linear.

(Jan Masschelein e Maarten Simons)

Se preocupar em ensinar é outro caminho que quero traçar nesta reflexão. Se a família se torna um espaço indispensável para a formação de seus filhos, com uma primeira socialização responsável (mas quando dispensável desta responsabilidade, ela não deixa de existir por que a escola precisamente precisa assumir este lugar pela educação das crianças e dos jovens e pela renovação do mundo), a escola se torna um lugar com tempo livre para ensinar, tornar o conhecimento como um bem público, criando tempo de interesse, de invenção, de matéria, trazendo-os para à vida e sua significação com o mundo.

Há um esforço educativo sendo construído e estabelecido pelos professores, pais e sociedade para compreender a escola, seu espaço e tempo como um ambiente de sentido como liminar para um mundo novo. Há de ser somente um ensaio? Ensaio para a vida? Para a troca? O que quer de nós, escola? Você um espaço tão democraticamente contraditório, que chacoalhará os homens simples do povo para fora, e hoje lutará pelo injustiçado?

Há um compromisso social, ético e moral intrínseco aqui. A escola tem a força, a “raiz”, o tesouro. Ela não somente forma o humano para o mundo, como coloca-o no mundo esse humano que é capaz de reinventá-lo e muito possivelmente transformá-lo em um mundo muito melhor e mais humano.

Interagimos com a família, nossa primeira socialização, aprendendo a comer, a andar, a falar. É também na família que desenvolvemos as nossas primeiras noções de tempos, de espaços. Nela nos ensinam a ter respeito, solidariedade e compaixão. Conhecemos parte do mundo e interagimos com o meio em que vivemos e, logo, batemos à porta da escola: “toc, toc!”. Chegamos pequenos para o nosso segundo passo para a cidadania. O primeiro já foi dado, em casa, na família, pelos pais - a socialização primária - e logo nos primeiros anos de vida confiamos grande parte da nossa formação e construção de vida a ela: à escola.

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O primeiro objetivo da educação consiste em nos tornar conscientes da

realidade de nossos semelhantes. Ou seja: temos que aprender a ler suas

mentes, o que não equivale simplesmente à destreza estratégica de prevenir suas reações e nos adiantar a elas para condicioná-las em nosso benefício, mas implica antes de tudo atribuir-lhes estados mentais como os nossos e dos quais depende a própria qualidade dos nossos. Isso implica considerá-los sujeitos e não meros objetos; protagonistas de sua vida e não meros comparsas vazios da nossa (SAVATER, 2000, p. 43).

Chegamos cheios à escola. Cheios de informação, de cultura, de história, de paradigmas, porque, como vimos, não somos meros comparsas vazios, já chegamos previamente formados. Formados pelos pais, pela família, pelos conteúdos da televisão, pelas mídias, pela cultura digital, pelas infinitas informações, imagens, fotografias, linguagens, ideias, conceitos, valores, memórias, experiências, cultura e sociedade. Mas nada, nada inventado humanamente pode substituir o aprendizado da escola, a socialização de um espaço democrático, que interage com as diferenças, contribuindo para a formação e a constituição de sujeitos capazes de estabelecer relações conscientes com o mundo em que vivem.

Nascemos mais uma vez: para a escola. Mas um nascimento diferente da primeira vez. Quando nascemos somos apresentados ao mundo. Este mundo que já está girando, que já tem história e produção humana, já tem tempo, símbolos, ideias, cultura. E isso tudo nos forma humanos. A escola também é uma produção humana, inventada pelos gregos, como já vimos anteriormente. E por ser uma invenção humana sabemos dos seus riscos nessa sociedade, com tudo nas sociedades atuais, que não medem esforços para criticá-la e tirá-la do seu lugar de potencialidade.

Parece estranho investigar a escola, como Masschelein e Simons dizem: “Não é óbvio que a aprendizagem é o que acontece na escola? Que ela é uma iniciação ao conhecimento e às habilidades e uma socialização dos jovens na cultura de uma sociedade?” (2015, p. 16). Como se houvesse uma descredibilidade educacional com a escola, a sociedade está sempre desconfiando dessa tarefa tão óbvia de que a escola é capaz de ensinar.

A sociedade sempre suspeitou muito da escola, embora apostasse a educação dos seus humanos a ela para que formasse humanos capazes de continuar com a sociedade que querem, com a sua estrutura social, e a cobra disso sempre, mas não sejamos ingênuos. A sociedade cobra jovens “bem formados” para atingir os seus interesses, a sua produção, a sua economia, o seu consumismo, a sua política. Por isso fazem da escola sempre um escândalo público.

Quando se quer, a escola ousa desconstruir com esses paradigmas que foram estabelecidos a ela.

O que nos motiva a pensar na escola? Refletir e viver neste lugar que tem sido um palco de grandes espetáculos nos últimos tempos e em todos os outros? Ora, todos querem a escola. O que há nela de tão especial? De tão poderoso e interessante?

A escola é um espaço com princípios intrínsecos a ela, característicos de sua institucionalidade, formadora de sujeitos, conduzindo para a construção do conhecimento, desenvolvendo habilidades e funções que se designam especificamente à escola.

A tomada de consciência, a liberdade, o pensamento crítico, a autonomia e a inovação do mundo fazem parte das razões. Fazem parte dos princípios éticos, estéticos e políticos da escola, pelos quais lutamos diariamente como professores comprometidos que somos, e que não podemos, nem sequer por um minuto, deixar a escolar sem o nosso olhar, perder a escola de vista, se distanciar dela.

A aprendizagem de tempo livre na escola é uma experiência de vida crucial para transformamos o mundo em um lugar melhor. É a coragem da rebeldia, a valentia de amar, a justiça perante o povo, perante a classe trabalhadora, perante as mulheres, os negros, a toda comunidade LGBT e a todos, que por anos de escola e de sociedade foram negligenciados, excluídos e negados ao poder do conhecimento e do público.

Tornar a escola espaço de tempo livre para tornar o mundo comum é a reivindicação mais justa pelo conhecimento, pelo ensino e pela aprendizagem social. A escola forma as pessoas para o mundo. Novos caminhos nascem e outras leituras e compreensões para uma vida em sociedade torna-se certamente mais possível se garantirmos a escola para todos, como bem público e de responsabilidade pedagógica de um mundo comum.

Uma escola democrática, de tempo livre para aprender o mundo e significá-lo, é o começo da formação para a liberdade, para se ter crianças e jovens emancipados e conscientes para toda e qualquer tomada de decisão para este mundo comum e de todos. Para isso defendemos a escola como uma questão de suspensão (ou liberar, descartar, colocar entre parênteses), profanação (tornar algo disponível, tornar- se um bem público ou comum) e uma questão de condução (contar o mundo às novas gerações) como anterioridade pedagógica para que o mundo sempre se renove.

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Quando ocorre a suspensão, os requisitos, as tarefas e funções governam espaços específicos, tais como a família, o local de trabalho, o clube desportivo, o bar e o hospital, já não se aplicam. A suspensão, tal como entendemos aqui, significa (temporariamente) tornar algo inoperante, ou, em outras palavras, tirá-lo da produção, liberando-o, retirando de seu contexto normal. É um ato de desprivatização, isto é, desapropriação. Na escola, o tempo não é dedicado à produção, investimento, funcionalidade ou relaxamento. Pelo contrário, esses tipos de tempos são abandonados. De um modo geral, podemos dizer que o tempo escolar é o tempo tornado livre e não tempo produtivo (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 20-21).

Nessa perspectiva a escola torna-se uma constante construção do aprender, da significação do conhecimento, da formação humana e das suas mais ricas experiências pelas relações entre o Eu e o Outro, trazendo consigo não só uma narrativa das histórias, mas as imensidões de contextos e memórias que sempre nos contam novas histórias e constroem novos contextos e narrativas: primeiro, porque estamos em um tempo e em algum lugar do mundo; segundo, porque esse tempo não é parado e esse lugar é continuo. E na escola esse tempo é livre e está em movimento sempre que aconteça.

Essa suspensão pelo interesse de criar tempo livre atrai o aluno para o tempo presente. E é esse tempo presente, de corpo e alma, que defendemos. Lembro-me que em uma aula de Filosofia e Educação na universidade o professor nos questionou sobre o nosso tempo na escola, no caso, o tempo de aprender na universidade. Ele perguntou: “Vocês têm tempo para essa aula?”. Parecia tão óbvio (quando a maioria dos alunos se dispersavam nos celulares e com conversas paralelas com os colegas), me parece que estava na cara a resposta.

Ora, tempo tínhamos pouco. Certamente não estávamos ali por inteiro. Nossos pensamentos viajavam longe e só a nossa casca permanecia ali, sentada, naquela cadeira. De certeza, não era por falta de competência do professor, mas, sem dúvida, por nunca terem nos ensinado a ter tempo livre para a prática do estudo, para a prática de suspensão. Continuávamos seguindo os mesmos caminhos que a educação traçara até então. Sem tempo livre para aprender. Sem tempo de suspensão do mundo. Se preocupar com a sociedade, se preocupar com os problemas, se preocupar com a economia, se preocupar com a política, se (pré) ocupar sem tempo, ou pouco tempo, de se preocupar com o tempo presente.

Devemos experimentar modos de organizar e projetar escolas para criar um espaço dedicado e tempo separado daquele da família, da economia e da esfera política. Esse deveria ser um tempo e espaço que não é caracterizado pelo uso pelo uso multifuncional, circulação permanente e serviços flexíveis prestados a pessoas com necessidades pessoais de aprendizagem e percursos individuais de aprendizagem voltados para maximizar ganhos de aprendizagem. Mais sim

um tempo e espaço que permanece isolado e ajuda a permitir um interesse partilhado no mundo; um momento e espaço tranquilos em que se pode viver, um tempo e lugar onde as coisas podem surgir em si mesmas e cuja funcionalidade está temporariamente suspensa (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 106).

Isso me acompanhou por todo o meu caminhar na universidade e comecei a olhar o tempo livre para o estudo por outra perspectiva, e extremamente necessária para a construção de mundo que desejamos seguir e a reinvenção da escola para crianças e jovens. “É através dessa suspensão que as crianças podem aparecer como alunos, os adultos como professores, e os conhecimentos e habilidades socialmente importantes como a matéria da escola” (MASSACHELEIN; SOMONS, 2015, p. 22-23).

Por essa suspensão, esse tempo livre para aprender o ócio, a polis, a democracia e o mundo humano, é que possibilitamos a igualdade na escola, com o que os professores possivelmente libertem seus alunos.

A escola cria igualdade precisamente na medida em que constrói o tempo livre, isto é, na medida em que consegue, temporariamente, suspender ou adiar o passado e o futuro, criando, assim, uma brecha no tempo linear. O tempo linear é o momento de causa e efeito: “você é isso, então você tem que fazer aquilo”, “você pode fazer isso, então você entra aqui”, “você vai precisar disso mais tarde na vida, então essa é a escolha certa e aquela é a matéria apropriada”. Romper com esse tempo e lógica, se resume a isso: a escola chama os jovens para o tempo presente (“o presente do indicativo” nas palavras de Pennac) e os libera tanto da carga potencial do seu passado quanto da pressão potencial de um futuro de um futuro pretendido planejado (ou já perdido) (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 23).

Nessa perspectiva, pensaremos a instituição escolar, com tempo livre para estudar, discutir, refletir, criar e reinventar o mundo. Os alunos são tirados do seu mundo e são levados a outro. Suspendem a sua realidade e conhecem o tempo presente da aprendizagem.

Um mundo novo. Um novo que lhe pede tempo, atenção, cumplicidade, olhar e ouvir. Neste sentido, um mundo de profanação. Escola como tempo presente, um espaço e tempo de se implicar, dedicar para possibilidades e liberdade de ser aluno.

Um tempo e lugar profanos, mas também as coisas profanas, referem-se a algo que é desligado do uso habitual, não mais sagrado ou ocupado por um significado específico, e, portanto, algo no mundo que é, ao mesmo tempo, acessível a todos e sujeito à (re) apropriação de significado (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 25).

43 Ou seja, o sentido da escola se torna público, um espaço que é acessível, gratuito e disponível para o uso de todos. É por este caráter de uso público que a escola é profana,

[...] o importante aqui é que são precisamente essas coisas públicas - as quais, por serem públicas, estão, portanto, disponíveis para o uso livre e novo - que proporcionam à geração mais jovem a oportunidade de experimentar a si mesma como uma nova geração”. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 25).

Quando falamos de uma escola com um caráter público falamos de um lugar que torna o conhecimento, o estudo, uma prática comum entre todas as pessoas (entre negros e brancos, entre ricos e pobres, entre e mulheres e homens, entre héteros e homossexuais), construindo um novo olhar para as dimensões da condição humana. Um olhar justo, democrático e igual. “O que é tratado na escola está enraizado na sociedade, no cotidiano, mas transformados pelos atos simples e profundos de suspensão (temporária) e profanação” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 25).

Há uma luta pela conquista deste caminho. O cansaço e a resistência nos tornam capazes de agarrar uma educação que se comprometa com essa suspensão, profanação e condução responsável; que reflita e construa os valores educacionais e a transitividade crítica, o alargamento da capacidade de compreensão e constituição do mundo.

O que interessa é construir um tempo e espaço possível de suspensão e profanação, capaz de mediar à tarefa de criar tempo escolar de tempo livre, que seja capaz de conduzir, por amor às novas gerações e à preservação da escola, o mundo aos seus alunos, o conhecimento poderoso, tornando a escola um espaço eminentemente de estudo e prática de algum objeto, seja ele a matemática, o português, a arte, a filosofia, a borboleta, ou as pedras, independentemente do seu uso adequado para a sociedade. Isso significa uma escola de tempo livre construindo um mundo comum.