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A escola de tempo livre: um ensaio para a liberdade

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO

CURSO DE PEDAGOGIA

ÉVELIN FERNANDA SOARES

A ESCOLA DE TEMPO LIVRE: UM ENSAIO

PARA A LIBERDADE

Ijuí (RS) 2018

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1 ÉVELIN FERNANDA SOARES

A ESCOLA DE TEMPO LIVRE: UM ENSAIO

PARA A LIBERDADE

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, apresentado ao Curso de Pedagogia, do Departamento de Humanidades e Educação – DHE, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial para obtenção do título de graduada em Pedagogia.

Orientador: Prof. Dr. José Pedro Boufleuer

Ijuí (RS) 2018

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Dedico este trabalho à minha mãe Marli, ao meu pai Paulo, ao meu irmão Matheus, às crianças amadas deste mundo e a todos os companheiros e companheiras que resistem comigo e que de alguma forma ou de outra contribuíram por essa conquista revolucionária de minha vida.

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3 AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe Marli e ao meu pai Paulo por assumirem a sua tarefa de me educar e não renunciar o seu lugar, e que, por isso, me legaram o valioso tesouro da educação que, sem dúvidas, deixou marcas profundas na minha vida, para o bem e para o mal. Mãe, minha querida mãe, ao teu lado eu aprendi que devo cultivar o amor às pessoas e ao mundo. Você me tornou professora, me ensinou que a escola é coisa séria. E não é que é mesmo?! Pai, meu querido pai, obrigada por me contar a sua história de vida. F foi o mundo contado por você que me fez suspeitar da escola e entrar nela, de corpo e de alma, lutar por uma sociedade melhor e possivelmente renová-la. Vocês me deram a ideia de uma nova consciência e juventude.

Agradeço às minhas companheiras Stéfani Korb e Luana Preto, que sempre estiveram comigo nesta caminhada, resistindo. Vocês me ensinaram o verdadeiro sentido da amizade. E é tão gigante poder compartilhar a vida com vocês, as experiências, a escola, a luta, a política, a liderança e, principalmente, o conhecimento e o amor.

Agradeço a minha companheira Harper dos Santos, pelo amor e pela paciência, por me cuidar (mesmo na minha ausência), e não me deixar desistir dessa conquista. Obrigada pelos momentos de cumplicidade, de vida, de caos, e pelos infinitos diálogos traçados comigo sobre a educação e a sociedade. Você me trouxe para a vida.

Agradeço de forma muito especial, ao meu professor e orientador, José Pedro Boufleuer, por despertar em mim o interesse de investigar a escola, e por me mover a esta busca infinita de aprendizados. Você me tocou, me transformou.

Agradeço a todos os professores do curso de Pedagogia da UNIJUÍ, que dedicam o seu tempo à escola e à educação das pessoas e, em especial, à professora Lídia Allebrandt, por me ensinar a docência compartilhada e a responsabilidade pedagógica. Vocês animam e possibilitam a renovação desse mundo comum.

Por fim, agradeço as políticas públicas, que garantiram a minha entrada, permanência e formação no ensino superior, e que pela experiência compartilhada nesse espaço de praticar o estudo me fizeram entender o valor de educar e, por isso, defender e lutar por uma escola democrática e comunista.

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“O princípio da democracia corrompe-se quando se perde o espírito da igualdade” (Montesquieu).

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5 RESUMO

O presente trabalho de pesquisa monográfica faz uma análise reflexiva de como se deu o surgimento da escola democrática e sua posterior construção até chegar aos dias atuais no seu ideário pedagógico, compreendendo-a como um artifício inventado pelo homem, possível de ser preservada ou abandonada. Discute e defende a escola como Skholé, como lugar de tempo livre para aprender, para viver o ócio, para cultivar a polis, a igualdade e a democracia, buscando referências nas obras de Jan Masschelein, Maarten Simons, Fernando Savater e Hannah Arendt, como os principais autores que sustentam a pesquisa bibliográfica. A pesquisa compreende a educação a partir da anterioridade pedagógica, como um “o contar o mundo às novas gerações”, como um ato de amor revolucionário às crianças e jovens, tornando-os capazes de preservar o mundo pela sua escolarização. Há uma defesa incansável da escola com princípios democráticos, que promova a igualdade e a justiça mediante formas específicas de tematização de temas relativos ao mundo. Nessa perspectiva, tece potencialidades acerca da escola a partir de sua compreensão como um espaço de tempo livre para praticar e estudar o mundo, para o que remete à invenção da Skholé, com os princípios e potencialidades inspirados na sociedade grega. A pesquisa afirma o caráter público da escola, que forme crianças e jovens para a liberdade, transformando-os e trazendo-os para a vida, possibilitando-lhes a sua própria renovação e a renovação de um mundo comum.

Palavras-Chave: Escola; Skholé: Anterioridade pedagógica; Igualdade; Democracia; Liberdade.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7 1 O NASCER DA ESCOLA COMO UM DIÁLOGO ENTRE AS VELHAS E NOVAS GERAÇÕES: OS RISCOS PARA UMA SUPOSTA ORDEM DO MUNDO ... 11 2 EDUCAR COMO DISPOSIÇÃO DE CONTAR O MUNDO ÀS NOVAS GERAÇÕES ... 19 3 FAMÍLIA: PRIMEIRA SOCIALIZAÇÃO COMO UMA POLÍTICA EDUCATIVA ... 24 4 O ECLIPSE EDUCACIONAL DA FAMÍLIA: A ÉTICA, A RELIGIÃO, O SEXO, AS DROGAS E A VIOLÊNCIA ... 34 5 ESCOLA: UMA QUESTÃO DE SUSPENSÃO, PROFANAÇÃO E CONDUÇÃO .... 38 6 SKOLHÉ E DEMOCRACIA: TEMPO LIVRE PARA APRENDER A IGUALDADE ... 44 7 A ESCOLA NUNCA É NEUTRA: ESCOLHE, VERIFICA, PRESSUPÕE, CONVENCE, ELOGIA E DESCARTA ... 50 CONCLUSÃO: UMA DIMENSÃO DEMOCRÁTICA E COMUNISTA, O COMEÇO DA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO COMUM ... 54 REFERÊNCIAS ... 59

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7 INTRODUÇÃO

A escola é mar profundo, e todo mar profundo tem seus riscos e rabiscos para navegar. Parece ser tão óbvio discutir a escola, seus princípios e potencialidades, mas cada vez mais, e sempre, precisamos conduzir as novas gerações ao mundo. Mundo este que hoje acha elegante e de bom tom denunciar um espaço eminentemente público, democrático e de todos: a escola.

Esta pesquisa é mais do que uma defesa da escola. Ela se orienta à preservação de uma invenção que pode ser esquecida, será o que ocorrerá se não lutarmos por ela. O valor de educar é a tentativa de fazer esta preservação, que não nos deixa esquecer o valor da escola para cada nova geração e para a renovação de um mundo comum e público.

É para esta conversa sincera que convidamos você, caro leitor, para dialogarmos sobre a escola. Um diálogo que se pretende alargado e reflexivo, capaz de compreender a vida escolar como uma experiência qualificada para a vida em sociedade, necessária para o mundo e, especialmente, única, com princípios institucionais característicos só da escola, e só da escola.

Nos dois primeiros capítulos trago a dimensão da anterioridade pedagógica como essencialmente necessária para a introdução das crianças ao mundo e a sua renovação. É pela experiência humana do passado, pelo aprendizado humano, que nos constituímos hoje e construímos um imaginário de humanidade e de sociedade em que queremos viver. A constituição do mundo humano tem memória histórica. Raul Seixas já fazia questão de registrar que “eu nasci há dez mil anos atrás”1. O nascimento da sociedade acontece antes da nossa chegada ao mundo. E é por essa razão que precisamos falar do passado, não como quem deseja voltar para ele, mas como quem deseja e luta para construir um futuro que preserve as experiências e conquistas da história humana deste mundo histórico. Mundo este que existe a milhares de anos, que se inventa e renova a cada nova geração, causando impactos gigantescos na sociedade, para o bem e para o mal da humanidade.

Com respeito à educação - esse lugar de formação para a civilização e para o mundo-, contraponho a concepção de que a escola é apenas uma extensão da família (outro lugar de educar), ou de que há ela pertença apenas à exigência de uma ordem política, social ou econômica (quase sempre fraudada por um projeto de governo as suas sombras, com interesses

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próprios que convêm a sua própria ordem política e novas formas de dominação e de poder), e de que dessa forma, nada mais poderia ser feito por ela.

Não só faremos “tudo” pela escola nesta defesa, como a colocaremos em um lugar de potencialidade, capaz de transformação, e necessária para a experiência humana e a construção de um mundo comum. Acreditamos na sua dimensão democrática e comunista, que possibilita a igualdade do aprendizado e o conhecimento para todos, porque a escola é este lugar de compartilhar experiências e aprender com o outro, - este outro que é singular, que é diferente, que é único -, a socialização do mundo, a construção de novos aprendizados, e a arte de inventar novas histórias a serem contadas a quem chegar.

Continuamos os capítulos seguintes refletindo a constituição das crianças na sua primeira socialização: a família. Trago uma análise crítica dessa socialização primária, que é de responsabilidade dos pais, - ou adultos que ocuparem este lugar -, e suas contribuições para a formação humana de seus filhos, estabelecendo relações e significados com os conceitos de Fernando Savater, na sua obra, “O valor de Educar”, que compreende a família como a “socialização primária” do neófito, que transforma seus filhos em um membro mais ou menos padrão da sociedade. Discorrerei sobre as finalidades e responsabilidades materna e paterna, compreendendo que é preciso, por razões plausíveis, que alguém se resigne a ser adulto para que a família opere educacionalmente. Reconstruo os sentidos de autoridade e medo como necessários para a educação dos filhos, contribuindo de forma positiva na identidade infantil da criança, pois nesta primeira relação há, sem dúvida, consequências grandiosas na constituição das crianças que, quando realizado de modo satisfatório o seu papel, pode ser uma experiência positiva para a sua vida e, sobretudo, devolver à escola a sua exclusividade na tarefa de ensinar. Autoridade e medo, neste caso, não significam autoritarismo e repressão, já que seria desagradável e de mal tom andarmos por este caminho. Se quisermos educar crianças e jovens para a liberdade, a autoridade e o medo aqui significam ter compromisso, responsabilidade, cuidado e amor para com seus filhos, de modo que possam se constituir como sujeitos quando crescerem.

Por fim, nos debruçamos sobre a concepção da segunda socialização: a escola. Pensamos a escola e a defendemos como uma instituição com princípios democráticos, que possibilita a experiência da igualdade, sendo assim, formadora de sujeitos livres e emancipados. Para isso, fazemos das concepções de escola como skholé, de Jan Masschelein e Maarten Simons, na sua obra “Em defesa da escola: uma questão pública”, referência para as análises e reflexões acerca da instituição de ensino: a escola. Há uma potencialidade construída pela

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9 escola, como geradora do interesse para construir a aprendizagem e o conhecimento, essa aprendizagem e conhecimento que é público e, por isso, a escola se torna também um espaço para dialogar e aprender a democracia.

A escola como skholé, espaço em potencial para o tempo livre, para aprender sobre a vida da polis, sobre a igualdade e a democracia, constitui uma prática de liberdade. Isso requer esforço, disciplina e responsabilidade. Isso nos lembra a canção de Renato Russo: “disciplina é liberdade, compaixão é fortaleza”2.

A partir dessas análises, compreendemos que a escola pode ser interessante se a pensarmos, de acordo com Masschelein e Simons, como uma questão de suspensão, profanação e condução, para que assuma responsabilidade pedagógica necessária para que crianças e jovens tenham tempo livre de aprender na escola e de serem alunos. Trata-se, nesse sentido, de dedicar o tempo da escola experienciando a arte das palavras, a arte dos números, a arte das histórias, a arte dos planetas. Um tempo para a humanização, que permita que crianças e jovens se desprendam das expectativas de desenvolverem habilidades ou talentos, para assumirem postos no mundo e, sim, que reflitam sobre si mesmos, instilando a igualdade escolar entre todos no ambiente da escola.

Há um caminho crítico e amoroso sendo construído em defesa da escola com tempo livre para a prática e o estudo, não negando a história, - por que compreendemos que nós precisamos ter memória histórica, pensar o nosso tempo, a nossa historicidade e pensar nós mesmos nele -, aprendendo com o que nos constitui, para tornar presente nas escolas e não perder por nenhum descuido, a possibilidade de uma vida digna e justa, o que só a anterioridade pedagógica, o dialogo qualificado entre as gerações, a igualdade, a democracia e o amor, nos possibilitam como fenômeno de liberdade.

Pela experiência escolar, pela filosofia da educação, pela voz pedagógica, daremos vida a este outro lugar da escola, uma escola que ensina a ler o mundo pelo olhar da cidadania, da democracia, da justiça e igualdade para todos e, principalmente uma escola que concebe o aluno, como um ser humano que merece receber a herança da historicidade, as memórias do mundo de modo amoroso e democrático. É pela suspensão, profanação atenção e amor ao mundo, com um tempo de igualdade, que o interesse pode ser criado e o mundo revolucionado. A dúvida, a curiosidade, a invenção, a arte de pensar e experienciar o mundo escolar e o mundo fora da escola, torna a educação um arranjo possível de transformação e, assim sendo, podemos

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criar humanos livres e conscientes para a tomada de decisão. “Coçar e comer é só começar. Conversar e escrever também”, nos lembra Mario Osorio Marques.

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11 1 O NASCER DA ESCOLA COMO UM DIÁLOGO ENTRE AS VELHAS E NOVAS GERAÇÕES: OS RISCOS PARA UMA SUPOSTA ORDEM DO MUNDO

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável se não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.

(Hannah Arendt)

Vivemos em uma sociedade inventada e constituída pelo homem, que hoje torna a escola suspeita de um cenário fracassado, estilhaçado, alienado (como se a escola apenas desempenhasse um papel de aparelho ideológico), que reproduz na cultura as desigualdades e injustiças sociais, um lugar de desencantamento, desinteresse de vivê-la, de experienciá-la, de aprendê-la. A escola do novo século se torna vulnerável às críticas e às denúncias cada vez mais contundentes. Há uma descrença na experiência escolar, na aprendizagem e no ensino. Seus muros se tornam frágeis em meio a tantas acusações e falta de amor. Vemos no decorrer da história que a escola sempre foi denunciada e suspeita, o que significa que a constatação atual não é uma característica das sociedades modernas, mas também da historicidade do mundo.

Neste momento político, histórico e social colocamos em risco a escola, onde parece que negamos a nossa história, o nosso passado, as nossas raízes, como quem não tem tempo para dialogar com as velhas gerações e aprender com elas. Em vez disso, dá-se voz e lugar às narrativas criadas por um sistema que faz girar o negócio, o produto econômico. A elite privilegiada e a economia de um jogo do sistema capitalista selvagem vendem um discurso barato e fácil, de forma errônea e irresponsável, fazendo com que as pessoas, - de todas as classes sociais -, comprem a ideia da desescolarização, se tornando cúmplices da ordem do maquinário normatizador social, denunciando a escola para desaparecer com ela, como que se quisessem a sua morte, tratando-a com grande desprezo e hostilidade. Com o tempo, certamente, pagarão caro pela sua sentença.

Ultimamente tenho refletido muito sobre a escola. Sobre essa escola que fez tudo “pedagogicamente de errado”, que falhou com a aprendizagem, com a prática do conhecimento e a formação do “cidadão de bem”. E cada vez mais, e sempre, eu tenho a suspeita de que essa escola, muito destruída e desprovida de ensino, na verdade é a resistência que sobra de uma sociedade que se constitui ao avesso.

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E para pensar essa escola, e repensá-la nas suas minuciosas partes e no que tem em essencial, faço do desenrolar desta escrita e defesa uma conversa verdadeira e cúmplice que está diretamente cruzada e em sintonia com as ideias de alguns autores; Jan Masschelein e Maarten Simons, dialogando com o que consta no livro “Em defesa da escola: uma questão pública”; Hannah Arendt, pelo que instiga em textos do seu livro “Entre o passado e o Futuro”, especialmente no ensaio “A crise na Educação”; Fernando Savater, por tudo o que a obra “O valor de educar” me tem feito refletir; outros autores e professores da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, especialmente amigos escritos legados pelo Mario Osorio Marques (e que deixou saudades). A partir desses interlocutores, pude estudar e refletir sobre a historicidade da escola e suas potencialidades para um mundo comum. Todos eles pensam a escola com um tempo e espaço para formar sujeitos com vistas a sua inserção no mundo. Trata-se de um repensar amoroso da escola, buscando nela a sua especificidade institucional, seus princípios, sua ética, sua autêntica natureza e seu valor de educar. O que a todos une é o acreditar na escola como esse espaço de formação que nos possibilita a esperança de uma pedagogia capaz de revolucionar e emancipar a quem vive e pertence a este nosso mundo que a ela pertence. Enfim, concordando com Kant (2002), não nascemos humanos, mas nos tornamos humanos pela educação.

Na nossa defesa de escola vamos defendê-la de acusações que surgiram e surgem em toda velha e nova construção de sociedade, que com os interesses próprios de cada época, baseiam- se em uma negação temorosa e desconfiada concepção do que realmente consiste a escola: uma sociedade que provê tempo e espaço para renovar a si mesma, oferecendo-se assim, em toda a sua vulnerabilidade (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 6).

A escola sobrevive às gerações, aos tempos, às mudanças, aos lugares, às memórias, às crises, aos conflitos. E é inegável que a ela seja instituída por muitos e tenha legitimidade e importância para a constituição de sujeitos (para a formação de pessoas) e a construção sócio/histórica de uma sociedade aberta que se renova entre velhas e novas gerações.

Há uma força instituída na escola que a ela foi concedida durante a historicidade e experiência humanas, como se houvesse intrínseco a ela uma “raiz” histórica que faz com que ela permaneça viva e necessária em todos os tempos. Será essa “raiz” histórica responsável pela sua existência na sociedade até hoje e, possivelmente, para sempre? Mesmo com tantas tentativas de esquecê-la no mundo em que compartilhamos a vida? E o que seria essa “raiz” histórica escolar tão resistente que a torna possível sempre? Ou, eu diria, até que (re) inventemos outra sociedade, outra forma de nos constituir humanos, sem mais precisar educar

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13 as pessoas para a vida coletiva? Ainda assim, precisaremos de novas formas de educar para a continuidade humana. Por isso, outro espaço escolar terá que será inventado e oferecido às novas gerações, uma vez que “nascemos humanos, mas isso não basta: temos também que chegar a sê-lo” (SAVATER, 2000, p. 29).

Assim, faço uma tentativa, eu diria que muito esperançosa, de lhe provocar o pensamento, desconstruir a ideia de que a escola é ultrapassada para esse nosso tempo, e de que ela é somente cúmplice das concepções pedagógicas pautadas na meritocracia, no ensino sistemático e na reprodução das classes sociais. Mesmo não negando essas acusações, entendo possível o exercício de uma reflexão mais alargada acerca da escola, um outro olhar pedagógico, conforme a sua historicidade que se mostra e se preserva em sua “raiz” escolar durante o tempo e as gerações. É isso que nos convida a pensar sobre outras formas de estabelecer o ensino-aprendizagem, atribuindo novos sentidos para a escola, percebendo-a com outro sentimento de revolução.

Nesse sentido, sairemos de uma perspectiva organizacional e curricular que fundamenta a lógica do mercado de trabalho, a conservação social, reprodutora das desigualdades e injustiças da sociedade, na direção da construção de um espaço com especificidades inerentes às aprendizagens e à construção de novos saberes, de um conhecimento poderoso e emancipatório, cúmplice e verdadeiro. Visa-se, com isso, a tomada de consciência e a compreensão do tempo e espaço em que se vive, para que esses humanos formados pela escola sejam capazes de (re) inventar o mundo outra vez, pelo diálogo verdadeiro, pela prática pedagógica responsável, com consciência e amor.

Desde a sua criação e ao longo da sua história, a escola tem sido confrontada com as tentativas de domar a sua dimensão democrática e comunista. Esses esforços são mais mortais hoje do que nunca. Pode haver muitas escolas novas e quase todo mundo pode (querer) ir para a escola, mas, como já dissemos, as estratégias e táticas para domar a escola permanecem. E essas estratégicas e táticas atingem o coração da própria escola; a única coisa que torna a escola uma escola e anima a sua existência é o amor pelo mundo e pela nova geração (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 100).

Nessa perspectiva, de amor pelo mundo e por sua renovação, faremos um diálogo qualificado entre as velhas e as novas gerações, numa perspectiva dialética de anterioridade e posterioridade pedagógica, com o que se abrem as largas possibilidades de se constituir sujeitos na escola.

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Traçar significados entre o passado e o futuro nos possibilita uma análise mais próxima da realidade da escola, pois não é de hoje que a escola se torna suspeita da aprendizagem e também não é de hoje que a escola se torna tempo livre para aprender a democracia e a igualdade entre todos.

Remontamos à história da escola para, assim, descobrir se há nela ou não essa “raiz” escolar, essa “raiz” que a mantém viva até hoje e possivelmente para sempre, vendo quais seus significados para o mundo comum, como, também, quais indícios de uma historicidade que a condena desde sempre.

A escola, contudo, esse espaço escolar que é de todos (um espaço para a democracia e a igualdade), sempre foi alvo de acusações, seja por parte das elites, por parte do sistema econômico, seja por toda nova ordem social instituída, pela sociedade em si, pelos professores, pela comunidade ou pela família. Assim como foi alvo de acusações no mundo real, a escola também é denunciada nos meios virtuais mediante campanhas como a impulsionada pela hashtag #NãoFiqueNaEscola, que já chegou nos trending topic da semana, ganhando notoriedade e consistência a cada novo comentário e compartilhamento virtual. Parece ser mais fácil desmontar a escola dentro de casa, atrás de uma tela colorida, mas quando vamos para o debate, para o público, é difícil defender a ideia de acabar com um espaço eminentemente público e que garante a aprendizagem qualificada e a continuidade do mundo.

A escola a que aqui remonto assume um caráter democrático, construído para a igualdade e para a justiça social. Trata-se da primeira ideia de escola criada, dentro do ideário pedagógico dos gregos, que nos foi legado como tesouro expresso em narrativas simbólicas, ao modo de uma memória histórica constitutiva de nossa tradição formativa. As justas formas de educar por amor às novas gerações é que nos fazem defender incansavelmente a existência da escola. Os gregos nos presentearam com esse legado que faz da escola uma criação de espaço público, de igualdade e, portanto, motivo de tantas acusações e denúncias.

Na verdade, podemos ler a longa história da escola como uma história de esforços continuamente renovados para roubar da escola o seu caráter escolar, isto é, como tentativas de “desescolarizar” a escola – que vão muito mais longe no tempo do que os autoproclamados “desescolarizadores”, da década de 1970 podiam perceber (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 17).

Isso é visto na longa história que a escola tem, desde a sua invenção nas cidades gregas, num tempo muito distante do nosso. Desde aqueles tempos, a escola carrega consigo essa

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15 desconfiança, um descrédito em relação à formação humana que lhe foi atribuída. Um descrédito que sempre a burguesia lhe atribuía, mas que hoje é compartilhado por diferentes setores da sociedade.

Acusações que no meu ver precisam ser suspensas para compreender a realidade da escola na sua essência. Não se trata de deixar essas acusações fechadas em caixas para não serem mais abertas ou consultadas, mas de tirá-las do ponto de vista, buscando fontes nelas somente quando necessário. Só assim teremos condições éticas e verdadeiras para pensar o contexto escolar atual e o ordinário da escola, a escola na sua essência de escola, levantando hipóteses razoáveis do que seja educar a humanidade e porque esforçamo-nos para isso. Com relação às acusações, é preciso entender as razões para se chegar a pensamentos tão radicais, cogitando a possibilidade do seu desaparecimento pela sua ineficácia em relação ao progresso da ordem social.

Afinal, por que é tão conveniente desmontar a escola? E se a escola é tão antiescolar, postulada de precariedade, ultrapassada, por que ela se torna o interesse das novas autoridades que parecem tentar, a qualquer custo, tomar o seu lugar? E quando falo sobre novas autoridades quero dizer, de modo crítico e ético, das novas instituições educativas “feitas sob medida” nas sociedades modernas, investidas pelos poderosos da sociedade, ou pelo sistema, ou pela economia, ou pela religião, ou pela política.

Encontramos hipóteses e alguns significados na história para discutir acerca dessas questões. Remontando às nossas memórias, dialogamos com o passado para estabelecer as nossas relações com o presente e apostar no futuro das novas gerações, porque acreditamos na memória histórica, somos aquilo que fomos, no ponto de vista individual ou coletivo, mas muito mais do ponto de vista da sociedade e da cultura. Não podemos deixar de dialogar com as velhas gerações e nem deixar de ler e significar os seus testemunhos, pois isso nos impossibilitaria uma nova invenção de sociedade, fazendo com que tracemos os mesmos caminhos sangrentos e de guerra que já foram percorridos até aqui pelos que nos precederam.

Somos produtos da história, ao modo de uma narrativa com construções simbólicas no tempo e espaço. Com isso compreendemos a humanidade como algo que existe e se constrói nas relações humanas. O mundo só é mundo por que há humanos nele, sem o humano não há o mundo, ou seja, o mundo é uma invenção humana, assim como tudo o que existe nele. E para que haja protagonismo das novas gerações, para a invenção de um mundo novo, é preciso consciência histórica para aprendê-la e (re) significá-la, produzindo novas concepções de

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construção de mundo, atribuindo sentido no que já foi, e ensaiando o que virá mediante outro tempo, outros novos que vêm ao mundo, com consciência histórica dos novos caminhos a serem percorridos pelo ativismo de uma nova geração.

Nas sociedades modernas em que muitos espaços sociais se tornam educativos, poucos fazem questão de presentearem às velhas e às novas gerações o seu maior tesouro, pois já o deixaram escapar de suas mãos, ou sequer tiverem a oportunidade de tê-lo algum dia.

A escola é unicamente o espaço onde o tesouro está preservado. Os muros da escola nos alertam sobre ele e tão grandes são, pois quanto maiores são suas armaduras, mais conseguiremos proteger o precioso tesouro dos grandes interessados da escola, presenteando-o somente a quem interessa, isto é, ao sujeito, à criança, ao aluno, ao público. Os muros determinam onde a sociedade - o mundo externo - precisa ser suspensa (colocada entre parênteses) para começar a revolução desse artifício imaginário. É então que inicia o trabalho do educador, que torna a escola uma experiência de tempo presente, tempo livre de ser aluno, de ser sujeito, de ser explorador, de ser Pequeno Príncipe.

Ao fazer essa suspensão da carga potencial do passado das crianças, de suas condições socioeconômicas, ou de um suposto destino traçado por essas condições, a escola cria tempo livre para todos, o que marca a igualdade como pressuposto primeiro da escolarização. Isso permite às novas gerações a chance de abrirem-se às inúmeras possibilidades de fazer mundo, o que configura a escola como puro centro na vida desses sujeitos, não meio e não fim (DOS ANJOS, 2017 p. 3).

Assim, o tesouro está “pronto” para ser entregue a quem é sujeito da escola, quem está posto a aprendê-lo, explorá-lo, viver a autêntica experiência da aprendizagem. Aprendizagem pela interação, considerando tempo, espaço e historicidade.

Mas afinal, quem é este sujeito da escola? O que este veste? O que este trás na mochila? O que este é? Quem é o aluno? Especialmente o aluno é ser humano. Ser humano é ter capacidade de criar, inventar, descobrir e, sem dúvida, trazer consigo potencialidades gigantes de construir um mundo comum onde “somos todos uns-com-os-outros”, como poeticamente pinta minha querida professora Maria Regina Johann. Animar este mundo comum, onde todos juntos somos capazes “de”, torna possível um arranjo de sociedade mais consciente e tolerante, alunos implicados, ativos na construção imaginária e real do mundo em que vivemos e queremos viver. Alunos são vidas, são sentimentos, tropeços, (in) certezas, tentativas e, a escola se coloca à disposição de oferecer a experiência dessa aventura humana que é ser humano.

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17 Humanos que se implicam com uma educação poética, a transformação, e, que dedicam o seu tempo e espaço para revolucionar este mundo imaginário, produzir conhecimento nesse tempo-espaço igualitário.

Essa ideia de escola que temos hoje, e que defendemos por ser um espaço democrático, de igualdade e justiça, não é uma invenção moderna. Ela nasce há muito tempo atrás e precisou de muito dialogo qualificado com cada nova geração, uma conversa verdadeira e cúmplice entre o passado e o presente, para que ela se mantivesse viva, ainda que, - apesar de correr riscos -, como uma prática comum até hoje.

A escola é uma invenção política, um artifício inventado pela humanidade. E, justamente por isso, em razão de vivermos em um mundo criado, construído, inventado pelos humanos, e constantemente renovado pelas novas gerações - assim como pelos ideais políticos, econômicos e sociais que marcam cada tempo e espaço no mundo, construindo uma nova narrativa simbólica que é carregada de memórias e experiências da vida humana -, é que se faz necessário, a cada vez e sempre, investigar, compreender, problematizar e, com isso, possivelmente, renovar os espaços de formação que são característicos da nossa sociedade, compreendendo que não há lugar mais característico e formador para a cidadania e a civilização do que a escola, um lugar que ensina e que educa para ler e experienciar a nossa relação com o outro no mundo.

A história diz respeito a todas as pessoas. É nela que está quem somos e, por isso, faço questão de fazer esse caminho por ela, esse passear, para ganhar o tempo como presente, e ser capaz de construir um futuro qualificado e responsável para quem chegar nele.

Quando conhecemos a nossa história podemos redescobri-la com a certeza de que ainda estamos vivos nela, vivendo e reinventando-a em todos os momentos e circunstâncias. A história não morre. Ela está em constante movimento e transformação. As pessoas a movimentam e a transformam a cada tempo e espaço, com a curiosidade apurada, as investigações, os aprendizados de um passado que nos traz força. Eu não tenho dúvidas de que contar o mundo às novas gerações é um ato digno de revolução e de amor.

E é por essa anterioridade pedagógica, pela dialética (esse caminho entre as ideias) que entendo ser possível compreender o espaço escolar, fazendo essa ponte com o passado - que me parece ser muito mais atual do que o presente, quando penso a escola e a sua institucionalização por essência -. É caminhando entre as histórias e produções humanas que a defesa de uma escola para todos, de tempo livre, se fortalece em nossas mãos.

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A minha defesa da escola é a ideia radical de que a escola proporcione tempo livre. Tempo livre que é disputado pela tecnologia, pelas redes sociais, pela economia, pela igreja, pela política, pelo sistema. Dar tempo livre à escola

Transforma o conhecimento e as habilidades em bens comuns, e, portanto, tem o potencial de dar a todos, independentemente de antecedentes, talento natural ou aptidão, o tempo e o espaço para sair de seu ambiente conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015. p. 6).

Os livros da escola me possibilitaram desconfiar daqueles que não só denunciam a escola, como se especializam na distorção dos discursos, na manipulação da palavra, e na ofuscação da verdade sobre a escola. Explico, didaticamente, que a escola serve para salvar da ignorância, educar para a consciência, permitindo a liberdade. Isso me faz duvidar das coisas fora de lugar. Suspeitar das denúncias postuladas à escola me parece ser uma dessas coisas.

Seguindo a canção, trarei no próximo capítulo o testemunho de uma educação transformadora que tornou o mundo uma questão pública, de responsabilidade de todos. A escola criando interesse e disposição das novas gerações para conhecer a herança do mundo e o tecer do novo. Amor ao ensino e aos jovens.

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19 2 EDUCAR COMO DISPOSIÇÃO DE CONTAR O MUNDO ÀS NOVAS GERAÇÕES

Também é preciso andar por esses caminhos, os caminhos da história, tortuosos e entrecruzados, mas que todos levam a Roma como levam a qualquer lugar. (Mario Osorio Marques)

Mario Osorio Marques já nos disse: Manhã bem cedo. Outro dia. Hora de partir. Não há caminhos. Precisamos abri-los. Nossas picadas a facão nos levaram longe. Mas por elas é preciso começar (1997, p. 33).

É preciso começar. Se coçar, duvidar, criar. Nossas suspeitas, mesmo que nos levem por caminhos incertos, nos possibilitarão chegar ao desconhecido, a uma jangada que é capaz de atravessar ventos e tempestades, mares e terras, que serão frutos de segredos, ou de certezas, que nos levam a acreditar que vale a pena lutar para descobrir o mundo em que vivemos, por que nele há águas profundas que nos contam histórias, nos revelam memórias, sentimentos e caminhos, muitos caminhos, que nos fazem perceber que, navegar é preciso e sempre será.

E é com este ar de aventureira, de quem quer mergulhar no mar humano, que desenrolo este pensar e reflexão sobre um legado que vale a pena ser ensinado às novas gerações. Faço assim, entre muitos voos da imaginação (pois em um lugar de mim, conserva uma criança capaz de navegar e se encantar pelo navio, que carrega em si, artes e truques, histórias e memórias, legado e paixão), um ensaio de educação que nos permite navegar, aprender a nadar e atravessar o rio.

Para começar essa aventura, convido você a buscar junto comigo um começo de resgate histórico. Trago para esta reflexão um possível começo...

Em 2012 eu vivi uma experiência extraordinária na escola. Absolutamente necessária e tão significativa que ressoou dentro de mim e que se acende até hoje quando volto as minhas origens que me constituíram aluna e professora. Eu era estudante do segundo ano do ensino médio de uma escola do interior de uma cidade pacata e tranquila, que beirava dez mil habitantes. Privilegiada, tive condições e oportunidade de estudar em uma escola que se comprometia com a prática pedagógica, com a docência e a formação crítica e a consciência dos seus alunos. Este meu regate histórico se passou dentro desse cenário de escola, uma escola

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humana capaz de compreender o seu tempo e comprometida com as novas gerações e as preocupações do mundo comum.

Em uma aula de Português a minha professora, que carinhosamente vou chamá-la de professora Elaine, convocou os seus alunos para a responsabilidade de apreender o mundo e nos presenteando-nos com um legado que marcou a minha educação e a minha vida e, sem dúvida, marcou a educação e a vida de outros alunos que estiveram ali na sua aula naquele dia, e em todos os outros.

Professora Elaine, sempre muita extrovertida, era uma professora “atrás do seu tempo”, por que ela carregava consigo o passado da história, um museu ambulante. Ela tinha um cabelo bem bagunçado e não se importava de usá-lo assim. Sempre vestia roupas que pareciam ser todas as aulas as mesmas. Era de práxis a sua calça jeans rasgada e sua camiseta preta dos Rolling Stones. Era, sem dúvida, a aula mais esperada da semana por mim.

Foi em uma de suas aulas que a professora Elaine nos trouxe, naquela tarde ensolarada, um tempo para a reflexão, para o pensamento crítico, para a memória e a história. Ela trazia junto consigo uma música xerocada no verso de um rascunho, e um rádio velho debaixo do braço que mal dava para escutar o que saia de dentro dele.

Professora Elaine sempre chegava às suas aulas com uma postura de historiadora. Ela parecia uma capitã saída dos filmes históricos que nos enche de vontade de ler e explorar o que está atuado dentro de suas capas. A gente sempre sabia que coisas bonitas sairiam dela nas suas aulas, mas nem sempre eram bonitas as coisas. Às vezes ficávamos reflexivos por dias porque professora Elaine sabia, como ninguém, nos provocar para refletir o mundo em que vivíamos, nos conduzindo a conhecê-lo e a reinventá-lo sempre.

É impossível esquecer aquele seu olhar apurado quando chegou à sala de aula naquele dia, como quem quer nos entregar um grande tesouro, perturbava um silêncio estarrecedor quando entrava lentamente porta à dentro, deixando a turma estagnada, à espera do que estaria por vir, e, ora bolas, já sabíamos que naquela tarde, a aula seria extraordinária e o tesouro grandioso. Professora Elaine entra entusiasmada na sala de aula e diz, como uma boa líder capitã: “Hoje vamos aprender o mundo senhores e senhoras!”. Silêncio total. Lembro-me de escutar do fundo da sala uma colega que, pelo impulso do espanto, retrucou à professora fazendo da sua afirmação a sua pergunta: “vamos aprender o mundo professora?”

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21 Ora, esperávamos mais uma de suas estripulias, de seus exageros verdadeiros quando nos ensinava sobre os problemas do nosso tempo (a fome, a violência, a guerra), mas ninguém esperava aprender o mundo naquela tarde, além do que estávamos todos amarrotados, encadernados, bem sentados para aprender os pronomes, os verbos, as regras quase impossíveis de serem decoradas, mas que nos esforçávamos para isso, já que as semanas seguintes eram marcadas pelas provas finais do ano letivo, e queríamos estar bem preparados para enfrentar os monstros que viriam plastificados como provas dos vestibulares num sábado de manhã. Ficaram todos perplexos com tamanha ousadia da professora, que naquela tarde não foi para a escola ensinar sobre gramática, mas ensinar o mundo a todos nós, como, na verdade, sempre tentou fazê-lo e fazia.

A cada palavra cantada que saia de um pequeno rádio trazido por ela, era um atravessar pelo meu corpo, pelas minhas ideias, pelos meus passos, que me fizeram navegar pelo rio da vida, por uma continuidade infinita de mergulhos e novas possibilidades de picadas de facão.

A música de Geraldo Vandré de 1968, “Para não dizer que não falei das flores”3, que diz assim (parte dela),

[...]

Nas escolas, nas ruas Campos, construções Somos todos soldados Armados ou não

Caminhando e cantando E seguindo a canção Somos todos iguais Braços dados ou não Os amores na mente As flores no chão A certeza na frente A história na mão Caminhando e cantando 3https://www.letras.mus.br/geraldo-vandre/46168/.

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E seguindo a canção Aprendendo e ensinando Uma nova lição.

[...]

Me concebia como um ser livre, pensante e crítico. Essa busca constante e necessária da professora Elaine em tornar o espaço da escola um lugar de diálogo entre o mundo passado e o mundo presente, nos contando historinhas sobre essa condição de mundo, seu contexto, tornando-a verdadeira e próxima da nossa realidade, fez com a escola se tornasse um tempo livre para aprender, não só a historicidade, mas a cidadania, a civilização e, sobretudo, a nossa relação com o mundo e nosso lugar nele.

Ficamos infinitas aulas refletindo sobre a canção e eu diria que até hoje estou. Qual era a canção? Quem eram as flores? Quem tem a história na mão? Somos todos iguais ou não? As flores venceram os canhões? E as armas nas mãos? Perguntas como essas se tornavam infinitas, e o prazer de explorar a nossa história para encontrar hipóteses e possíveis respostas razoáveis nos permitiam o exercício do filosofar, buscando um saber mais profundo a cada provocação. Tempo livre para estudar e praticar a reflexão sobre o mundo.

Professora Elaine era professora de Português, mas nos ensinou história nas suas aulas, nos contou o mundo. Professora Elaine era fantástica! Ela me fascinava! Como quem escrevia a história com a gente, e a gente escrevendo a história apreendia a escrever, fazia dessa prática uma linda forma de nos educar com responsabilidade e amor. Não abria mão do exercício da reflexão, da disciplina, do quadro, do giz e do seu compromisso institucional com a escola. “Em transmitindo o legado histórico e cultural às novas gerações, a pedagogia prepara para a política, para a inserção no debate acerca dos destinos da sociedade” (BOUFLEUER, 2005, p. 150).

Assim, era nas suas aulas de Português que eu podia “esquecer” o que se passava fora da escola e só viver a sala de aula, a sua aula, ser aluna e ter tempo de ser sujeito à aprendizagem, ter tempo livre para pensar e praticar o estudo. Eu não via o tempo passar, nem o sinal tocar. Cada segundo, dos quarenta e cinco minutos, era possível de navegar em algo novo, ela sabia como ninguém proporcionar isso para a gente. Com certeza, a maioria de seus alunos agradece imensamente pelo seu compromisso com a nossa educação e por nos dar tempo livre para aprender a historicidade, a filosofia, a política, a arte e a liberdade de sermos capazes “de”.

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23 Resgatar a memória, as lembranças de um passado que tem história, muitas histórias, torna possível outras novas formas de construção simbólica de mundos que são constantemente inventados pela gente.

Professora Elaine assumiu o compromisso que toda educação precisaria assumir, penso. Legou o passado pela incansável busca de encontrar respostas para uma suposta ordem do mundo, de sociedade, de grupos, de experiências humanas. A educação escolar é agente dessa tarefa. Da arte de agir sobre nós e nos deixar decidir as nossas picadas a facão.

O legado da Professora Elaine, sem dúvida, me tornou pensante, crítica e consciente. Dar tempo livre para pensar a história, nas memórias, criar, inventar, levantar hipóteses, explorar, porventura, foi o tesouro preservado pela escola, que como um ato revolucionário de amor, por mim e pelo mundo, proporcionou a justiça, a igualdade e um espaço para experimentar a democracia, pois nas suas aulas, nas aulas de professora Elaine, todos éramos iguais: quem é da roça, quem é da cidade, quem é índio, quem é branco, todos aprendemos e experienciamos a construção do conhecimento e a tomada de consciência para viver em um mundo comum e decidir sobre ele.

Em resumo, a educação é antes de tudo a transmissão de alguma coisa. E só transmitimos aquilo que consideramos digno de ser conservado (SAVATER 2000, p.174). É digno ser conservada a história. A história que nos ensina que alguns caminhos são sangrentos demais e que já não precisamos repeti-los como humanidade. Não precisamos repetir a censura, a violência, o preconceito, a intolerância e a dor, considerando que os aprendizados humanos são infinitos e seguidamente transformados, renovados, pois educamos para compreender uma demanda que corresponde a uma construção de sociedade. Porém, nesse processo de educação criamos uma insatisfação que nunca se conforma totalmente (SAVATER 2000, p. 175), e isso nos constitui livres para que haja outro futuro, outra canção, outro navegar.

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3 FAMÍLIA: PRIMEIRA SOCIALIZAÇÃO COMO UMA POLÍTICA EDUCATIVA

Por este esforço de compreender quem eu sou, experiencio aquilo que já sou.

É com esse toque de revolução, de memória histórica, e com o esforço de contar o mundo às novas gerações, que começo essa conversa sincera entre o passado e o futuro, para tecer a realidade de um possível presente, com responsabilidade e amor. Em 1968 o Brasil aprendia uma nova lição com Geraldo Vandré, e com milhares de flores que caminharam seguindo a canção, especialmente com o estudante Edson Luís de Lima Souto, assassinado por policiais militares na época, porque contestava não só a canção, mas as grandes plantações das flores que passavam fome no sertão. A juventude se organizava para a rebelião, e em resposta às armas na mão, o legado das flores era que venciam os canhões.

Foi em 1968 que também houveram reformas marcantes no campo da educação, sendo elas a reforma universitária e a abertura para o ensino superior privado no Brasil, quatro anos depois do golpe de 1964. Era evidente que a sociedade passaria por grandes situações de mudanças, e assim aconteceu. As escolas se tornavam vítimas dos sistemas estruturados nos moldes de empresas educacionais, voltadas exclusivamente para o lucro econômico e para o rápido atendimento às exigências do mercado educacional e do trabalho, como vimos no primeiro capítulo. A escola sempre se tornou e se torna, a cada nova invenção de sociedade, um interesse dos grandes poderes, ou de alguns grupos privilegiados de pessoas. A implantação dessa ordem para a educação privada impediu o crescimento, que já era pouco naquela época, do ensino público. E foi só em 2004, com a mudança de um governo autoritário e totalitário, para a conquista de um governo democrático, alçado a partir das lutas e reivindicações pelos direitos da cidadania e da liberdade, que houve uma nova orientação da política educacional para fortalecer o ensino público e torná-lo gratuito e para todos nas políticas educacionais do país.

Os meus pais chegaram ao mundo um ano depois de 1968, com a história na mão. Em 1969 minha mãe floresceu num interior muito distante da capital, no leito da simplicidade e de sua historicidade alemã. No mesmo ano, na casa de chão de terra batida, na beira de um rio, meu pai nascia na história, no balaio dos índios, que fazia jus a sua cor. De um lado, a felicidade

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25 e o amor pela chegada dos meus pais ao mundo, de outro uma antiga lição que feriu homens e mulheres, crianças e jovens e que fere até hoje a nossa memória e sociedade.

Mas é de olho no presente e no futuro próximo que podemos fazer uma das leituras mais ricas dessa mesa-redonda imaginária. Em quem sentido? Como advertência histórica e lição de política sem arrogância da receita ou da fórmula pronta. Trata-se de repensar o passado, no bojo de uma reflexão sobre o presente, e à luz dos recentes acontecimentos, para preparar e antecipar um futuro real e desejável (MORAES 2011, p. 372).

A partir desses anseios enraizados pela condição humana, e seu desenrolar pelas produções culturais, por essa voz ativa, conquistada pelos esforços das lutas sindicais, durantes décadas, e que só passa a ser garantida pelos estados republicanos e pela democracia, que, na vida adulta, os meus pais, uma mulher e um homem da classe trabalhadora, humildes e com pouca condição econômica, puderam me legar a escola. E sempre a fizeram presente na minha infância, juventude e na vida adulta.

Isso se deu, sem dúvida, por todos os esforços vividos e conquistados pelos meus pais. Forma, dias de muito trabalho, sol ardido, terra airada, esperança de um mundo melhor e muito amor. Suas mãos contam muitas histórias quando são tocadas e sentidas, (saudosos pais!), mas, sobretudo, pela condição das políticas públicas que garantiram o acesso e a minha permanência na escola. A menina do bairro, a filha da mãe e do pai trabalhador, agora pode frequentar e explorar o espaço do conhecimento que, meros tempos atrás não pertenciam ao povo brasileiro.

Em 1996, (ano em que eu nasci), depois de muita resistência e lutas de professores implicados nas causas democráticas e pela justiça social, que se regulamentou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96), a lei que garante o direito a todas as pessoas compartilharem desse espaço pedagógico e público, a escola. Na história do Brasil essa é a segunda vez que a educação do país conta com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação que, sobretudo, é estabelecida por um governo democrático que assumiu a responsabilidade de tornar a escola um espaço público e comum para todos. É a partir de 1996, depois de anos a escola carregando em sua mochila milhares de testemunhos de sinlenciamento e exclusão, que ela passa a garantir uma educação de qualidade a crianças e jovens, homens e mulheres da classe trabalhadora do Brasil. A educação para todos foi conquistada. Está na mesa posta a quem quiser.

E é assim, por este diálogo postulado de justiça e igualdade, que eu gostaria de começar a conversa deste capítulo ressaltando a importância do diálogo verdadeiro, cúmplice, que nos

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possibilita a liberdade do pensamento e a escolha dos nossos trajetos de vida, em qualquer construção de sociedade, mas, sobretudo, nas sociedades democráticas, as que nos legaram a liberdade de escolha e a escola pública.

Este é um convite às crianças, às mães, aos pais, à escola, à universidade, à sociedade, aos homens e às mulheres amadas deste mundo, que um dia foram crianças, e que hoje defendem incansavelmente a escola, porque acreditam nas suas potencialidades e no que é intrínseco a ela por si só. Acreditam na sua capacidade e potência de educar as novas gerações. Ser humano consiste na vocação de compartilhar com todos o que já sabemos, ensinando os recém-chegados ao grupo o que devem conhecer para se tornar socialmente válidos (SAVATER, 2000, p. 36).

É nessa perspectiva, de aprender com outros homens, que esta conversa faz um convite especial. Durante toda a minha caminhada acadêmica e pesquisas realizadas, a minha experiência foi crescente no movimento estudantil e nas escolas periféricas da região, o que contribuiu não só para minha constituição humana, como para o meu olhar consciente com o mundo em que vivo e construo. Foram experiências vivas e, por isso, é com todo o amor e compromisso social que esse desenrolar das palavras é essencialmente uma conversa entre a escola que se preocupa com o nosso tempo e a classe popular, constituída por aqueles que, pelas forças do poder - e pelos “esquecimentos” da história -, foram negligenciados do lugar da sabedoria, e que pela luta, resgate histórico, anterioridade e representatividade de um estado democrático, ocupam o seu lugar na escola, que é essencialmente um lugar de todos, um lugar democrático. E como eu não poderia deixar de lhes trazer as razões que me trouxeram até aqui, foram essas, experiências e memórias que fazem parte da minha vida que me constituíram e me constituem humana e cidadã.

Debruçarei, sobretudo, a minha reflexão por dois caminhos que influenciaram nessa minha formação. Sendo o primeiro caminho o da família, como socializadora primária, e o segundo o da escola (que deixarei para discorrer no próximo capítulo) como articuladora da experiência de tempo livre para a formação de homens livres, conscientes e críticos, para a vida em sociedade. Nessa análise, refletiremos as tarefas de cada um, e suas imprescindíveis ocupações em educar, seus princípios e relações com o sujeito. Qual o lugar da família, qual o lugar da escola, e suas reflexões em torno da educação.

Sempre fui uma grande apreciadora das histórias. Isso se deu muito pela minha história de vida. Sou de uma família simples da classe popular. Os meus passos até a escola dizem muito

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27 sobre as construções das memórias que minha mãe e meu pai (o sujeito que está do lado de fora da escola, também constitui a escola e isso me importa, porque se hoje lutamos e a defendemos é porque quem esteve fora dela também nos narrou a sua importância) me contavam suas experiências de vida e isso me constituía criança, na minha realidade de infância.

As histórias de vida dos meus pais andavam lado a lado. Eles me acompanhavam na hora de brincar, na hora de almoçar e, muitas vezes, dormiam comigo. Eu não conseguia compreender naquele tempo o que acontecera com eles na sua caminhada de escola e de vida. Eram inúmeras lembranças relatadas que vinham nos seus discursos carregados de injustiças, e muitas vezes de tristeza, com um sentimento de revolta. Mas eu podia saber, já com sete anos de idade, pelo tom de voz dos meus pais, pela postura séria quando se falava de educação em casa, pelo chamado da atenção: que a escola era lugar sério! E, se há de existir neste mundo a possibilidade de uma sociedade justa, este lugar é, sem dúvida, a escola. E mesmo com todas as suas cargas dramáticas de experiência nela, eles ainda assim apostaram a minha formação humana a ela.

Por essas narrativas, essa responsabilidade de me contar o mundo, seja o mundo pelas suas histórias de vida (o que estava ao alcance da sua realidade e que louvável que a fizeram!) e pelo valor de educar, que meus pais assumiram o seu papel de adultos e, sobretudo assumiram as suas responsabilidades sendo pais e por mim.

A minha infância foi muito diferente da infância dos meus pais, Era outro contexto de infância, era outro tempo. Eu podia ir ao parque, comprar cachorro-quente no vizinho da rua. Com sete anos eu ganhei uma bicicleta (no mesmo ano em que eu comecei a ir para escola). Eu podia brincar muito e tinha tempo “de sobra” para ser criança. Meus pais contam que, mesmo sem ir ao parque, sem comer cachorro-quente e sem ganhar a bicicleta aos sete anos, eles brincavam muito e tiveram uma infância feliz, sempre que podiam ser livres das responsabilidades de ser criança daquela época. Longe do trabalho eles achavam graça correr no campo, nadar no rio, pescar, brincar com as bonecas de sabugo e criar. Eu suspeito muito de que as crianças da geração atual também achariam graça nisso.

Mas a minha inquietude não vinha das memórias de uma infância em que se pode brincar muito fora da hora de trabalhar, - ou até mesmo, como quem tem muita ousadia, faziam do trabalho, o seu próprio desenrolar do brincar, porque brincadeira é coisa séria, é trabalho! -, mas, sim, das lembranças narradas de uma infância que não teve escola ou, melhor dizendo, a escola existia (como já vimos anteriormente, a escola sempre existiu firme e forte em qualquer

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construção de sociedade), o que não existia, melhor dizendo, o que não era política naquela época era o direito de todos experienciarem a escola, a escola pública.

O meu pai permaneceu na escola até a quinta série do ensino fundamental, como era chamada naquele tempo. Depois a escola o abandonou, pois não era nada fácil para um menino negro, de origem indígena, permanecer num espaço inteiramente dominado pelos brancos privilegiados da época (o colonialismo reinava!). A minha mãe permaneceu mais tempo na escola. Estudou até a oitava série, mas foi forçada a desistir dos estudos, pois ela representava uma ameaça para a sociedade. O poder da sabedoria estava nas mãos dos homens e isso era indiscutível naquele tempo. Lugar de mulher era em casa, cuidando das tarefas do lar e dos filhos.

Essas histórias, sem dúvida, dia a dia, me puxaram para a responsabilidade de suspeitar da sociedade. E tive que suspeitar da escola também (pois sabia, que nela estava a condição de mudança dessa sociedade que aceitava discriminar um grupo de pessoas, seja pela sua cor, condição social/econômica, gênero ou sexualidade). Interroguei a cultura, a política, o estado e, essencialmente, a voz pedagógica da escola, para além de pensá-la como um mecanismo de fabricação, excluindo quem está à margem da sociedade, reproduzindo o ciclo infinito da desigualdade social, a injustiça perante o povo, mas, sobretudo, compreendendo, apesar da minha dura (mas não menos amorosa) crítica a ela, que a escola não fracassou sozinha e não fracassa sozinha até hoje.

E de forma amorosa e responsável, como quem dizia “eu não pude estudar, mas eu não quero que o que aconteceu comigo aconteça com você”, os meus pais meu convocaram a descobrir a escola. Eu sabia que nela estaria um grande achado, não só para a minha condição humana, mas para a própria vida deles, que sempre se sentiram injustiçados por não terem nem sequer uma pequena participação nela.

Tornei-me uma investigadora da escola. Houve um esforço para vê-la além do que ela parecia ser pintada e vendida como uma vilã coadjuvante - que embora não tenha tanta responsabilidade pela difícil e excluída vida que os meus pais tiveram -, foi responsável por outros testemunhos de exclusão, deixando-os às margens da sociedade, sem alfabetizá-los, colocando-os às ruas, sozinhos, para aprender a ler e a escrever, para assim conseguir sobreviver em um mundo que exige minimamente entendê-lo. A escola se torna um espaço onde todos que não estavam nela, deixavam-na com um legado, colocando os seus filhos, quando podiam, para

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29 serem educados por ela, porque sabiam da sua importância, pela experiência de não a ter vivido e de viver em um mundo sem ter passado pela escola.

Ora, se tão mazelada a escola se torna, negando à minha mãe, ao meu pai e a milhões de brasileiros sua condição educativa, por que a defendo tanto? Por que luto incansavelmente para que ela seja de todos, se ela não é justa? Se ela reproduz uma ordem de um sistema que machuca, que fere o tempo do sujeito, o seu espaço, a sua aprendizagem? Se ela é forjada, regulada, governada? Um espaço democraticamente contraditório? Justamente, porque a escola se torna.

Assim como herdamos a democracia dos gregos, durante a nossa historicidade, visto no primeiro capítulo, a perdemos também, deixamo-la escapar durante as gerações, desaparecemos com ela (por que a democracia, assim como tudo que existe, é inventada, e fácil de ser esquecida, é só mudarmos as narrativas, que deixaremos de lembrá-la com amor). Isso acontece com a escola também. A skholé, como tempo livre para apreender a igualdade, a liberdade, e a democracia, foi esquecida durante os tempos e pelas sociedades ditatoriais (que nem sequer a deixaram nascer, a silenciaram, a mascararam). Sociedades não democráticas não simpatizam com a ideia de uma escola de tempo livre para estudar e praticar um mundo comum, de igual para igual, público.

Houve o tempo, nas sociedades autoritárias, (não democráticas), comandadas pelo conservadorismo e a intolerância social, em que as classes trabalhadoras (pessoas como minha mãe e meu pai) estavam sendo ilegítimos no próprio tempo e espaço que eles mesmos, com muitos esforços, construíam. E a escola se torna cúmplice dessa injustiça social, mas não pela sua própria característica de escola, mas pela incapacidade das autoridades educacionais de lidarem com ela. A tomada de consciência é negada à população por uma ordem de progresso. Não havia professoras que contassem as histórias do mundo para aprender a história, a filosofia, a teoria social. Não havia músicas na escola que fizessem questionar, tampouco o compromisso e o amor responsável por aqueles que estiveram ali com tempo de ser aluno. É isso que deixa a escola aquém do seu compromisso institucional, mas não a tira dele, porque a escola existe. O que não existia eram políticas públicas e professores para assumirem o compromisso de educar para a democracia, para o ócio, para a polis, para o tempo livre de se constituir sujeito consciente. Não haviam professoras Elaine (s) como capitãs para ensinar a olhar e ler o mundo comum.

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Se há uma instalação na sociedade de um discurso em que a escola é vista como um lugar nefasto, autoritário e que combina com a obediência, é porque tornaram a escola este lugar. A política, o estado, a sociedade, a família a tornaram assim. A experiência de vida de quem esteve nela não nos deixa esquecê-la, assim como a sua memória histórica. E mesmo com todos os esforços era difícil de elogiar a escola, mas sempre possível de fazê-la ser.

Como tudo construímos na sociedade, tudo transformamos. A escola também se torna parte desse processo de mudança, de modificação. Ela se tornou por muitos anos a instituição mais retalhada pelas guerras sociais e hoje se torna um arranjo possível de organização e institucionalidade que visam os processos de aprendizagem, liberdade e amor, sempre com um olhar para a igualdade. A escola é um lugar muito mais complexo do que possamos imaginar e pensar, pois ela se dedica a formar. E eu tenho as minhas suspeitas do porquê não podemos deixá-la escapar, ser esquecida pelas nossas mãos.

E foi por essas conversas verdadeiras, pelo diálogo qualificado com os meus pais, ouvindo a experiência de vida deles e de muitas pessoas que estão fora da escola, que hoje lutam incansavelmente para que seus filhos entrem nela (por que entendem que a escola é importante e que só ela que é capaz de ser transformadora), que me dedico a estudar, pesquisar e defender a escola pelos princípios democráticos e igualitários, com a esperança de renovar esse mundo, para a liberdade, justiça e cada vez mais amor perante o povo.

Meus pais não me deixam esquecer a escola. Não me deixaram esquecê-la quando criança. E até hoje, quando volto para casa, fazem questão de me lembrar a importância da escola e do estudo: “Eu sempre quis estudar, mas eu não pude, e hoje a educação é o meu maior presente para você! ”. A educação foi uma marca profunda, para o bem ou para o mal, que meus pais deixam de legado para mim. Se em suas narrativas relatassem uma escola fracassada, sem importância nenhuma para a minha vida e a vida do outro, ela certamente poderia ser esquecida por mim, e eu pouco me importaria com a ela, no entanto, muito me lembro, muito a torno presente.

Foram eles, os grandes contadores de histórias! Mas todas as suas histórias não partiam somente da vontade de carinhosamente, me educar para a sociedade pelo mundo das fantasias e imaginação. Pelo contrário, muitas de suas histórias eram sérias demais e convocavam para a atenção e cuidado com o mundo, me pedindo responsabilidade, compromisso e esforço educacional.

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31 Certamente foi pelas suas narrativas que, além de me legarem a escola, me legaram o princípio da liberdade, e, com isso, tiveram que me ensinar, com muito cansaço, que o temido medo, a obediência, o respeito pelos mais velhos, a sua autoridade, a disciplina, as regras, faziam parte do processo de educar com amor. Claro que, como toda boa criança e jovem, eu não achava graça nisso. A sua rigidez, especialmente a rigidez do meu pai, me fazia temê-lo. Mal sabia eu quando criança que o medo, apesar de minha repulsa a ele, foi uma prova de amor responsável que estava sendo construída e deixada pelos meus pais, pela capacidade de me educar, de me “poupar” de um pânico muito mais destrutivo. Eu aprendi o respeito pelo outro e por mim pela sua educação. Para Savater “o objetivo da educação é aprender a respeitar por alegre interesse vital o que começamos respeitando por uma ou outra forma de temer”. E complementa dizendo:

Mas não podemos abolir o medo do começo do aprendizado, e é esse medo primeiro, controlado pela autoridade paterna, que nos vacinará para que mais tarde não tenhamos de nos arrebentar contra terrores para os quais não estejamos preparados. Ou partimos de um medo infantil que nos ajude a ir amadurecendo, ou desembocaremos puerilizados num pânico muito mais destrutivo, contra o qual talvez exijamos a proteção de algum superpai tirânico no cume da sociedade: nunca aprenderemos a nos livrar do medo se nunca tivermos temido e, depois, aprendido a raciocinar a partir desse temor (SAVATER, 2000, p. 80-81).

Enfim, tive um pai que não renunciou ser pai. Uma mãe que não renunciou ser mãe. Trago esses relatos e memórias da minha infância porque entendo que a primeira educação, a qual Fernando Savater chama de “socialização primária”, é indispensável para fazer com que as crianças criem um interesse pela escola e uma responsabilidade pelo mundo. Ou seja, essa ideia de condução, de contar o mundo às novas gerações, e como contar, é imprescindível para darmos significado ao mundo, assumirmos um compromisso pela escola, para que, assim, ela possa de fato se preocupar em ensinar a praticar e estudar, trazer à vida.

Quando a família socializava, a escola podia ocupar-se de ensinar. Agora que a família não desempenha plenamente seu papel socializador, a escola, além de não poder realizar sua tarefa específica como no passado, também começa a ser objeto de novas demandas, para as quais não está preparada (SAVATER 2000, p. 73).

Há uma resistência em assumir essa condição. Os pais dificultam a função educativa da família. Savater diz que “para que uma família funcione educacionalmente é imprescindível que alguém nela se resigne ser adulto” (SAVATER 2000, p. 77). Ser adulto, sendo adulto, tendo

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responsabilidade, disciplina de assumir esse compromisso que exige, que nos cobra tempo de “ajudar a crescer”. Tempo de ser adulto que é disputado pelo sistema econômico, pela correria do dia-a-dia, pelo esvaziamento emocional e físico de ser adulto. Sobretudo, é preciso, mesmo que com tantos problemas atuais, tanta exaustão, que alguém assuma este lugar, que alguém seja pai e mãe.

Temo que esse papel não possa ser decidido por sorteio nem por votação em assembleia. O pai que só quer figurar como “o melhor amigo de seus filhos”, algo parecido com um enrugado companheiro de brincadeiras, tem pouca serventia; e a mãe cuja única vaidade profissional é que a tomem por uma irmã um pouco mais velha da filha também não serve para muito mais (SAVATER, 2000, p. 77).

Por muitas vezes eu contestei os meus pais por eles assumirem este lugar. No recreio da escola sempre ouvia outras crianças e jovens contar ao grupo o quão divertido seus pais eram com elas, o quanto eles eram legais, grandes amigos, que não cobravam responsabilidades dolorosas. Com 12 anos eu também queria ter pais assim.

Queremos companheiros, cúmplices, melhores amigos. Certamente, meus pais teriam falhado na minha educação se assumissem esse papel. Os pais dessas crianças, sem dúvida, falharam com a deles. Não se pode cobrar dos pais a tarefa simples de serem bons amigos quando, na verdade, crianças e jovens precisam de um pai e de uma mãe que se resignem serem pai e mãe, que cumpram a sua tarefa de adulto, de cuidar e educar, com responsabilidade e compromisso, com regras e disciplinas, com esforço e desgaste, com temor e amor. Do contrário, cresceremos como eternos adolescentes frustrados, com inúmeros problemas para serem resolvidos durante toda a nossa eterna condição humana. Idiotas sabidos que não são capazes de lidar com nenhuma suposta ordem de seu próprio mundo e significá-lo.

Criar homens livres, educar para a liberdade, também é uma responsabilidade pedagógica dos pais. O papel desempenhado pelos pais exige um compromisso dos adultos em exigir a disciplina, pois disciplina é liberdade. É preciso um empenho de trabalho disciplinado. Segundo François de Closets, em Le bonheur d’ apprendre (A felicidade de aprender), citado por Fernando Savater:

Vocês desejam descobrir o mundo? A indústria do turismo se encarrega disso e lhes permite verificar que ele se parece com as fotografias dos folhetos publicitários. Porventura, é a beleza que os tenta? Utilizem cremes e pílulas, recorram a massagens, à cirurgia estética, busquem um tratamento de talassoterapia, envolvam tudo numa indumentária atraente, esse é o preço da beleza. Elevado, nem é preciso dizer. Se vocês gostam das belas histórias, nem

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