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Em janeiro de 192323 realizou-se na Rússia o I Congresso de Psiconeurologia, reunindo pesquisadores de todo o país. Conforme Luria (2001), tratava-se do mais importante fórum de debates para os cientistas que trabalhavam na área geral da psicologia – sob a denominação de psiconeurologia. Segundo Shuare (1990), reuniam-se diversas ciências como a psicologia geral, a psicologia fisiológica, a psicologia infantil e pedagógica, a fisiologia da atividade nervosa superior, a neurologia e a psiquiatria. Nesse congresso, de acordo com a autora, se formulou pela primeira vez a necessidade de se fundamentar a ciência psicológica nos postulados do materialismo dialético, proposto por Marx e Engels.

No II Congresso de Psiconeurologia, em Leningrado, no ano de 1924, “(...) Vigotski fez sua primeira aparição pública no cenário da grande ciência psicológica” (SHUARE, 1990, p.54), despertando grande admiração entre os ouvintes – o que resultou em um convite para trabalhar no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou. Foi nesse ano que Vigotski, Luria e Leontiev se encontraram e iniciaram um trabalho conjunto:

Ficou decidido que Vigotski deveria ser convidado para se juntar ao jovem corpo de assistentes do novo e reorganizado Instituto de Psicologia de Moscou. No outono daquele ano, Vigotski chegou ao Instituto, e nós iniciamos uma colaboração que continuou até sua morte, uma década mais tarde. (...) Reconhecendo as habilidades pouco comuns de Vigotski, Leontiev e eu ficamos encantados quando se tornou possível incluí-lo em nosso grupo de trabalho, que chamávamos de ‘troika’. (LURIA, 2001, p.22)

Vigotski é reconhecido como o grande fundador da teoria histórico-cultural e coordenador do grupo de pesquisadores que se dedicaria a desenvolver essa corrente da psicologia: “não resta dúvida alguma de que a condução teórica do grupo era, nessa época, de Vigotski (...)” (GOLDER, 2004, p.22). Luria e Leontiev “(...) foram os primeiros discípulos

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A data de 10 a 15 de janeiro 1923 é indicada por Shuare (1990); Golder (2004), no entanto, afirma que o I Congresso de Psiconeurologia teria acontecido em 1922.

de Vigotski” (MOROZOVA, 2004, p.91) e compuseram a primeira formação desse grupo, ao qual posteriormente vincularam-se outros cinco autores: Zaporojets, Morozova, Bojovich, Slavina e Levina. Mais tarde incorporaram-se ao grupo Elkonin e Galperin.

Na análise de Golder (2004), nos anos de 1928 e 1929 já se verifica a definitiva consolidação desse grupo, sendo que a primeira ampliação da “tróika”, somada à posterior incorporação de Galperin e Elkonin, constituiu “(...) o pilar da conformação, estruturação e projeção da teoria já traçada naquele qüinqüênio” (p.22, grifo nosso). Ainda segundo Golder (2004), é possível identificar a “especialidade” de cada um dos autores no grupo:

Leontiev (Psicologia geral, teoria da atividade, personalidade, sentido pessoal); Luria (Neuropsicologia, processos psicológicos superiores, cérebro e psiquismo); Galperin (Teoria da formação da atividade mental por etapas); Elkonin (Psicologia do jogo); Zaporojets (Periodização do psiquismo humano, psicologia evolutiva); Bojovich (Psicologia da personalidade, em especial do adolescente); Morozova (Metodologia e fundamentos da educação especial), etc. (p.22)

Por volta de 1930, de acordo com Shuare (1990), com a ascensão e consolidação do regime stalinista, desencadeou-se um processo de imposição ideológica e partidária no campo da cultura em geral e também no campo da ciência – para a autora, é possível se falar em uma “deformação da ciência nas mãos da ideologia” (p.86). A filosofia stalinista, que se tornara hegemônica, correspondia a uma interpretação mecanicista e vulgarizada do marxismo. Nesse contexto, a Escola de Vigotski será alvo de duras críticas, acusada de produzir uma teoria contrária aos princípios do marxismo. Segundo Shuare (1990), as críticas então dirigidas à teoria histórico-cultural eram inconsistentes e revelavam desconhecimento e graves distorções das teses dos autores.

Com o agravamento da situação política, Leontiev e parte do grupo tiveram de transferir-se à Academia de Psiconeurologia da Ucrânia, em Karkhov, em 1930 (GOLDER, 2004). Lá, o autor coordena um grupo do qual participavam Bojovich, Zaporojets, Galperin e Zinchenko, entre outros:

É dessa época, e se vincula a esse grupo de psicólogos, a investigação acerca dos elementos constitutivos da atividade objetal, sua estrutura sistêmica e a unidade

estrutural da atividade externa, prática e a interna, psíquica. (SHUARE, 1990, p.119).

Com a transferência de parte do grupo para Karkhov, Vigotski passou a se dedicar a atividades em Leningrado, onde aprofundou seu vínculo com Elkonin, que era oriundo dessa cidade (GOLDER, 2004, p.23). As críticas e retaliações sofridas por Vigotski culminaram com a proibição de suas obras a partir de 1936, dois anos após sua morte 1934.

Naquela situação de dirigismo, Vygotski não era um homem cômodo. Era um marxista convencido e profundo, mas esse podia ser, de certo ponto de vista, um de seus aspectos mais ‘perigosos’. A recusa sempre do ‘método das citações’, com o qual muitos psicólogos soviéticos começavam justificando sua ortodoxia: depois de duas ou três citações de Marx, Engels Lênin ou Stálin, passavam a desenvolver seu tema, que geralmente não tinha nada a ver com as próprias citações. Na realidade, essa era uma manifestação da incipiente tendência a converter a ciência em escolástica, o pensamento vivo em expressão temerosa e submetida, a dialética em estrutura petrificada. Em seus últimos anos (especialmente os dois anteriores a sua morte), a situação de Vygotski – e também a de outros psicólogos dialéticos – era delicada. (RIVIÈRE, apud TULESKI, 2002, p.15)

Algumas das obras de Vigotski só voltariam a ser publicadas na Rússia mais de vinte anos após sua proibição (SHUARE, 1990). Após prematura morte de Vigotski em 1934, Elkonin estabeleceu uma relação bastante próxima com Leontiev, como ele mesmo relata no pequeno artigo “Lembranças do amigo e companheiro” (ELKONIN, 2004).

Leontiev viria a falecer em 1979 e Elkonin em 1984. Ambos enfrentaram períodos difíceis do ponto de vista político-social na Rússia, tendo Elkonin participado no front da Segunda Guerra Mundial (ELKONIN, 2004) e Leontiev assumido tarefas de defesa da cidade e foi diretor de um hospital de retaguarda em Ashjabad durante a invasão nazista.

Os autores continuaram trabalhando e produzindo intensamente ao longo de toda a vida, tendo trabalhado juntos em diversas ocasiões. Elkonin dirigiu o laboratório de problemas psicológicos do ensino e da educação de crianças de seis anos na Universidade Estatal de Moscou e publicou mais de 100 trabalhos científicos, sendo que suas produções estavam intimamente ligadas aos problemas da educação e do ensino (SHUARE, 1990):

Partindo as idéias de Vigotski sobre o papel fundamental que o ensino desempenha no desenvolvimento, Elkonin viu na escola, na temática do ensino, na elaboração dos programas de estudo, o ‘laboratório natural’ onde pôde investigar o desenvolvimento psíquico infantil (...) (p.179)

Leontiev retornou a Moscou em 1943, como diretor do laboratório de psicologia infantil no Instituto de psicologia da Universidade, realizando “(...) importantes investigações referentes ao desenvolvimento psíquico e aos problemas do ensino e da educação infantil” (SHUARE, 1990, p.119). Conforme Shuare (1990), Leontiev

Não só investigou, de fato, todas as áreas da ciência psicológica, mas foi também o fundador de um enfoque específico – a teoria psicológica geral da atividade – capaz de ser o marco teórico geral para o estudo de todos os processos psíquicos em qualquer plano em que os investigue (do ponto de vista filogenético, ontogenético, etc). (p.121).

2.3. A Psicologia Histórico-Cultural: o método histórico-dialético e o estudo da psique