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marcadamente de outros sistemas científicos pela relação que estabelece com a filosofia. Trata-se de uma ciência que busca em uma concepção filosófica determinada – o materialismo histórico dialético – os marcos metodológicos no interior dos quais deve desenvolver a investigação científica.

Nesse sentido, Vigotski realizou a crítica não apenas da psicologia tradicional ou “velha psicologia”, mas também da psicologia marxista em constituição naquele período, a qual, em sua análise, conforme Tuleski (2002), não passava de “(...) uma colcha de retalhos de citações de Marx e Engels superpostas às análises de fenômenos psicológicos realizadas pela psicologia ocidental (...)” (p.76).

Em seu célebre texto “O significado histórico da crise da psicologia”, Vigotski afirma que não se trata de buscar nos ícones do marxismo a “solução” do problema da psique, mas sim o método para construir uma ciência que permita investigar o psiquismo humano: “(...) o que desejo é apreender na globalidade do método de Marx, como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique” (VYGOTSKI, 1991, p.391).

Para Vigotski (1995), toda proposição fundamentalmente nova dos problemas científicos conduz necessariamente à busca de novos métodos e técnicas de pesquisa. O autor

defende que o método e o objeto de investigação mantêm uma relação muito estreita, na medida em que o método deve ser adequado ao objeto que se estuda. Nesse sentido, o estudo dos processos psíquicos superiores especificamente humanos, que constituíam por excelência o objeto de estudo da psicologia na perspectiva vigotskiana, exigia a formulação de um método de investigação próprio. As bases desse método de investigação seriam buscadas nos princípios do método dialético.

As relações entre o método dialético em Marx e na produção vigotskiana são objeto de análise de Duarte (2000). O autor demonstra que, assim como Marx, Vigotski considerava que a apreensão da realidade pelo pensamento não se realiza de forma imediata, pelo contato direto com a aparência dos fenômenos, mas implica a mediação de abstrações teóricas: trata- se do princípio de apropriação do concreto pelo pensamento pela mediação do abstrato.

Nesse sentido, Vygotski (1995) opunha-se à análise fenomenológica ou descritiva em psicologia, considerando que esta “(...) toma o fenômeno tal como aparece externamente e supõe com toda a ingenuidade que o aspecto exterior ou a aparência do objeto coincide o nexo real, dinâmico-causal que constitui sua base”. (p.103). Apoiando-se na máxima de Marx24, o autor afirma que se as manifestações externas dos fenômenos realmente expressassem as verdadeiras relações entre as coisas, a simples observação e a experiência cotidiana substituiriam por completo a análise científica.

Para além de uma análise descritiva, portanto, Vygotski (1995) defende uma análise psicológica explicativa, que revele os nexos dinâmico-causais que determinam a origem e o desenvolvimento dos fenômenos:

(...) a verdadeira missão da análise em qualquer ciência é justamente a de revelar ou

por de manifesto as relações e os nexos dinâmico-causais que constituem a base de

todo fenômeno. Dessa forma, a análise se converte de fato na explicação científica do fenômeno que se estuda e não apenas em sua descrição do ponto de vista fenomênico (VYGOTSKI, 1995, p.101).

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“(...) toda ciência seria supérflua se a forma de aparecimento e a essência das coisas coincidissem imediatamente” (MARX, 1983, p.271).

A adoção deste pressuposto pelo autor pode ser constatada, por exemplo, em seus apontamentos acerca da periodização das idades no desenvolvimento infantil. Vygotski (1996) afirma que os fundamentos de tal periodização não devem ser buscados nos sintomas ou indícios externos, como em geral procedem os pesquisadores, mas nas mudanças internas do processo de desenvolvimento infantil. O autor buscava, nesse sentido, uma periodização baseada na essência do processo de desenvolvimento psicológico. A verdadeira tarefa da análise psicológica das etapas do desenvolvimento psíquico consiste, para ele, em “(...) em investigar o que se oculta por trás dos sintomas, aquilo que os condiciona, isto é, o próprio processo de desenvolvimento infantil com suas leis internas25” (VYGOTSKI, 1996, p.253).

Duarte (2000) demonstra ainda a adoção de outros dois princípios do método dialético de Marx. O primeiro deles é o princípio da análise da forma mais desenvolvida – consubstanciado na metáfora de Marx de que a anatomia do homem é a chave para a

anatomia do macaco: “o psicólogo soviético defende a utilização, pela pesquisa psicológica,

daquilo que ele chamava de ‘método inverso’, isto é, o estudo da essência de determinado fenômeno através da análise da forma mais desenvolvida alcançada por tal fenômeno” (DUARTE, 2000, p.84). Segundo Duarte (2000), Vigotski pressupunha que o estudo das formas mais desenvolvidas “(...) revelaria aspectos válidos também para formas menos desenvolvidas, sendo que o inverso não seria necessariamente verdadeiro” (p.85).

O segundo princípio é a perspectiva de que o conhecimento humano é um reflexo da realidade objetiva no pensamento. Afirma Vygotsky (1991):

Este novo enfoque nos mostra que a realidade determina nossa experiência; que a realidade determina o objeto da ciência e seu método e que é totalmente impossível estudar os conceitos de qualquer ciência prescindindo das realidades representadas por esses conceitos. F.Engels assinala repetidas vezes que para a lógica dialética a metodologia da ciência é o reflexo da metodologia da realidade (p.289).

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Cumpre ressaltar que o caráter interno desse processo não remete a um caráter biológico: “(...) o desenvolvimento interno se produz sempre como uma unidade de elementos pessoais e ambientais, ou seja, cada avanço no desenvolvimento está diretamente determinado pela etapa anterior, por tudo aquilo que surgiu e se formou na etapa anterior” (VYGOTSKI, 1996, p.385).

A teoria do reflexo, segundo Shuare (1990), é um dos postulados da filosofia materialista histórica dialética de importância crucial para a teoria histórico-cultural. Cumpre ressaltar que tal postulado não se refere a uma cópia passiva e idêntica da realidade na imagem psíquica dos indivíduos, mas considera que “(...) os resultados do conhecimento devem ser relativamente adequados ao objeto cuja existência independe do sujeito cognoscente, ou seja, deve refleti-lo de alguma maneira” (SHUARE, 1990, p.19).

Em nosso ponto de vista, um outro princípio do método dialético incorporado por Vigotski é a lei da transformação de quantidade em qualidade, já descrita por Hegel (NOVACK, 1993). Ao analisar a periodização dos estágios do desenvolvimento infantil, por exemplo, Vygotski (1996) defende que esse processo caracteriza-se pela alternância de períodos estáveis e críticos: nos períodos estáveis, o desenvolvimento se deve principalmente a mudanças “microscópicas” da personalidade da criança, que vão se acumulando até um certo limite e se manifestam mais tarde como uma repentina formação qualitativamente nova; nos períodos de crise, portanto, produzem-se mudanças e rupturas bruscas e fundamentais na personalidade da criança em um tempo relativamente curto. Para Arce (2004a), na teoria vigotskiana a passagem de um estágio a outro no desenvolvimento se realiza não por via evolutiva, mas revolucionária, implicando mudanças qualitativas na vida da criança. O acúmulo quantitativo de mudanças “microscópicas” culmina, portanto, em um salto qualitativo no desenvolvimento infantil.

Trata-se de uma perspectiva coerente com o método dialético, o qual, conforme Prado Jr. (1969), concebe o processo de desenvolvimento dos fenômenos

(...) como um desenvolvimento que passa de mudanças quantitativas insignificantes e latentes a mudanças aparentes e radicais, a mudanças qualitativas; onde as mudanças qualitativas não são graduais, mas rápidas e súbitas, e se operam por saltos, de um estado a outro; estas mudanças não são contingentes, mas necessárias; resultam da acumulação de mudanças quantitativas insensíveis e graduais (p.602)

Consideramos ainda que Vigotski incorpora do método dialético o princípio da

totalidade – ou da relação dialética entre a parte e o todo. Conforme Kosik (1976), para o

método dialético:

Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um

todo dialético – isto é, se não são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis,

de cuja reunião a realidade seja constituída – se são entendidos como partes estruturais do todo (p.36, grifos nossos).

Assim, Vygotski (1995) criticava a ‘velha psicologia’ por considerar os processos psíquicos superiores como soma ou cadeia de processos elementares e contrapunha-se à análise atomística que decompõe os processos psíquicos em elementos que são estudados isoladamente:

(...) funções psicológicas particulares foram objeto de análise isolada; o método de conhecimento psicológico foi elaborado e aperfeiçoado para o estudo desses processos isolados e particularizados; ao mesmo tempo, a relação interfuncional e sua organização numa estrutura integral da consciência permaneceu sempre fora do campo da atenção dos pesquisadores (VIGOTSKI, 2001, p.1)

Para o autor, a tarefa fundamental da análise em psicologia “(...) não é decompor o todo psicológico em partes ou fragmentos, mas destacar do conjunto psicológico integral determinados traços e momentos que conservam a primazia do todo” (VYGOTSKI 1996, p.99-100). Desse modo, a ‘nova psicologia’ deveria constituir-se como uma psicologia de processos íntegros, opondo-se deliberadamente à psicologia dos elementos.

Vygotski (1996) considerava que no processo de desenvolvimento psicológico não se verificam modificações em aspectos isolados da personalidade da criança, mas, ao contrário, modifica-se a estrutura interna da personalidade como um todo. Para ele, a multiplicidade de processos parciais que integram o processo de desenvolvimento infantil constitui um todo

único e possui uma determinada estrutura, que vai-se modificando em cada estágio desse

processo. Assim, os processos parciais não podem ser compreendidos em si, pois seu papel e peso específico são determinados pelo todo, pela estrutura psicológica que caracteriza cada momento do desenvolvimento infantil.

A superação da análise atomística em psicologia, para Vygotski (1995), implica a substituição da análise de objetos pela análise dos processos. A análise não deve enfocar as

partes que formam o objeto, mas os momentos fundamentais do processo. Os processos

psíquicos não devem ser compreendidos como formas estáveis e sólidas, isto é, como objetos – embora possam, à primeira vista, aparecer dessa forma. É o caso do que Vygotski (1995) denomina de condutas fossilizadas ou cristalizadas, as quais, por se repetirem inúmeras vezes, automatizam-se, ocultando todo o seu processo de desenvolvimento e o caráter processual de sua formação – tornando-se uma espécie de fóssil psicológico. Faz-se necessário converter o objeto em processo, reconstruindo geneticamente todos os momentos de seu desenvolvimento. Trata-se da introdução de uma perspectiva genética na psicologia, que remete a uma abordagem historicizadora dos processos psíquicos:

Estudar algo historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta é a exigência fundamental do método dialético. Quando em uma investigação se abarca o processo de desenvolvimento de algum fenômeno em todas as suas fases e transformações, desde seu surgimento até que desapareça, isso implica revelar sua natureza, conhecer sua essência (...) (VYGOTSKI, 1995, p.67).

Em Pensamento e Linguagem26, uma das últimas e talvez sua principal obra, Vigotski

(2001) denomina a análise atomística em psicologia de método de decomposição das

totalidades psicológicas complexas em elementos. A esse método, contrapõe o método de análise por unidades:

Procuramos substituir a análise que aplica o método da decomposição em elementos pela análise que desmembra a unidade complexa (...) em unidades várias, entendidas estas como produtos da análise que, à diferença dos elementos, (...) não perdem as propriedades inerentes à totalidade e são suscetíveis de explicação mas contêm, em sua forma primária e simples, aquelas propriedades do todo em função das quais se empreende a análise (VIGOTSKI, 2001, p.399).

Para o autor, portanto, a análise psicológica deve identificar aquelas unidades que contêm, em forma primária e simples, as propriedades inerentes à totalidade psicológica. Tal característica da unidade não está presente nos elementos, os quais, uma vez decompostos,

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A edição que apresenta a tradução do texto integral em russo para o português, publicada pela Editora Martins Fontes no ano de 2001, recebeu o controverso título de A construção do pensamento e da linguagem. Para Duarte (1996), a inserção do termo construção no título, além de não ajudar a esclarecer que se trata da edição integral da obra Pensamento e Linguagem (diferenciando-a da versão resumida publicada por esta editora), pode sugerir, de forma deliberada ou não, uma associação entre a teoria vigotskiana e o Construtivismo.

não conservam as propriedades do todo. Decompor o pensamento verbalizado em pensamento e linguagem é, para Vigotski (2001), um exemplo de decomposição da totalidade psicológica em seus elementos constituintes. Tomados isoladamente, pensamento e linguagem não contêm as propriedades do pensamento discursivo.

A partir de suas investigações acerca das relações entre o pensamento e a linguagem, Vigotski conclui que a unidade do pensamento verbalizado é o significado da palavra. O significado é, por sua natureza, ao mesmo tempo um fenômeno do campo da linguagem e do campo do pensamento, e constitui, para Vigotski (2001, p.407), uma unidade indecomponível – o “(...) elemento central e fundamental que faz da palavra palavra e sem o qual a palavra deixa de ser o que é (...)”.

Segundo Elkonin (1996), Vigotski poderia ser considerado um “metodólogo” da psicologia. Ele estabeleceu as bases para a construção de um novo sistema para a psicologia, fundamentado no materialismo histórico dialético: “L.S.Vygotski deu apenas os primeiros passos, os passos mais difíceis na nova orientação, deixando para os futuros investigadores uma série de hipóteses (...)” (ELKONIN, 1996, p.387). As investigações metodológicas e as investigações sobre o desenvolvimento da consciência e da personalidade formavam uma unidade na obra de Vigotski. Seu objetivo principal, na análise de Elkonin (1996), era compreender a história do surgimento, desenvolvimento e desintegração das formas superiores especificamente humanas da atividade da consciência, ou das funções da consciência.

2.4. Pressupostos teórico-filosóficos da Psicologia Histórico-Cultural: as categorias de