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O nascimento da Psicologia Histórico-Cultural remete ao contexto da Rússia pós- revolucionária. Tuleski (2002), em estudo dedicado ao pensamento de Vigotski, contrapõe-se ao tratamento abstrato que vem sendo dado à produção teórica desse autor no ocidente e afirma a necessidade de se compreender sua obra à luz da história, como produto das lutas travadas na União Soviética (URSS) desde a Revolução Russa até a década de 1930, ou seja, como um projeto coletivo pós-revolucionário.

No período pré-revolucionário, a Rússia era um país pobre e camponês, caracterizado por um lento e fraco desenvolvimento de suas forças produtivas. O proletariado industrial constituía uma “(...) minúscula minoria, mesmo que estrategicamente localizada” (TULESKI, 2002, p.47); o campesinato, liberto dos laços servis, vivia sob condições extremamente precárias, vítima da exploração dos latifundiários. Somava-se a esse quadro o descontentamento de toda a população em relação à Primeira Guerra Mundial e suas conseqüências devastadoras para o país. Assim, a Revolução de 1917 congregara interesses divergentes: “(...) o proletariado visando à socialização dos meios de produção e da propriedade privada; o campesinato expropriado visando à propriedade privada ou pequena propriedade” (p.48). Recorrendo a Hobsbawm, a autora afirma que a união entre campesinato e operariado ocorreu pela reivindicação comum que era o fim da guerra – “mas, sob esta reivindicação coletiva, o que buscavam os pobres da cidade era pão, os operários melhores salários e menos horas de trabalho e os camponeses, terra” (TULESKI, 2002, p.48).

A Revolução Russa, portanto, para Germer (s/d), não pode ser compreendida apenas a partir de uma contradição interna entre as forças produtivas (FP) e as relações de produção (RP) daquele país. Cientes do pequeno e lento desenvolvimento das forças produtivas na Rússia, a expectativa de Lênin e demais líderes da Revolução era que essa se expandisse a todos os países

da Europa: “(...) o governo bolchevique deveria ‘agüentar-se’, mantendo a produção e estimulando a revolução em outros países” (TULESKI, 2002, p.52). Afirma Germer (s/d) em relação à URSS:

Neste país as FP capitalistas e as correspondentes relações de produção encontravam- se debilmente desenvolvidas. Conseqüentemente, não podia haver uma contradição autóctone típica da transição do capitalismo ao socialismo, que requereria que as FP já estivessem ultrapassando os marcos das relações de produção capitalistas. Ou seja, a Revolução de 1917 não se explica com base nas contradições FP/RP internas da Rússia, mas como expressão contundente, na Rússia, das contradições do capitalismo como sistema mundial. O partido bolchevique, efetivamente, ao tomar o poder, não pensava estar protagonizando uma revolução socialista isolada, mas a concebia como parte de um movimento internacional e entendia estar participando do início de um processo que se tornaria imediatamente mundial. Como isto não se deu e a revolução não se estendeu ao centro mundial do capitalismo, a URSS permaneceu inicialmente isolada. (p.20-1)

Devido à especificidade do desenvolvimento capitalista ainda incipiente no país, a Revolução Russa acabou por combinar elementos de uma revolução burguesa com elementos da revolução proletária. As contradições advindas do entrelaçamento entre esses dois processos revolucionários e o isolamento a que foi condenada a URSS delineavam um contexto em que, conforme Tuleski (2002), a luta de classes não desaparecera com a abolição da propriedade privada dos meios de produção:

(...) a luta de classes permanecia porque a relação burguesa de produzir não fora inteiramente ‘abolida’. Em cada unidade de produção os produtores inseriam-se no mesmo tipo de divisão do trabalho, mantendo-se a separação entre trabalho intelectual e manual, entre tarefas diretivas e executivas. (...) Pode-se dizer que as relações capitalistas foram apenas parcialmente transformadas, uma vez que as formas sob as quais estas se manifestavam continuavam a reproduzir-se, como: a moeda, o preço, o salário, o lucro, etc. Tais formas não podiam ser abolidas por decreto (p.53-4).

De acordo com Germer (s/d), embora se tenha abolido a forma jurídica capitalista da propriedade (instituindo-se a forma jurídica da propriedade coletiva), a instituição imediata da forma coletiva da propriedade – relações de produção socialistas – mostrava-se inviável em função do baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas em especial na agricultura russa.

Uma crítica freqüente, dirigida a estas políticas da URSS, acusa a industrialização lá promovida de simplesmente copiar os padrões produtivos capitalistas, com o que introduziu todos os males causados aos trabalhadores pelo próprio capitalismo. Se esta crítica implica que as FP capitalistas não deveriam ter sido incorporadas, isto

não parece procedente, uma vez que não havia outras FP disponíveis, e forças produtivas socialistas não poderiam ser imediatamente construídas (...) (p.23)

Essa contradição entre a abolição jurídica da propriedade privada e a manutenção de relações burguesas de produção, para Tuleski (2002), está intrinsecamente ligada à luta de classes no interior da URSS e ao período de reconstrução da sociedade, que exigia industrialização intensa e abrangente; além disso, tal contradição imprimia ora características burguesas ora socialistas às relações de produção no país. Dessa forma, “a impossibilidade prática de se estabelecerem relações de produção inteiramente novas gerou a necessidade de conviver com relações de produção que desejavam ver destruídas” (TULESKI, 2002, p.130).

Em linhas gerais, constata-se que o nascimento da Psicologia Histórico-Cultural se dá em um contexto histórico-social bastante peculiar, no qual

a história colocava para a sociedade russa pós-revolucionária a necessidade de encontrar os meios para sobreviver sem apoio e auxílio e convivendo, ainda, com ameaças militares, políticas e econômicas do ocidente. Um país enorme em proporções geográficas, com grande atraso econômico e cultural, arrasado pela guerra civil e pela guerra imperialista, deveria transformar-se em um curto espaço de tempo em um país capaz de produzir o suficiente para garantir a sobrevivência e satisfação da população, sob pena de mergulhar na mais profunda barbárie (Tuleski, 2002, p.55)

Nesse contexto, o desenvolvimento da ciência passa a estar a serviço da solução dos problemas enfrentados no processo de construção da sociedade socialista. O processo revolucionário desencadeou um cenário de profunda agitação no plano da consciência social, ensejando movimentos transformadores na poesia, no teatro, cinema, pintura, etc, “que, se vinham se desenhando havia alguns anos, encontraram nesses momentos a atmosfera propícia para seu desenvolvimento” (SHUARE, 1990, p.24)22; esse mesmo processo se observou na ciência. Segundo Tuleski (2002), o período imediatamente posterior à Revolução caracterizou-se pela abertura de um amplo debate nas diversas ciências; na psicologia, conforme Golder (2004), a década de 1920 ficou conhecida como a “década de ouro”: um período de revolução científica na psicologia de base marxista.

Nos trabalhos de Vigotski, verifica-se que a vinculação da psicologia às necessidades sociais e a possibilidade de sua aplicação prática são preocupações que aparecem com grande força: “é nessa vinculação da psicologia com a prática humana que Vygotski encontra o significado da verdadeira ciência” (TULESKI, 2002, p.68). Segundo Shuare (1990):

A necessidade de resolver tarefas práticas na dimensão de toda uma sociedade tira a psicologia dor marcos acadêmicos tradicionais e esta deixa de ser uma ciência mais ou menos ‘neutra’ no sentido de suas investigações de laboratório e deve não apenas verificar seus esquemas explicativos em situações reais, mas dar respostas a problemas de significado vital para a sociedade (p.25).

Vigotski produziu seus trabalhos em uma época de profundas transformações sociais e culturais, mas também uma época de “(...) de extrema recessão, escassez de alimentos, choques entre grupos antagônicos e, sobretudo, de ameaça ao projeto coletivo, aos objetivos da própria Revolução e ao ideal da nova sociedade” (TULESKI, 2002, p.123). Por outro lado, nesse mesmo período a sociedade soviética alcançou grandes avanços no tocante à industrialização e à melhoria do nível cultural da população, embora tais avanços tenham sido obtidos a custas de sacrifícios e imposições.

Na análise de Tuleski (2002), a manutenção das relações de produção burguesas no interior da URSS foi uma das características fundamentais desse período. A partir de 1928, com a implantação dos planos qüinqüenais de Stálin,

a divisão do trabalho, ao invés de ser eliminada, acaba por consolidar-se no interior das unidades de produção, o que vai configurando uma espécie de ‘taylorismo socialista’. A ênfase na produtividade, o recurso ao salário por empreitada, aos estimulantes materiais e às diferenciações de salários contribuíam para reproduzir as divisões internas no interior das fábricas, consolidando o individualismo e a competição entre trabalhadores por melhores salários. (TULESKI, 2002, p.109)

Para a autora, essa contradição entre o projeto coletivo de construção de uma sociedade comunista e a manutenção de relações de produção burguesas no interior dessa sociedade se reflete na obra de Vigotski. Relações de produção burguesas continuariam a produzir subjetividades burguesas. Uma das expressões dessa contradição, para a autora, é a afirmação recorrente da necessidade de superação da “velha psicologia”:

Quando ele [Vigotski] se refere à ‘velha psicologia’ como psicologia burguesa, está referindo-se à psicologia que reflete e referenda as relações burguesas, isto é, que

explica o homem burguês, seus sentimentos, seu funcionamento mental e sua ação no mundo. Quando se coloca na luta com o objetivo de superar a psicologia burguesa, posiciona-se no sentido de mostrar a necessidade de superação das relações burguesas no interior da sociedade, as quais dão base material a esta psicologia. A construção da sociedade comunista e, conseqüentemente, do homem comunista, necessitaria de uma nova psicologia que fosse capaz de explicar o funcionamento mental deste novo homem. (p.78)

Em um texto de 1930, intitulado A transformação socialista do homem, Vigotski afirma, referindo-se ao processo de superação do sistema capitalista pela revolução socialista, que: “paralelamente a esse processo, uma mudança na personalidade humana e uma

alteração do próprio homem deve inevitavelmente acontecer” (VYGOTSKY, 2004, grifo no

original). Para o autor, essa transformação da personalidade do homem tem três raízes básicas: a primeira é a própria destruição das formas capitalistas de organização e produção da vida social, que permite a liberação do homem; a segunda é o enorme potencial positivo da indústria de grande escala que, liberta das ‘velhas correntes’, converte-se em poderosa força de promoção do desenvolvimento humano. Por fim:

(...) a terceira fonte que inicia a alteração de homem é mudança nas próprias relações sociais entre as pessoas. Se as relações entre pessoas sofrem uma mudança, então junto com elas as idéias, padrões de comportamento, exigências e gostos também mudarão. Como foi averiguado por pesquisa psicológica a personalidade humana é formada basicamente pela influência das relações sociais, i.e., o sistema do qual o indivíduo é apenas uma parte desde a infância mais tenra. ‘Minha relação para com meu ambiente’, diz Marx, ‘é minha consciência’. Uma mudança fundamental do sistema global destas relações, das quais o homem é uma parte, também conduzirá inevitavelmente a uma mudança de consciência, uma mudança completa no comportamento do homem (idem).

Nesse sentido, para o autor, a educação assumiria enorme importância nesse processo de formação do novo homem – o que permite compreender a forte aproximação entre a psicologia soviética e a educação:

A educação deve desempenhar o papel central na transformação do homem, nesta estrada de formação social consciente de gerações novas, a educação deve ser a base para alteração do tipo humano histórico. As novas gerações e suas novas formas de

educação representam a rota principal que a história seguirá para criar o novo tipo de homem. (VYGOTSKY, 2004, grifo no original)

Vigotski é considerado um autor cujas concepções revolucionaram a ciência psicológica. Para Shuare (1990), a criação revolucionária de Vigotski na psicologia coincidiu plenamente, por seu momento e por seu sentido, com o auge revolucionário em todas as

esferas da vida – as relações sociais, a economia, a política, a literatura, a poesia, o teatro e as ciências na URSS.