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A escolarização como um dos elementos da estrutura cultural ocidental na modernidade: raízes e trajetória

CAPÍTULO 1: A GÊNESE DAS ESCOLAS NORMAIS

1.1 A escolarização como um dos elementos da estrutura cultural ocidental na modernidade: raízes e trajetória

Em sintonia os historiadores da Escola dos Annales, afirmamos que o processo de escolarização pode ser tomando dentro de uma estrutura temporal ampla, podendo ser balizada no tempo da longuíssima duração. Nele retroagimos para além dos gregos e romanos da Antiguidade. Assumindo a ideia da longa duração, quanto podemos tomar um recorte menor, que pode ter seu início identificado no advento das primeiras universidades ou na fundação da Companhia de Jesus, por Inácio de Loyola e seus companheiros, em 15 de agosto de 1534, em Montmartre (Paris) e rumando para nossos dias. Nossa intenção, neste capítulo, não é tão ousada. Tomaremos como início basilar para analisar o movimento, o fim do período tradicionalmente denominado de Idade Moderna e a fase de aparecimento das primeiras Escolas Normais, ou seja, do final do século XVIII ao século XIX.

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A opção do recorte reside no fato de que foi nesse momento que o movimento das Escolas Normais, que se insere no processo de escolarização, teve início. Os séculos XVIII e XIX foram caracterizados pela convergência de dois movimentos iniciados anteriormente, o da laicização e o da escolarização. Em ambos os movimentos, o Estado Nacional foi o ponto principal dessa convergência. A formação do Estado Nação, a partir da Baixa Idade Média, representou a centralização do poder nas mãos do rei, a necessidade e o desenvolvimento de uma administração racional e eficiente. Ganharam força o governo, o Estado, as cidades, as universidades, as leis, os impérios, os exércitos, o letramento, entre outros. A burocracia estatal precisava de indivíduos letrados e fiéis ao Estado, não necessariamente padres, como na época do Império Carolíngio17, mas de leigos que tivessem uma formação capaz de dar eficiência à

engrenagem administrativa, além da necessária lealdade ao Estado e ao governo. Logo, era preciso formar um bom corpo de funcionários públicos leigos, munidos de espírito cívico. A laicização do saber, que até então era relegado a um espaço clerical e teológico, foi um dos desdobramentos desse quadro, ela estava inserida num amplo movimento de secularização. Podemos dizer que secularização e escolarização foram fenômenos que acompanharam a modernidade, tanto quanto a industrialização e a globalização. No que se refere à primeira, identificamos no pensamento de Nicolau Maquiavel18 um dos pioneiros dessa tendência que,

ao admirar os cidadãos de Florença que por amor a sua cidade natal, acima do temor pela salvação, lutaram contra o Papa, ou seja, puseram o civismo acima da religião (TOURAINE, 2012, p. 23).

A secularização ampliou-se, sobretudo, no final da Idade Moderna, mais precisamente no século XVIII, quando a ideia de formar o “povo”, de prepará-lo intelectualmente, sob uma ótica de formar o cidadão, passou a ser vital na estrutura do Estado Nacional, em conflito com os interesses da Igreja desde os primórdios da modernidade. Era preciso substituir a arbitrariedade da moral religiosa pelo conhecimento das leis da natureza (TOURAINE, 2012,

17 Após a desintegração do Império Romano do Ocidente surgiram na Europa uma diversidade de reinos, ditos germânicos. Desses destacou-se o reino dos Francos, que deu origem ao Império Carolíngio, muito ligado à Igreja Católica. Para um melhor entendimento sobre o assunto recomendamos a leitura da obra O império de Carlos Magno (1990), de José Roberto Mello.

18 O clássico O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, revela bem esse universo que tem, dentre outros, dois elementos principais: a distinção entre a moral política e a moral religiosa, não sendo necessário ao príncipe ser bom. Portanto, “[...] não deve se incomodar com a reputação de cruel, se seu propósito é manter o povo unido e leal” (MAQUIAVEL, 2006, p. 101). O segundo elemento diz respeito ao civismo, que tem seu ponto máximo na Revolução Francesa, quando ganha força a ideia de uma educação cívica capaz de formar o cidadão que decide os rumos da nação. Foi a partir desse contexto que as Escolas Normais desenvolvem-se, pois formar esse tipo de cidadão exigia um número maior de professores e o papel das instituições normalistas era justamente o de formar docentes.

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p. 21). Nesse sentido a educação formal do povo foi a ferramenta para combater o misticismo, a ignorância e a intolerância religiosa, movimento fortalecido com o Iluminismo. O pensamento educacional do período, também denominado de Século das Luzes, “foi muito rico em reflexões pedagógicas”, destaca-se as ideias de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, mais conhecido por Marquês de Condorcet (1743-1794) (SCHAFFRATH, 2009, p. 145-146).

No que se refere à escolarização, outra faceta fortalecida durante a modernidade, foi o aparecimento das Escolas Normais e em sua disseminação pela Europa e América um novo capítulo desse processo, marcado pela intensificação e generalização do letramento. A Escola Normal de Uberaba, instalada no final do século XIX, é um dos elementos desse amplo processo, o que propicia que essa instituição seja analisada como a ponta de um iceberg desse fenômeno na região do Triângulo Mineiro. Ela é um fato cristalizador e revelador da estrutura escondida de baixo das águas, no movimento da escolarização na longa duração (LE GOFF 2005, p. 10).

André Petitat (1994, p. 141) afirma que no

Antigo Regime, o Estado, a princípio, domina o ensino (através de autorizações para abertura de escolas, cartas-patentes, etc.), mas não chega a formar um corpo administrativo permanente encarregado de exercer plenamente suas prerrogativas. Se a soberania teórica do Estado é incontestável, na realidade são outras entidades – principalmente religiosas – que gerenciam o ensino. Esta espécie de divisão de poderes entre Estados e Igrejas irá desintegrar-se rapidamente nos séculos XVIII e XIX. As medidas contra os jesuítas revelam as novas ambições do Estado nesta área. Rússia (1719), Portugal (1759), França (1762) e Espanha (1764) [...] a estatização da escola é indissociável do movimento secular dos Estados-Nações, que desabrocha nos séculos XVIII e XIX.

Nesse período “foi sobretudo a escola que se renovou radicalmente: vai se laicizando, já que se estatiza” (CAMBI, 1999, p. 327). Essa tendência de estatização educacional ganha força com o Iluminismo e com as Revoluções Francesa e Industrial. Esses movimentos fortalecem a ideia de formar um cidadão qualificado por meio de uma modalidade de ensino público, laico e extensivo à toda população. Assim, para formar um corpo de professores que formaria o cidadão foi que surgiram as primeiras Escolas Normais, numa conjuntura em que o absolutismo, o protecionismo e o clericalismo cediam lugar ao racionalismo, ao liberalismo e ao secularismo. O fim do absolutismo, quando o rei governava respaldado na teoria do direito

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divino19, foi seguido pelo liberalismo político no qual, cada vez mais, significativas parcelas da

população tomavam frente na escolha dos governantes e para terem capacidade de tomarem uma decisão de tal vulto, o letramento mínimo era essencial. Portanto, nos séculos XVIII e XIX, a estrutura escolarização consolidou-se, não mais como uma dinâmica clerical e religiosa, ligada à Igreja; mas como uma dinâmica estatal e laica, ou seja, secular. Essa é a dinâmica que abordamos a seguir.