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Escolas e Correntes de Relações Internacionais 38

CAPÍTULO 1 – ENTRE O DOMÉSTICO E O INTERNACIONAL 37

1.1   Escolas e Correntes de Relações Internacionais 38

Apesar das severas críticas enfrentadas nas últimas décadas, a perspectiva realista se mantém como uma das correntes predominantes no campo das relações internacionais. Para esses, o Estado é um ator unitário que busca a sobrevivência dentro um sistema de equilíbrio de poder definido por ganhos relativos. Nesse sentido, todos os atores nas relações internacionais agiriam em nome da segurança de seus Estados Nacionais. O papel dos governos subnacionais não seria diferente, ou seja, qualquer atividade internacional desses estaria direcionada ao interesse nacional.

A noção de um interesse nacional ou vontade geral já foi refutada dentro da teoria democrática de Schumpeter (1961). Logo, não é factível presumir que o papel desempenhado pelos governos subnacionais nas relações internacionais estariam alinhados a esse interesse nacional. Segundo o autor, em questões internacionais, cuja relação com a vida particular não é tão direta como nos assuntos locais, haveria menor senso de responsabilidade e influências irracionais ou imediatistas. No entanto, o avanço da globalização e a democratização fizeram com que os temas internacionais aproximasse cada vez mais dos assuntos locais, a ponto de ser pouco relevante essa distinção indicada pelo autor em tal época.

A corrente liberal institucionalista oferece outros elementos para análise da internacionalização dos governos locais. Ao defender uma ordem mais cooperativa e harmoniosa, voltada à ampliação da liberdade e do bem- estar humano, os liberais pressupõem processos de tomada de decisão resultantes de diferentes interações que vão além de Estados Nacionais. Dentro da teoria da interdependência complexa, Keohane e Nye (1977) defendem a proliferação de agentes não estatais (ou atores não territoriais),

como corporações multinacionais, movimentos sociais transnacionais e organizações internacionais.

Apesar de essa corrente não analisar especificamente a atuação dos governos locais, ela traz um contexto mais amplo em que esses atores se inserem. Segundo os liberais, a diversidade de atores domésticos, a presença dos organismos internacionais e a informalidade dos contatos internacionais determinariam a multiplicidade de canais de comunicação e negociação. Consequentemente, a agenda internacional se diversifica e perde-se a ideia de hierarquia entre os temas. A fronteira entre o doméstico e o internacional torna-se cada vez mais tênue, de modo a inviabilizar a organização de competências a partir dessa dicotomia.

O conceito de regime elaborado pelos institucionalistas passa a ser central neste campo de estudo. Por regimes, entendem-se os princípios (crenças), normas (padrão de comportamento), regras e procedimentos de processos de decisão em que as expectativas dos atores convergem em uma determinada área (KRANSER, 1993). Para Keohane e Nye (1977), os regimes internacionais derivam de acordos voluntários entre atores juridicamente iguais dedicados a maximizar seus interesses e poder. Em um contexto complexo cada vez mais interdependente, cresce o número de áreas em que os regimes seriam relevantes.

A incorporação da dimensão econômica na definição de poder introduzida pelos realistas oferece a percepção da utilidade decrescente do uso da força. O tema da segurança, ao fim da Guerra Fria, perde espaço para a reflexão sobre os regimes de meio ambiente, direitos humanos, entre outros, nas grandes Conferências das Nações Unidas na década de 1990. A interdependência complexa trouxe para o interior do estado novos padrões de interconexões, em que atores domésticos (como entidades subnacionais) passaram a interagir e tratar de questões internacionais em âmbitos como os da integração regional (MARIANO & MARIANO, 2005). Mesmo nos novos temas de segurança, como o terrorismo, os governos locais são chamados a contribuir.

Segundo Fukuyama (1995), o liberalismo econômico retirou o foco sobre os Estados – não sendo mais possível grandes guerras mundiais – e

deu destaque às guerras infraestatais. Ao enfatizar “issues”1dentro do

Estado, o autor argumenta que democracias liberais consolidadas evitariam guerras entre si a favor dos ganhos econômicos. Huntington (1995), no entanto, enfatiza o caráter ideológico como determinante da permanência dos conflitos. Nesse sentido, as diversidades culturais seriam capazes de explicar melhor a origem das guerras ao invés da natureza da democracia.

Ao criticar a teoria da Paz Democrática, Huntington (1995) redireciona a interpretação do vetor infraestatal versus interdependência complexa para o foco das civilizações. A interdependência econômica não teria sido capaz de retirar o contexto anárquico do sistema em que o uso da força é legítimo. Além disso, algumas culturas não se adaptariam bem ao modelo, resultando em democracias imperfeitas. Algumas civilizações seriam, inclusive, incompatíveis com valores democráticos. O autor defende, no entanto, uma terceira onda de democratização, que vem desde a Revolução dos Cravos em Portugal (1974), alcançando, atualmente, o maior número de países democráticos já registrados na história (HUNTINGTON, 1991).

Essa última onda de democratização talvez seja mais um fator que corroborou para a intensificação da atuação internacional dos governos locais nas últimas décadas. Basta analisar os diversos memorandos assinados entre governos locais para observar o intuito desses de difundir o princípio democrático de eleições locais e a participação popular direta. Sustentados pela lógica de que valores democráticos reduzem conflitos infraestatais (FUKUYAMA, 1995) e de que diferenças culturais levam aos choques das civilizações (HUNTINGTON, 1995), Estados Nacionais incentivariam a cooperação cultural entre cidades.

Da mesma forma que vários autores argumentaram contra as ideias de Fukuyama, as de Huntington limitam a capacidade de formular previsões, já que sempre haverá a possibilidade de guerras e ondas reversas contrárias à democratização. Resta saber se essas ondas reversas seriam capazes de retroagir à atuação internacional dos governos locais. O estudo dedicado a                                                                                                                

1 “Issue é um item ou aspecto de uma decisão, que afeta os interesses de vários atores e

que, por esse motivo, mobiliza as suas expectativas quanto aos resultados da política e catalisa o conflito entre os atores” RUA, M. d. (1998). Análise de políticas públicas: conceitos básicos. In: RUA, M. d.; CARVALHO, M. I., O estudo da política: tópicos

esta dissertação tende a demonstrar que dificilmente o Estado Nacional conseguiria reassumir o comando sob as interações internacionais como pressuposta em períodos anteriores. De qualquer modo, deixa-se, aqui, as orientações de Whitehead (2005) sobre a necessidade, na era pós-Guerra Fria, de aprofundar a investigação sobre os níveis subnacionais, como exigem os inúmeros processos de fragmentação que caracterizam esse período.

Ao invés de se buscar previsões sobre o futuro, os construtivistas defendem o exame dos interesses, os aspectos culturais e linguísticos que estão por trás da realidade construída socialmente como produto de fatos históricos. Os interesses e as preferências dos agentes são construídos nos processos de comunicação e demais meios de interação. Estrutura e agentes seriam, assim, elementos coconstitutivos. Apesar de se reconhecer certos limites materiais (físicos), são os valores e as ideias que informam a relação entre os agentes. Os processos de transformações sociais são permanentes, não sendo possível determinar regularidades no tempo (WENDT, 1999).

A ênfase recai, portanto, na capacidade de transformação da realidade, demonstrando que as relações internacionais não podem ser separadas da política doméstica – já que esses dois compõem o mesmo ambiente de interação em que se constrói a sociedade internacional. Todas as formas de atuação são construídas a partir das necessidades criadas por uma sociedade. Logo, a atuação internacional dos governos locais representaria uma demanda da atual sociedade globalizada.

Autores da teoria crítica, como Linklater (2008), chegam a sugerir a criação de uma esfera pública mundial como forma de unificar o doméstico e o internacional. O cosmopolitismo defende algumas concepções de cidadãos pós-nacionais em que novas comunidades políticas são criadas por meio da divisão dos poderes estatais com autoridades maiores e menores, fortalecendo a relação entre o local e o global.

A ideia de uma cidadania mundial teria nascido na Grécia antiga, no século IV, mais como crítica às cidades (polis) em declínio do que a favor do desenvolvimento de uma comunidade universal. Após a Segunda Guerra Mundial, os movimentos para fortalecer a responsabilidade coletiva teriam ressurgidos em torno de instituições globais apoiadas no forte senso kantiano

de obrigação moral entre os Estados-Membros. Esse tipo de visão só é possível com a existência das fronteiras nacionais – o ponto de partida das relações internacionais estabelecido por Bull (2002). A primazia da política defendida por esse autor indica a ampliação da cultura cosmopolita como um possível futuro para a sociedade internacional – embora ainda estejamos distante dessa realidade.

Duroselle (2000), mestre da escola francesa, defende um equilíbrio entre a esfera política e econômica, negando a primazia das relações econômicas como força de um bloco único. O reconhecimento dos Estados por meio das fronteiras é dado visto como inadequado por esse autor, já que não leva em conta as épocas da história em que as fronteiras não existiam e, principalmente, limitam as soberanias por meio de uma consistência jurídica uniforme que nem sempre representa uma unidade política. Para compreender o mundo atual, é preciso a combinação de métodos que abarquem a política internacional dos Estados (papel dominante de um grupo detentor do poder) e as interações de caráter privado (indivíduos) também presentes nas relações internacionais. Logo, não existe ato na política exterior que não tenha um aspecto de política interna.

As ideias acima chamam atenção para o estabelecimento de níveis de análise. Ao centrar na decisão individual, evidencia-se mais o papel das ideias, a natureza cognitiva do processo de tomada de decisão. Ao olhar para os fatores políticos domésticos, direcionam-se a análise para as estruturas de decisões burocráticas, os seus procedimentos, os grupos de pressão e o jogo de alianças. Já o sistema internacional traz a perspectiva da distribuição de poder entre os estados em que seria possível mensurar o impacto dos diferentes comportamentos.

1.2 Mundo Multicêntrico: a interação micro e macro

 

 

Já que as unidades (seja indivíduo ou Estado) e a estrutura (sistema internacional) estão em constante interação e se retroalimentam, o ideal é confrontar os diferentes níveis de análise a fim de evitar o risco de