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Trata-se nesta seção da seleção dos casos de Oliver Sacks que serão expostos e analisados para investigar se a concepção de Vigotski sobre compensação faz-se presente na obra do autor e, se for, de que modo se apresenta; ou seja, é determinante no processo analítico de Sacks ou seu papel é acessório?

No Brasil, a coleção de livros de Sacks publicados pela editora Companhia das Letras reúne 15 índices, que expõem centenas de casos. Não se tem a pretensão de quantificar os casos que Sacks acompanhou ao longo de seu exercício como médico e expôs em suas obras; em alguns livros o autor dedicou-se a estudar comunidades inteiras (além de escrever sobre temas como química, botânica e mesmo uma extensa autobiografia, publicada no final de sua vida) e em outros ele recuperou e compilou casos acompanhados em momentos diferentes de sua atividade, como, por exemplo, no livro Enxaqueca (1992/2015), que no prefácio afirma ter tido contato com mil pacientes acometidos por essa condição. Além disso, há casos que Sacks utilizava como exemplos em notas de rodapé, apenas para completar algumas de suas discussões sobre determinada afecção, mas não os apresentava por completo.

Antes de recorrer diretamente aos casos, foi feita uma “varredura” nos livros de Sacks, separando-os de acordo com as temáticas de seus casos clínicos. Em seguida, com o objetivo de dar enfoque a apenas um tipo de afecção para analisar o processo de compensação dos indivíduos que a manifestam, foi realizada outra “varredura”. Para fazê-la, foram lidos os prefácios, introduções e sumários dos livros, além de que uma boa parte dos livros já haviam sido lidos por completo em outro momento, pela pesquisadora.

Dos quinze livros de Sacks (publicados no Brasil), três versam especificamente sobre o neurologista, sua vida, sua obra e sobre um acidente que o acamou por alguns meses. Dos demais livros, um é sobre um de seus maiores interesses no campo da biologia, a botânica (O

diário de Oaxaca, 2002); outro é sobre outra grande área de interesse que o aproximou dos

estudos das ciências naturais, a química (Tio Tungstênio, 2001); e três nos quais ele expõe suas investigações de comunidades inteiras, Tempo de despertar (1973), uma comunidade hospitalar que sofria de “letargia do sono”, A ilha dos daltônicos e a Ilha das cicadáceas (1996), uma comunidade de daltônicos e Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos (1989), uma comunidade de surdos.

O primeiro critério de escolha dos casos consistiu em excluir aqueles casos clínicos em que afecções neuropsicológicas são tomadas como objeto, por exemplo delírios e alucinações oriundos de alguma lesão cerebral. Analisar tais conjuntos de casos dependeria de uma pesquisa de fôlego maior, em que pudesse ser investigada com mais cuidado a posição da neurologia e, em alguns casos, também da psiquiatria.

No segundo momento, outro critério era não escolher os casos que fossem afecções do próprio Sacks, pois ainda que seja digno de reconhecimento o primor da capacidade de observação do neurologista, tais casos estariam muito mais próximos de relatos biográficos, como, por exemplo, o livro “Com uma perna só” (1984), um belíssimo estudo sobre compensação, quando Sacks praticamente precisou reaprender a controlar sua motricidade em decorrência da lesão em sua perna após um grave acidente.

Por fim, o critério julgado como decisivo para a escolha dos casos foi considerar aqueles em que Sacks colocou em primazia o estudo da cultura ou, ainda, que se interessou em compreender a esfera social não somente como externa ao indivíduo, mas constitutiva do mesmo. Dito de outra maneira, dentre os casos que poderiam ser escolhidos, como: perturbações motoras, cânceres, autismo, síndrome de Tourette, comprometimento das funções cerebrais, cegueira, surdez etc., reduziu-se àqueles que possuem mais detalhamentos descritivos sobre a cultura e as determinações desta. Assim, por este critério, foram escolhidos, mais precisamente, os livros: Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos (1989) e A ilha dos

daltônicos e a ilha das cicadáceas (1996), que se referem, respectivamente, à surdez e ao

daltonismo de comunidades inteiras.

A escolha pelos casos em que Sacks tenha se preocupado em buscar as determinações da cultura no desenvolvimento humano, tomando-a também como objeto de investigação, possui relação com a defesa de Vigotski de que a compensação é social. Assim, o processo de superação do “defeito”, por vias não “convencionais” do desenvolvimento e a própria marca negativa deste acontecem na e pela cultura. Deste modo, os casos de Sacks precisavam apresentar tal orientação para que fosse possível fazer um paralelo entre sua condução terapêutica e o processo de compensação. E, por último, Vendo Vozes, além de atender a todos os critérios apresentados, também é o livro no qual Sacks cita Vigotski várias vezes.

2 O CONCEITO DE COMPENSAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Este capítulo tem como objetivo definir o conceito de compensação, tomado como objeto de análise nesta dissertação. Conforme exposto anteriormente, trata-se aqui de destacar a compreensão do conceito tal qual entendida e trabalhada por L. S. Vigotski (1896-1934) em seus trabalhos sobre defectologia18. É importante tal justificativa, uma vez que este conceito

está presente em outras áreas de conhecimento além da psicologia, por exemplo, na física, no direito, na fisiologia e na genética, conforme apontado por Leal (2013), apresentando variações substanciais. A autora mostra, também, que na ciência psicológica existem concepções distintas e, até mesmo, na psicologia histórico-cultural, pois, segundo Dainez e Smolka (2016), há um dissenso entre alguns estudiosos sobre esse conceito em relação às proposições de Vigotski.

Como fonte principal serão utilizados os textos de Vigotski reunidos no livro Obras Escogidas Tomo V – Fundamentos de defectologia19 (1983/2012), a saber: Los problemas fundamentales de la defectología contemporánea (1929/2012) e El defecto y la compensación

(1924/2012a). Como complemento, serão utilizados os materiais localizados por meio do levantamento bibliográfico – já mencionados no capítulo anterior – e para uma exposição histórica do conceito, a discussão apoiar-se-á na tese Compensação e cegueira: um estudo

historiográfico (LEAL, 2013). Por fim, serão situados – a partir dos próprios textos de Vigotski

e de alguns de seus estudiosos – os estudos do psicólogo soviético sobre defectologia, em que o conceito de compensação é tomado como parte fundamental de tais teorizações.

É importante destacar que a partir deste ponto do trabalho, os termos “deficiente, defeituoso, anormal e ‘defeito’” serão substituídos por pessoa com deficiência e deficiência, respectivamente; os termos anteriores apenas serão mantidos nas citações diretas dos textos de Vigotski, pois o autor utilizou-se das palavras correntes em seu momento histórico. Atualmente, essas palavras não são usadas, pois suas etimologias e os significados que carregam possuem definições que negativam o público-alvo a quem se direcionam.

Se há algo consensual na Educação Especial-Inclusiva é a constante mudança dos termos, nomenclaturas e concepções sobre os fenômenos estudados nesse campo. A rigor,

18 São os estudos sobre o desenvolvimento dos indivíduos com deficiência e sobre a construção de uma educação

que possibilite educá-los para que possam aprender e se desenvolver. Em suma, tais estudos buscam caminhos para que se pense uma educação tal qual elaborada para os indivíduos “normais”, retirando-lhe o caráter de uma educação assistencialista (VYGOTSKI, 1929/2012).

19 Essa obra recebe esse título (Obras Escolhidas) porque é uma compilação de uma série de textos de Vigotski. O

compreende-se que a recorrente mudança de termos utilizados pode ser atribuída à insuficiência destes em expressar idealmente o que existe na materialidade. Outrossim, em relação a essa área, os termos em sua maioria são recorrentemente alterados também em virtude dos inúmeros significados pejorativos que recebem e que, por vezes, são assumidos em atitudes preconceituosas e em comportamentos depreciativos à pessoa com deficiência. Um exemplo de tais palavras que não são mais usadas: idiota, cretino, imbecil, débil mental, retardado, defeituoso, deficiente etc.

A escolha dos termos a serem usados na exposição dos dados produzidos nesta dissertação foi uma decisão a ser tomada para que não houvesse incoerência com as proposições aqui defendidas. Em primeiro lugar, por não se tratar de uma mera decisão protocolar, mas de assumir uma posição política, no sentido de que a depender do termo utilizado poder-se-ia individualizar e culpabilizar o sujeito por sua condição, assim como implicitamente adotar concepções medicalizantes e patologizantes. Em segundo, a escolha foi orientada por uma questão teórica, visto que, na maioria das vezes, a disputa por termos, nas discussões acadêmicas, sobrepõe-se à apreensão da realidade. De outra maneira, é dizer que a teoria tangencia a realidade em vez de representá-la idealmente.

Sendo assim, para ser coerente com os fundamentos da psicologia histórico-cultural – esses, orientados a uma leitura da realidade concreta, com base método materialista histórico- dialético – o termo “diferenças funcionais” se mostrou impreciso, uma vez que não se trata apenas de uma diferença na função, mas em toda estrutura que constitui o sujeito que se desenvolve sob o rótulo de pessoa com deficiência.

Justifica-se que se as deficiências forem consideradas “apenas” como diferenças não há e não haverá necessidade de superá-las a partir do substrato cultural, isto é, encontrando maneiras adequadas e coerentes na educação da criança com deficiência (seja qual for). Cabe dizer que o ponto de partida na educação da criança com deficiência e da criança sem deficiência será diferente, mas o ponto de chegada precisará ser o mesmo, o alcance do pensamento conceitual. Dito isso, o termo utilizado nesta dissertação será “pessoa com deficiência”.

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