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escorregar em uma rampa escorregadia?

Enquanto est´avamos no assunto da identidade, eis aqui um outro problema sobre ela. Tudo se desgasta com o tempo. `As vezes, as pe¸cas s˜ao repostas. As motocicletas e carros trocam as suas embreagens; as casas trocam os seus telhados; e at´e mesmo as c´elulas do corpo s˜ao repostas de tempos em tempos. Mudan¸cas como estas n˜ao afetam a identidade do objeto em quest˜ao. Quando eu troco a embreagem da minha motocicleta, ela permanece a mesma moto, uma Thunder preta. Por ser um rapaz cauteloso, eu guardo todas as pe¸cas antigas. Quando tudo tiver sido trocado, ponho todas as pe¸cas antigas juntas para recriar a moto original. Mas, eu comecei com uma Thunder preta; e mudar uma pe¸ca da moto n˜ao afeta a sua identidade: ela ´e ainda a mesma moto. Portanto, a cada troca, a m´aquina ainda ´e a Thunder preta; at´e, ao final, ela ´e - a Thunder preta. Mas, sabemos que isto n˜ao pode estar certo. A Thunder preta agora est´a de p´e ao lado da moto original na garagem.

Aqui est´a um exemplo do mesmo problema. Uma pessoa de 5 anos de idade ´e (biologicamente) uma crian¸ca. Se algu´em ´e uma crian¸ca, ele ainda ´

e crian¸ca um segundo depois. Neste caso, ele ainda ´e crian¸ca um segundo depois, e um segundo depois deste, e um segundo depois deste,... portanto, depois de 630.720.000 segundos, ele ainda ´e crian¸ca. Mas a´ı, ele ter´a 25 anos de idade.

Eub´ulides, o mesmo Eub´ulides que inventou o paradoxo do mentiroso do Cap´ıtulo 5. Agora eles s˜ao chamados de paradoxos de sorites. (Uma forma padr˜ao do argumento ´e o efeito de que adicionando um gr˜ao de areia por vez, uma pessoa nunca pode formar uma pilha; “sorites” vem do grego “soros”, o termo grego para pilha, monte.) Estes s˜ao um dos mais perturbadores paradoxos em l´ogica. Eles surgem quando o predicado empregado (“´e uma Thunder preta”, “´e uma crian¸ca”) ´e vago, em um certo sentido; ou seja, quando a sua aplica¸c˜ao ´e tolerante com respeito a mudan¸cas bem pequenas: se ´e aplicado a um objeto, ent˜ao um mudan¸ca bem pequena no objeto n˜ao alterar´a este fato. Virtualmente todos os predicados que n´os empregamos em um discurso normal s˜ao vagos neste sentido: “´e vermelho”, “est´a acor- dado”, “est´a feliz”, “est´a bˆebado” - at´e mesmo “est´a morto” (morrer leva tempo). Portanto, os argumentos da rampa escorregadia do tipo sorites s˜ao potencialmente endˆemicos em nosso racioc´ınio.

Para focar a quest˜ao a respeito deles, vamos olhar um dos argumentos com mais detalhes. Seja Jack uma crian¸ca de 5 anos. Seja a0 a frase “Jack ´e a

crian¸ca ap´os 0 segundos”. Seja a1 a frase “Jack ´e a crian¸ca ap´os 1 segundos”,

e assim por diante. Se n ´e um n´umero qualquer, an´e a frase “Jack ´e a crian¸ca

ap´os n segundos”. Seja k um n´umero enorme, pelo menos t˜ao grande quanto 630.720.000. Sabemos que a0 ´e verdadeiro. (Ap´os 0 segundos passados,

Jack ainda tem 5 anos.) E para cada n´umero, n, sabemos que an→ an+1 (se

Jack ´e uma crian¸ca em algum momento, ele ´e uma crian¸ca 1 segundo depois.) Ligamos todas estas premissas juntas por uma seq¨uˆencia de inferˆencias modus

ponens, como esta:

a0 a0 → a1/a1 a1 → a2/a2· · · ak−1 ak−1 → ak/ak

A conclus˜ao final ´e ak que sabemos que n˜ao ´e verdadeira. Algo deu errado,

e n˜ao parece haver muito escopo para manobras.

Ent˜ao, o que diremos agora? Aqui est´a uma resposta, que `as vezes ´e cha- mada de l´ogica difusa (fuzzy). Ser uma crian¸ca parece algo que desaparece,

gradualmente. Assim como ser um adulto (biologicamente) parece ser algo que aparece, gradualmente. Parece natural supor que o valor da verdade de “Jack ´e uma crian¸ca” tamb´em vai do verdadeiro para surgir como falso. A verdade, ent˜ao, vem por graus. Suponha que medimos estes graus por n´umeros entre 1 e 0, 1 sendo completamente verdadeiro, 0 sendo completa- mente falso. Cada situa¸c˜ao, ent˜ao, atribui a cada senten¸ca b´asica um tal n´umero.

E quanto a senten¸cas que cont´em operadores de nega¸c˜ao e conjun¸c˜ao? Conforme Jack envelhece, o valor da verdade de “Jack ´e uma crian¸ca” dimi- nui. O valor da verdade de “Jack n˜ao ´e uma crian¸ca” pareceria correspon- dentemente aumentar. Isto sugere que o valor da verdade de ¬a ´e 1 menos o valor da verdade de a. Suponha que escrevamos o valor da verdade de a como |a| ; ent˜ao teremos:

|¬a| = 1 − |a|

Eis aqui uma tabela com uma amostra de alguns valores:

a ¬a 1 0 0,75 0,25 0,5 0,5 0,25 0,75 0 1

E quanto ao valor da verdade das conjun¸c˜oes? Uma conjun¸c˜ao s´o pode ser t˜ao boa quanto a sua pior parte. Portanto, ´e natural supor que o valor da verdade de a&b ´e o minimum (menor) de |a| e |b|:

|a&b| = Min(|a|, |b|)

Eis aqui uma tabela de algumas amostras de valores. Valores de a est˜ao na coluna da esquerda; valores de b est˜ao na fileira de cima. Os valores correspondentes de a&b est˜ao onde a linha e a coluna se encontram. Por exemplo, se quisermos encontrar |a&b|, em que |a| = 0, 25 e |b| = 0, 5, vemos onde a fileira e a coluna em it´alico se encontram. O resultado est´a em negrito.

a&b 1 0,75 0,5 0,25 0 1 1 0,75 0,5 0,25 0 0,75 0,75 0,75 0,5 0,25 0 0,5 0,5 0,5 0,5 0,25 0 0,25 0,25 0,25 0,25 0,25 0 0 0 0 0 0 0

Analogamente, o valor de uma disjun¸c˜ao ´e o maximum (maior) dos valores dos disjuntos:

Deixo para vocˆe construir uma tabela com algumas amostras de valores. Note que, de acordo com a tabela acima, ¬, & e ∨ s˜ao ainda fun¸c˜oes de verdade. Isto ´e, por exemplo, o valor da verdade de a&b ´e determinado pelo valor da verdade de a e b. ´E apenas que estes valores s˜ao agora n´umeros entre 0 e 1, ao inv´es de V e F . (Talvez valha a pena notar, que se n´os pensamos o 1 como V , e o 0 ´e como F , os resultados em que somente 1 e 0 est˜ao envolvidos s˜ao os mesmos como para as fun¸c˜oes de verdade do Cap´ıtulo 2, como vocˆe pode checar sozinho.)

E quanto aos condicionais? Vimos no Cap´ıtulo 7 que existem boas raz˜oes para supor que → n˜ao ´e uma fun¸c˜ao da verdade, mas vamos colocar estas preocupa¸c˜oes de lado por ora. Se ele fosse uma fun¸c˜ao da verdade, qual seria, agora que n´os temos que levar em considera¸c˜ao os graus de verdade? Nenhuma reposta parece tremendamente ´obvia. Eis aqui uma sugest˜ao (bem padr˜ao), que ao menos parece fornecer o tipo correto de resultados.

Se |a| ≤ |b| : |a → b| = 1

Se |b| < |a| : |a → b| = 1 − (|a| − |b|)

(< significa “´e menor que”; ≤ significa “´e menor que ou igual a”.) Por- tanto, se o antecedente ´e menos verdadeiro que o conseq¨uente, o condici- onal ´e completamente verdadeiro. Se o antecedente ´e mais verdadeiro que o conseq¨uente, ent˜ao o condicional ´e menor que o verdadeiro maximal pela diferen¸ca entre os seus valores. Eis aqui uma tabela de algumas amostras de valores. (Lembre-se que os valores de a est˜ao na coluna da esquerda e os valores de b est˜ao na fileira superior.)

a→ b 1 0,75 0,5 0,25 0 1 1 0,75 0,5 0,25 0 0,75 1 1 0,75 0,5 0,25 0,5 1 1 1 0,75 0,5 0,25 1 1 1 1 0,75 0 1 1 1 1 1

E quanto `a validade? Uma inferˆencia ´e v´alida se a conclus˜ao vale em todas as situa¸c˜oes em que as premissas valem. Mas o que significa agora algo valer em uma situa¸c˜ao? Quando ´e suficientemente verdadeiro. Mas, quando a verdade ´e suficientemente verdadeira? Isto vai exatamente depender do contexto. Por exemplo, “´e uma moto nova” ´e um predicado vago. Se vocˆe

for a um vendedor de motos que lhe diz que uma certa moto ´e nova, vocˆe espera que ela nunca tinha sido usada anteriormente. Ou seja, vocˆe espera que “esta ´e uma moto nova” tenha o valor 1. Suponha, por outro lado, que vocˆe vai a uma corrida de motos, e te pedem para escolher as motos novas. Vocˆe vai escolher as motos que tˆem menos de um ano de uso. Em outras palavras, o seu crit´erio para o que ´e aceit´avel como uma moto nova ´e mais flex´ıvel. “Esta ´e uma moto nova” precisa ter valor apenas, digamos, 0,9 ou maior.

Portanto, supomos que h´a algum n´ıvel de aceita¸c˜ao, fixado pelo contexto. Este ser´a um n´umero qualquer entre 0 e 1 - talvez 1 no casos extremos. Vamos escrever este n´umero como ε. Ent˜ao, uma inferˆencia ´e v´alida para aquele contexto exatamente se a conclus˜ao tiver um valor ao menos t˜ao grande quanto ε em toda situa¸c˜ao em que todas as premissas possuem valores ao menos t˜ao grande quanto ε.

Agora, como tudo isto se aplica ao paradoxo de sorites? Suponha que tenhamos uma sequˆencia de sorites. Como acima, seja an a senten¸ca “Jack

´

e uma crian¸ca depois de n segundos”; mas para deixar as coisas manej´aveis, vamos supor que Jack cresce em 4 segundos! Ent˜ao, um registro de valores de verdade poderia ser:

a0 a1 a2 a3 a4

1 0,75 0,5 0,25 0

a0 → a1 possui o valor 0,75 (= 1 - (1 - 0,75)); tamb´em possui esse valor

a1 → a2; de fato, todo condicional da forma an → an+1 tem o valor 0,75.

O que isto nos diz a respeito do paradoxo de sorites depende do n´ıvel de aceita¸c˜ao ε, que est´a em jogo aqui. Suponha que o contexto seja tal que imp˜oe o maior n´ıvel de aceita¸c˜ao; ε ´e 1. Neste caso, modus ponens ´e valido. Pois, suponha que |a| = 1 e |a → b| = 1. Dado que |a → b| = 1, devemos ter

|a| ≤ |b|. Segue que |b| = 1. Portanto, o argumento de sorites ´e v´alido. Mas,

neste caso, cada premissa condicional, tendo o valor 0,75, ´e inaceit´avel. Se, por outro lado, colocarmos o n´ıvel de aceita¸c˜ao abaixo de 1, ent˜ao

modus ponens se torna inv´alido. Suponha, s´o por ilustra¸c˜ao, que ε ´e 0,75. Como j´a vimos, ambos a1 e a1 → a2 tem o valor 0,75; mas, a2 possui o valor

0,5; que ´e menor que 0,75.

De qualquer forma que vocˆe olhar, ent˜ao, o argumento falha. Ou algumas das premissas n˜ao s˜ao aceit´aveis; ou, se forem, as conclus˜oes n˜ao se seguem

validamente. Por que somos enganados t˜ao facilmente pelo argumento de sorites? Talvez, porque confundimos a verdade completa com a verdade quase-completa. Uma falha ao tra¸car a distin¸c˜ao n˜ao faz muita diferen¸ca normalmente. Mas se vocˆe o fizer de novo, e de novo, e de novo, ... a´ı faz.

Eis um diagn´ostico do problema. Mas com vagueza, nada ´e direto. Qual foi o problema em dizer que “Jack ´e uma crian¸ca” ´e simplesmente verdadeiro, at´e um particular ponto no tempo, quando isto se torna simplesmente falso? Apenas que n˜ao parece existir um tal ponto. Qualquer lugar que algu´em escolha tra¸car uma linha ´e completamente arbitr´ario; pode ser, na melhor das hip´oteses, uma quest˜ao de conven¸c˜ao. Mas agora, em que ponto do crescimento de Jack faz com que ele deixe de ser 100 % uma crian¸ca; ou seja, em que ponto “Jack ´e uma crian¸ca” muda do valor de exatamente 1, para um valor inferior a 1? Qualquer lugar que algu´em escolha para tra¸car uma linha seria t˜ao arbitr´ario quanto antes. (Isto ´e, `as vezes, chamado de problema da

vagueza de ordem superior.) Se isto est´a correto, ainda n˜ao solucionamos o problema mais fundamental sobre vagueza: apenas o mudamos de lugar.

Ideias centrais do cap´ıtulo

• Valores de verdade s˜ao n´umeros entre 0 e 1 (inclusive). • |¬a| = 1 − |a|

• |a ∨ b| = Max(|a|, |b|) • |a&b| = Min(|a|, |b|) • |a → b| = 1, se |a| ≤ |b|

|a → b| = 1 − (|a| − |b|), em caso contr´ario

• Uma senten¸ca ´e verdadeira em uma situa¸c˜ao exatamente quando o seu

valor da verdade ´e pelo menos t˜ao grande quanto o n´ıvel de aceita¸c˜ao (determinado pelo contexto).

Problema

Simbolize a seguinte inferˆencia e avalie a sua validade em que o n´ıvel de aceita¸c˜ao ´e 0,5. Jenny ´e esperta e; ou Jenny n˜ao ´e esperta ou ela ´e bela. Portanto, Jenny ´e bela.

Cap´ıtulo 11

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