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Ainda n˜ao terminamos de falar sobre tempo. Tempo est´a envolvido em v´arios outros enigmas, um dos quais olharemos neste cap´ıtulo. Este tipo ´e refe- rente a problemas que surgem quando as coisas mudam; e especificamente, a quest˜ao do que ´e dito sobre a identidade dos objetos que mudam atrav´es do tempo.

Eis aqui um exemplo. Todos pensamos que objetos podem sobreviver atrav´es da mudan¸ca. Por exemplo, quando eu pinto um arm´ario, ainda que a sua cor possa mudar, ele ainda ´e o mesmo arm´ario. Ou quando vocˆe muda o seu penteado, ou se vocˆe infelizmente tiver o azar de perder um membro, vocˆe ainda ser´a vocˆe. Mas como algo pode sobreviver `a mudan¸ca? Afinal, quando vocˆe muda seu penteado, a pessoa que resulta ´e diferente, n˜ao ´e a mesma de forma alguma. E se a pessoa est´a diferente, ´e uma pessoa diferente; ent˜ao o velho vocˆe deixou de existir. De forma exatamente igual, pode ser argumentado, nenhum objeto persiste atrav´es de qualquer mudan¸ca. Qualquer mudan¸ca significa que o velho objeto deixa de existir e ´e substitu´ıdo por um outro objeto bem diferente.

Argumentos como este aparecem em v´arios lugares na hist´oria da filosofia, mas seria geralmente aceito pelos l´ogicos, agora, que eles est˜ao errados, e repousam em uma simples ambiguidade. Devemos distinguir entre um objeto e a suas propriedades. Quando dizemos que vocˆe, com um outro penteado, ´e diferente, estamos dizendo que vocˆe tem propriedades diferentes. N˜ao quer dizer que vocˆe ´e literalmente uma pessoa diferente, da mesma forma que eu

sou diferente de vocˆe.

Um motivo pelo qual uma pessoa pode falhar ao distinguir entre ser um certo objeto e ter certa propriedade ´e que, em portuguˆes, o verbo ‘ser’ e suas v´arias formas gramaticais - ‘´e’, ‘sou’, e assim por diante - podem ser usados para expressar ambas estas coisas. (E o mesmo serve para palavras similares em outros idiomas.) Se dissermos ‘A mesa ´e vermelha’, ‘O seu cabelo est´a curto agora’, e coisas parecidas, estamos atribuindo propriedades a um objeto. Mas, se algu´em disser ‘Eu sou Graham Priest’, ‘A pessoa que venceu a corrida ´e a mesma pessoa que venceu ano passado’ e assim por diante, ent˜ao eles est˜ao identificando um objeto de uma certa forma. Em outras palavras, eles est˜ao expressando a sua identidade.

L´ogicos chamam o primeiro uso de ‘´e’ o ‘´e’ da predica¸c˜ao; eles chamam

o segundo uso de ‘´e’ o ‘´e’ da identidade. E por eles terem de alguma forma propriedades diferentes, eles o escrevem de formas diferentes. O ‘´e’ da pre- dica¸c˜ao n´os j´a conhecemos no Cap´ıtulo 3. ‘John ´e vermelho’ ´e tipicamente escrito na forma jR. (Na verdade, como eu observei no Cap´ıtulo 3, ´e mais comum escrever isto de forma contr´aria, Rj.) O ‘´e’ de identidade ´e escrito com =, parecido com a matem´atica da escola. Assim sendo, ‘John ´e a pessoa que venceu a corrida’ ´e escrito: j = w. (O nome w ´e uma descri¸c˜ao aqui; mas isto n˜ao tem importˆancia na quest˜ao presente.) Frases como estas s˜ao chamadas identidades.

Quais propriedades a identidade possui? Primeiro, ela ´e uma rela¸c˜ao. Uma rela¸c˜ao ´e algo que conecta dois objetos. Por exemplo, ver ´e uma rela¸c˜ao. Se dissermos ‘John vˆe Mary’, estamos expressando uma rela¸c˜ao entre eles. Os objetos conectados pela rela¸c˜ao n˜ao tˆem de ser necessariamente diferentes. Se dissermos ‘John vˆe a si mesmo’ (talvez em um espelho), estamos expressando uma rela¸c˜ao que John tem com John. Agora, identidade ´e uma rela¸c˜ao muito especial. ´E uma rela¸c˜ao que todo objeto tem consigo mesmo e com nada mais. Vocˆe pode pensar que isto faria da identidade uma rela¸c˜ao in´util, mas, na verdade, n˜ao ´e assim. Por exemplo, se eu digo ‘John ´e a pessoa que venceu a corrida’, estou dizendo que a rela¸c˜ao da identidade se d´a entre o objeto referido por ‘John’ e o objeto referido por ‘a pessoa que venceu a corrida’ - em outras palavras, que estes dois nomes se referem a uma e a mesma pessoa. Isto pode ser uma informa¸c˜ao altamente significativa.

Mas, as coisas mais importantes sobre identidade s˜ao as inferˆencias em que ela est´a envolvida. Eis aqui um exemplo:

John ´e a pessoa que venceu a corrida.

A pessoa que venceu a corrida ganhou um prˆemio. Portanto John ganhou um prˆemio.

Podemos escrever isto como:

j = w wP jP

Esta inferˆencia ´e v´alida em virtude do fato de que, para qualquer objeto,

x e y, se x = y, ent˜ao x tem qualquer propriedade que y tem, e vice-versa. Um e um mesmo objeto tem a propriedade em quest˜ao, ou n˜ao tem. Isto ´

e geralmente chamado de Lei de Leibniz, aquele Leibniz que encontramos no Cap´ıtulo 6. Em uma aplica¸c˜ao da Lei de Leibniz, uma premissa ´e um enunciado de identidade, digamos m = n; a segunda premissa ´e uma frase contendo um dos nomes que flanqueiam o sinal da identidade, digamos m; e a conclus˜ao ´e obtida substituindo m por n nela.

A Lei de Leibniz ´e uma lei muito importante, e tem muitas aplica¸c˜oes n˜ao problem´aticas. Por exemplo, a ´algebra nos assegura que (x + y)(x−y) =

x2− y2. Portanto, se vocˆe est´a solucionando um problema, e estabelece que, digamos, x2 − y2 = 3, vocˆe pode aplicar a Lei de Leibniz para inferir que

(x+y)(x−y) = 3. Mas, a sua simplicidade enganadora esconde uma multid˜ao de problemas. Em particular, parece haver muitos exemplos contr´arios a ela. Considere, por exemplo, a inferˆencia a seguir:

John ´e a pessoa que venceu a corrida.

Mary sabe que a pessoa que venceu a corrida ganhou um prˆemio. Portanto, Mary sabe que John ganhou um prˆemio.

Isto parece uma aplica¸c˜ao da Lei de Leibniz dado que a conclus˜ao ´e obtida substituindo ‘a pessoa que ganhou a corrida’ por ‘John’ na segunda premissa. Ainda assim, est´a claro que a premissa poderia muito bem ser verdadeira sem que a conclus˜ao fosse verdadeira: Mary pode n˜ao saber que John ´e a pessoa que ganhou a corrida. Isto ´e uma viola¸c˜ao da Lei de Leibniz? N˜ao necessariamente. A lei diz que se x = y, ent˜ao qualquer propriedade de

x ´e uma propriedade de y. Agora, a condi¸c˜ao ‘Mary sabe que x ganhou um prˆemio’ expressa uma propriedade de x? Na verdade n˜ao: ao contr´ario

pareceria expressar uma propriedade de Mary. Se Mary de repente deixasse de existir, isto n˜ao mudaria x de forma alguma (A l´ogica das frases tais como ‘sabe que’ est´a ainda bem sub judice em l´ogica.)

Um outro tipo de problema ´e o seguinte. Eis aqui uma estrada; ela ´e uma estrada asfaltada; chame-a de t. E eis aqui uma estrada; ´e uma estrada de terra batida; chame-a de d. Mas, as duas estradas s˜ao a mesma estrada,

t = d. ´E que o asfalto desaparece no final da estrada. Portanto, a Lei de Leibniz nos diz que t ´e uma estrada de terra, e que d ´e uma estrada asfaltada - que elas n˜ao s˜ao. O que aconteceu de errado aqui? N˜ao podemos dizer que ser de terra ou asfaltada n˜ao s˜ao realmente propriedades da estrada. Elas certamente s˜ao. O que deu errado (sustent´avel) ´e que: n˜ao estamos sendo suficientemente precisos nas nossas especifica¸c˜oes de propriedades. As propriedades relevantes s˜ao ser asfaltada em tal e tal ponto, e ser de terra

em tal e tal ponto. Desde que t e d s˜ao a mesma estrada, ambas possuem as mesmas propriedades, e n˜ao temos uma viola¸c˜ao da lei de Leibniz.

At´e agora tudo bem. Estes problemas s˜ao relativamente f´aceis. Agora vamos ver um que n˜ao ´e. E aqui, o tempo volta a ser a quest˜ao. Para explicar o que ´e o problema, ser´a ´util empregar os operadores de tempo do ´ultimo cap´ıtulo, e especificamente, G (“sempre ser´a o caso que”). Seja x qualquer coisa que vocˆe queira, uma ´arvore, uma pessoa; e considere o enunciado

x = x. Isto diz que x tem a propriedade de ser igual a x - que ´e obviamente verdadeira: ela ´e parte do pr´oprio significado da identidade. E isto ´e assim, independentemente do tempo. ´E verdadeiro agora, verdadeiro em todos os tempos futuros e em todos os tempos passados. Em particular, Gx = x ´e verdadeiro. Agora, aqui est´a uma instˆancia da Lei de Leibniz:

x = y Gx = x Gx = y

(N˜ao ligue para o fato de que substitu´ımos y somente para uma das ocorrˆen- cias de x na segunda premissa. Tais aplica¸c˜oes da Lei de Leibniz fazem perfeitamente sentido. Apenas considere: “John ´e a pessoa que ganhou a corrida; John vˆe John; assim, John vˆe a pessoa que ganhou a corrida.”) O que a inferˆencia mostra ´e que se x ´e idˆentico to y, e x tem a propriedade de ser idˆentico a x em todos os tempos futuros, ent˜ao y tamb´em tem. E dado que a primeira premissa ´e verdadeira, como acabamos de notar, conclui-se que se duas coisas s˜ao idˆenticas, elas sempre ser˜ao idˆenticas.

E o que dizer disto? Simplesmente, n˜ao parece ser sempre verdadeiro. Por exemplo, considere uma ameba. Amebas s˜ao criaturas unicelulares en- contradas na ´agua que se multiplicam por mitose: uma ameba se dividir´a ao meio para se tornar duas amebas. Agora, tome alguma ameba A, que se divide e torna-se duas amebas, B e C. Antes da divis˜ao, ambas B e C eram

A. Portanto antes da divis˜ao, B = C. Mas depois da divis˜ao, B e C s˜ao amebas distintas, ¬B = C. Portanto, se duas coisas s˜ao a mesma, n˜ao segue necessariamente que elas sempre ser˜ao a mesma.

N˜ao podemos sair deste problema da mesma forma que sa´ımos do pro- blema anterior. A propriedade de ser idˆentico a x em todos os tempos futuros ´

e certamente uma propriedade de x. E n˜ao parece ser o caso que a proprie- dade ´e insuficientemente refinada. Parece n˜ao haver uma forma de torn´a-la mais precisa a fim de evitar o problema.

O que mais algu´em poderia dizer? Um pensamento natural ´e este. Antes da divis˜ao, B n˜ao era A: ele era somente parte de A. Mas, B ´e uma ameba, e A ´e uma criatura unicelular: ela n˜ao tem partes que s˜ao amebas. Portanto,

B n˜ao pode ser parte de A.

Mais radicalmente, algu´em pode sugerir que B e C na verdade n˜ao exis- tiam antes da divis˜ao, ent˜ao eles n˜ao eram A antes da divis˜ao. Portanto, n˜ao ´e o caso que B = C antes da divis˜ao. Mas, isto parece estar errado tamb´em. B n˜ao ´e uma nova ameba; ´e simplesmente A, embora algumas de suas propriedades tenham mudado. Se isto n˜ao est´a claro, apenas imagine que C iria morrer na divis˜ao. Neste caso, n˜ao ter´ıamos nenhuma hesita¸c˜ao em dizer que B ´e A. (Seria como uma cobra trocando sua pele.) Agora, a identidade de algo n˜ao pode ser afetada pelo fato que possa haver outras coisas ao redor. Portanto A ´e B, assim como, A ´e C.

´

E claro, algu´em pode insistir que exatamente porque A toma novas pro- priedades, ele ´e, estritamente falando, um novo objeto; n˜ao meramente um velho objeto com novas propriedades. Portanto, B n˜ao ´e realmente A. Do mesmo modo que C. Mas agora, estamos de volta com o problema com o qual come¸camos este cap´ıtulo.

Ideias centrais do cap´ıtulo

• m = n ´e verdadeiro extamente se os nomes m e n referem-se ao mesmo

objeto.

• Se dois objetos s˜ao os mesmos, qualquer propriedade de um ´e proprie-

dade do outro (Lei de Leibniz).

Problema

Simbolize a seguinte inferˆencia e avalie a sua validade. Pat ´e uma mulher, e a pessoa que limpou a janela n˜ao ´e uma mulher; assim, Pat n˜ao ´e a pessoa que limpou a janela.

Cap´ıtulo 10

Vagueza: Como vocˆe para de

escorregar em uma rampa

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