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Ángel Rama e os saberes do exílio

1.6 Escrever sobre ruínas

Como ensina o escritor espanhol Enrique Vila-Matas, “escrever é corrigir a vida, é a única coisa que nos protege das feridas e dos golpes da vida.”.226 Nesse sentido, um diário que relata as grandes dificuldades vividas no exílio se coloca como uma instância de releitura e aprendizagem quanto aos intensos debates ocorridos e ainda latentes. E, é importante que se diga, Rama trabalhou pela integridade de um campo intelectual mesmo sabendo que nele se abrigavam muitas divergências conceituais e programáticas. Isso porque o campo intelectual latinoamericano foi justamente o seu espaço público, locus de sua intervenção política e pelo qual lutou inapelavelmente durante toda a sua vida.

Durante o exílio na Venezuela, inadaptado e acossado pública e intimamente pelo meio cultural venezuelano, Rama, em sua intensa atividade intelectual solitária, reagia sob o reordenamento de sua vivência psíquica dos fatos que o constrangiam. Nessa introspecção, ele era assombrado por imagens que convalidavam “falsos intelectuais” cuja xenofobia aparecia como a responsável direta pelos seus delírios persecutórios que o tomavam numa acedia torturante:

En la vigilia es fácil defenderse de la tentación del “delirio de persecuciones” (salvo si se habla con otro extranjero, pues fatalmente la conversación recae en la xenofobia) apelando a razonamientos sociológicos, pero en el estado de insomnio la voluntad que domina la vida psíquica se contrae y una y otra vez la mente obliga a proyectar la misma escena, corrigiéndola, perfeccionándola, sofriéndola

225

LAFER, Celso. “Hannah Arendt: vida e obra” (Posfácio). In: ARENDT, H. Homens em tempos

sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 234.

226

VILA-MATAS, Enrique. Disponível em:

también, aunque por lo común son imaginaciones compensatorias, en las que se triunfa del enemigo, se lo confunde y vence. A lo largo de esas horas agotadoras, revolviéndome en la cama, tratando de no despertar a Marta se reviven los padecimientos, las humillaciones y se construyen, como en los sueños adolescentes de la vigilia, historias de triunfos y heroísmos, flamígeras acciones en que el enemigo es derrotado ante un necesario público que convalida y certifica el triunfo, prestándole al combatiente un cálido apoyo, como un bálsamo a sus heridas.227

Sob a agitação psíquica de Rama se escondia uma rotina corrosiva para ele. No cultivo íntimo de um exílio de si mesmo como intelectual público, o sentido profundo dessa condição sobrevinha com a impossibilidade de mover-se como em seu próprio campo. O espaço literário era, nesse sentido, o seu principal refúgio, sobretudo, com a intensificação de sua correspondência. Sabe-se que Rama manteve um vasto epistolário com diversas personalidades que incluem escritores, editores, críticos, investigadores, jornalistas etc.:

El día pasa en idas y venidas, en gestiones, trámites, cartas (cuántas escribo!), conversaciones de oficina, órdenes, solución de problemas minúsculos: la vida se hace superficial, enajenada, y se actúa como una simple polea de una maquinaria que se despersonaliza. Y uno es nada, aunque siga pareciendo vivo.

El retorno es lento, despacioso y entreverado, como volviendo del sueño pesadillesco y se entra a un prado por el que uno adelanta tambaleándose, tímido para dar pasos en esta vastedad luminosa (y riesgosa).228

Chamo a atenção para duas questões interessantes relativas a essa passagem. A primeira, é que grande parte do impulso dessa vasta correspondência era utilizada para fazer uma espécie de crônica dos trabalhos realizados, dos trabalhos em curso e daqueles que ainda estavam por serem feitos. A segunda nos remete ao que se pode entender como a questão da “corrosão do caráter”. Analisando como as recentes transformações no mundo do trabalho (ocorridas a partir da segunda metade do século XX) incidem sobre a personalidade humana, o sociólogo Richard Sennett argumenta que a própria noção de caráter corre um sério risco de sucumbir. Sennett concebe o caráter como sendo “... o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros (...) são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos

227

RAMA, Á., Op. cit., 2001, p. 79. 228

que os outros nos valorizem.”229 Quando a valorização e o reconhecimento não vêm, surge o difícil enfrentamento com a angustiante sensação de fracasso ou uma “persistente sensación de ser malquerido”, como constatava Rama após diversas tentativas vãs de manter suas amizades uruguaias.

Los amigos perdidos del Uruguay, desde los más viejos (...) que jamás han contestado mis cartas ni acusan recibo de los pequeños regalos con que llamo a su puerta año trás año. Las cartas me han permitido expresar más frecuentemente el afecto de lo que puedo hacerlo cara a cara, enredado en la timidez, la torpeza, el pánico de exponerme indefenso, sin embargo no han sido más eficaces. Sirvieram para hacerme sufrir, por eso pienso en que también aqui, como em otros aspectos de mi vida, se mueve una acre censura de mí mismo. Yo también soy la llaga y el verdugo.230

De alguma forma, essa situação vivida por Rama reconhece-se no que afirma Franz Kafka: “a facilidade de escrever cartas deve ter trazido ao mundo uma terrível perturbação das almas, porque é uma relação com fantasmas; e não só com o fantasma do destinatário, mas também com o próprio.”.231

Em outra anotação que transcrevo a seguir, por exemplo, se faz perceptível uma desconfiança ou estranheza de Rama para consigo mesmo. Por outro lado, é interessante observar que, nesta nota, Rama esboçava as suas preocupações quanto ao que daria sustentação ao princípio de moralidade a partir do exame que fazia de si mesmo:

Sé tu mismo. Y en el bello cuento jasídico que contaba Rubén, lo que Dios reprochaba suavemente al rabino que había querido ser como tantos otros modelos de rabinos, era eso: Yo quería que tú fueras tú mismo. Lo difícil: porque retrotrae el tema a la pregunta clásica, la de conocerse previamente a sí mismo. Y a falta de esto, seguir los más poderosos impulsos interiores. Entre el “yo” y el “super ego” puestos en pugna, creo haber seguido a éste y no al primero: excesiva fe o respeto de las coordenadas sociales que rigen los valores? O por lo mismo desconfianza, temor o vergüenza de lo que el primero pedía? Por el “super ego” he ido a la defensa de lo social, y cuando ella pareció demasiado resecante para la vida interior, he pretendido volverme a ésta, recuperar mi yo, vivo, confusamente, entre una

229

SENNETT, Richard, A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no novo

capitalismo. Tradução de Marcos Santarrita. 4ª edição. Rio de Haneiro: Record, 2000, p. 10.

230

RAMA, Á., Op. cit., 2001, p.128-129. 231

KAFKA, Franz. Cartas a Milena. Tradução de Cláudio Figueiredo, Rubens Figueiredo e Samuel Titan Jr. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, p.78.

niebla. No sé si en este deambular insatisfecho y nervioso, no he perdido a ambos y me he perdido.232

Daí se deduz, claramente, que o pensamento de Freud é uma referência obrigatória para acompanhar o estado moral do escritor e não somente as passagens e os acontecimentos externos sobre os quais ele se debruça. Fundamentalmente, porque ele questionava a regulação que lhe impunha a realidade do exílio, ainda mais torturante porque gregária e hostil. Segundo Freud:

Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapam a nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas de restringir os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de „pobreza psicológica dos grupos‟. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação de um grupo.233

A estética moral de Rama se radicalizava na medida em que desmistificava o principio de realidade, ou seja, reagia contra os comportamentos e as regulações sociais com as quais se via obrigado a lidar e mostrava aspectos subterrâneos de uma consciência cada vez mais convencida dos limites da razão e do conhecimento.

(Detrás de los comportamientos de escritores, por racionales y abstractos que parezcan, siempre está acechando el mundo de El Conde de Monte Cristo y todos son – somos – Dantes em alguno de sus movimientos: perseguido, traicionado, operativo, triunfante, revanchista).234

232

RAMA, Á.,Op. cit., 2001, p.48. 233

FREUD, S. O mal estar na civilização, cap. 5. In:

>http://recantodasletras.uol.com.br/resenhasdelivros/86603< Acesso em 20/03/2009. 234

Sabemos que um diário tanto pode servir para levar adiante a tarefa do autoconhecimento quanto para acompanhar as contínuas transformações de uma vida que avança na indeterminação. Entendo que o Diario de Rama passa por ambas as vias e, por isso, através dele nos deparamos com enganos, daqueles que revelam o que há de desconhecido no ser, sem nunca podermos decifrá-lo: “É o que contenho de desconhecido a mim mesmo que me faz ser eu mesmo. É o que eu tenho de inábil, de incerto que realmente constitui meu ser.”.235 Em outras palavras, é provável que um diário possa combinar toda sorte de alegorias de si, todos os heroísmos, fracassos e dúvidas com o prazer insólito do sentimento de tornar-se um desconhecido, um inexistente para si mesmo.

A esse propósito, Kafka anota em 16 de dezembro de 1910:

Não abandonarei mais este diário. É aqui que se faz preciso que eu me agarre, porquanto apenas aqui eu o posso fazer.

De boa vontade darei a explicação do sentimento de alegria que de quando em quando eu sinto existir dentro de mim, como exatamente agora. É realmente qualquer coisa de espumoso que, por sorvos leves e agradáveis, me lota completamente e me dá a sensação de capacidades da não-existência das quais posso a qualquer instante, como neste momento mesmo, convencer-me com certeza absoluta. 236

A compulsão pelo indefinido e pelo prazer que proporciona um diário mostra a própria indefinição como uma constante também para Rama: “Quisiera terminar esta libreta y salir de este diario intermitente. Son pujos repentinos entre largos olvido.”.237 Talvez não seja arriscado afirmar que tal prazer pela indefinição substituiu, com vantagens para o escritor, o princípio de realidade com o qual lutava e, muitas vezes, perdia.

É impossível receber a “verdade” sobre nós mesmos. Quando a sentimos se formar (é uma impressão), formamos ao mesmo tempo um outro eu insólito... do qual nos orgulhamos – do qual sentimos inveja... (É um cúmulo da política interna.)

Entre o Eu claro e o Eu turvo; entre o Eu justo e o Eu culpado, existem velhos ódios e velhos acertos, velhas renúncias e velhas súplicas.238

235

VALÉRY, P., Op. cit. 1997, p. 59-60. 236

KAFKA, Franz. Diários. Tradução de Torrieri Guimarães. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000, pp. 28-29. 237

RAMA, Á., Op. cit., 2001, p.117. 238

Por certo, pode-se observar que, por tais vias de pensamento, Rama também se coloca em diálogo com a herança nietzschiana e socrática.

Um estrangeiro, que entendia de rostos, disse certa vez na cara de Sócrates, ao passar por Atenas, que ele era um monstro e escondia todos os vícios e desejos ruins em si. E Sócrates respondeu simplesmente: “Vós me conheceis, meu Senhor! 239

No entanto, saber ou não saber o que se carrega dentro de si não é solução para tudo. Ainda assim, na visão de Sócrates, é necessário ter pleno domínio de si mesmo:

Mas Sócrates desvendou ainda mais. Ele olhou por detrás de seus atenienses nobres; ele compreendeu que seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era nenhuma exceção. O mesmo tipo de degenerescência já se preparava em silêncio por toda parte. A velha Atenas caminhava para o fim. E Sócrates entendeu que todo o mundo tinha necessidade dele: de sua mediação, de sua cura, de seu artifício pessoal de autoconservação... Por toda parte os instintos estavam em anarquia; por toda parte estava-se cinco passos além do excesso (...)Quando aquele fisionomista revelou a Sócrates quem ele era, uma caverna para todos os piores desejos, o grande irônico ainda deixou escapar uma palavra, que deu a chave para compreende-lo. “Isto é verdade, disse ele, mas me tornei senhor sobre todos estes desejos. 240

Com efeito, a resposta socrática (e, porque não dizer, também a pergunta) reverbera nas anotações de Rama e, por vezes, ele parece usar o Diario como uma espécie de oráculo com o objetivo de desentranhar o oculto ou o latente. Seguindo a tradição de Delfos, o Diario se transformaria (simbolicamente) numa espécie de “umbigo do mundo” para o escritor. Por um lado, o Uruguai já não significava mais um centro estável que o faria exprimir-se a partir dele, e, por outro, a Venezuela não o deixava esquecer-se de uma sabedoria antiga, mas persistente: o quanto é difícil para um estrangeiro deixar realmente de sê-lo para os outros.

Ora, sabemos desde a cultura grega que a própria imagem do deus Apolo (aquele que possui domínio sobre a sabedoria) carrega em si um elemento de crueldade. Esse mesmo deus que é conhecedor do futuro do mundo e dos homens – e, precisamente, por isso os atrai -, ao se manifestar, parece realizar um esforço no sentido de dificultar o acesso e o entendimento humano. O problema se inscreve, também, nas palavras de Heráclito: “O senhor, a quem pertence o oráculo que está em Delfos, não diz nem oculta,

239

NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos Ídolos ou como filosofar com o martelo. Tradução de Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 19.

240

mas acena.”.241

Na verdade, como já fiz notar, esse “aceno” funciona também como um estímulo à inteligência. Por isso, vale enfatizar a reflexão de Rama, já comentada no inicio deste capítulo:

Creo que me place escribir en esta libreta por la simple razón de que no tengo con quién hablar. Monologo los temas para los cuales no puedo conseguir un diálogo satisfactorio. Hace tiempo que mantengo comercio social, pero no intelectual como a mí me gusta y entusiasma.242

Tem-se, com tal reflexão, praticamente uma “receita” de trabalho solitário porque nessas palavras se mostram um ataque direto ao ambiente cultural da Venezuela. Mas, vale lembrar que, já em 1967, Guy Debord vaticinava: “A arte da conversa está morta, e logo estarão mortos quase todos os que sabem falar.”.243

241

COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Tradução de Frederico Carotti. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992, p. 12.

242

Cf. nota 75. RAMA, Á., Op. cit., 2001, p.87. 243

DEBORD, Guy. Sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. São Paulo: Contraponto, 1995, p. 27.