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“Dónde el error?”

3.3 O arco de Filoctetes

Proponho pensar um paralelo entre a existência precária de Rama e a lendária figura grega de Filoctetes.442 De certa forma, o exílio de Rama guarda alguma semelhança com a história do guerreiro que fora completamente abandonado numa ilha.

Mais uma vez, Gide vem guiar a minha leitura. Resgato, aqui, uma fala do personagem Filoctetes adaptado para uma de suas peças teatrais.443 O guerreiro se encontra respondendo à perplexidade de Ulisses sobre o seu longo convívio com a dor e o silêncio:

441

RAMA, Á. Op. cit., 2001, p. 37. 442

Filoctetes – vencedor de Páris - fora um dos pretendentes de Helena. Como narra a Ilíada, na segunda expedição contra Tróia, Filoctetes, filho de Péias, comandou sete navios com cinqüenta arqueiros que rumavam para Tróia. Mas quando os gregos fizeram uma escala na ilha de Tênedos uma serpente mordeu um dos pés de Filoctetes durante a realização de um sacrifício ao deus Apolo. No local da picada apareceu uma ferida que exalava um cheiro tão desagradável e dores horríveis que Ulisses convenceu os demais chefes gregos a abandonar Filoctetes na ilha de Lemnos. Lá permaneceu por dez anos. O castigo (a ferida) deveu-se à quebra de uma promessa que Filoctetes havia feito ao amigo Hércules. Foi Filoctetes quem acendeu o fogo na pira que consumiu Hércules no monte Etna. Por esse favor ele recebeu do próprio Hércules o seu arco e as suas flechas, com a condição de não revelar a ninguém o local de sua morte. Mas Filoctetes acabou cedendo. Pressionado por muitas perguntas Filoctetes subiu ao monte Etna e mesmo sem falar nada ele bateu com o pé no lugar onde fora acesa a pira. Sófocles escreveu sobre Filotectetes, fazendo dele o protagonista de uma tragédia que veio compor – junto com Ajax e Electra - o ciclo troiano. Interessava a Sófocles o conflito de um indivíduo com a sociedade. É esse o motor da peça: um indivíduo de grande valor pessoal, porém vivendo uma existência precária: compulsivamente só e sem amigos. 443

“Para André Gide, em seu Philoctète, a obstinação do eremita inválido assume um caráter quase místico. Ao persistir em sua vida lúgebre e solitária, o Filoctetes de Gide conquista o amor de um Neoptólemo mais pueril e até angaria o respeito de um Odisseu menos severo. Ele pratica uma espécie de virtude superior não apenas à virtude deste último, com seu código de obediência às demandas do grupo, mas também à do primeiro, que se esquece de suas obrigações patrióticas em favor de um afeto pessoal”. WILSON, Edmund. “Filoctetes: a ferida e o arco”. In: Filoctetes. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 207.

Já te disse; não me compreendeste? Exprimo-me melhor desde que não falo mais aos homens. Minha ocupação, entre a caça e o sono, é o pensamento. Como, na solidão, nada perturba, nem mesmo a dor, minhas idéias, elas tomaram um curso sutil que às vezes eu próprio tenho dificuldade em seguir. Compreendi mais segredos sobre a vida do que me revelaram todos os meus mestres. Ocupei-me ainda em analisar as minhas dores, e quanto mais bela a frase me saía, mais me servia de consolo; às vezes, chegava a esquecer a tristeza pelo fato de dizê-la.444

A personagem de Gide se atualiza de maneira surpreendente. Segundo o crítico Edmund Wilson, o Filoctetes de Gide “é, de fato, um homem de letras: ao mesmo tempo um artista e um moralista, cujo gênio se torna mais puro e profundo em razão de sua proscrição e isolamento.”.445

No entanto, as fraquezas e inseguranças vividas por Rama não podem ser explicadas somente através da análise das circunstâncias adversas e das pressões externas. Há que se considerar um sentimento íntimo com o qual, confessou, nunca soube lidar satisfatoriamente. Do mesmo modo que no famoso mito da espada de Dâmocles,446 Rama era consciente do poder e do prestígio que detinha e da liderança que exercia junto à intelectualidade latino-americana. Contudo, mais do que nunca, pesava sobre ele a precariedade e o risco que o exercício desse poder significava.

É claro que não podemos nos esquecer que esse estado de espírito foi solenemente compartilhado com a sua companheira: “Nos pasamos prometiéndonos paz e inmovilidad y estamos siempre en la agitación y la angustia.”.447

A anotação, simplesmente informada como “Sábado 15”, é de 1980; portanto, quando o casal já estava vivendo nos EUA. Aliás, essa espécie de promessa sempre inalcançada, talvez possa ser considerada uma tônica no relacionamento do casal. Certamente, esse era um problema

444

GIDE, André. A volta do filho pródigo. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Nova Fronteira, 1984, p. 100.

445

WILSON, E., Op. cit., 2009, p. 207. 446

RAMA, Á., Op. cit., 2001, p.122. Com muitos detalhes, Rama revela ao longo do Diario os padecimentos sofridos com os seus problemas dentários. Após uma passagem pouco satisfatória pela APUC (Associação dos Professores da Universidade Central) em Caracas ele se decide seguir o trabalho com um dentista particular. “Efectivamente deberé hacerlo: ao irme me dijo que tenía un foco infeccioso en la base de un diente. Desde El año 69 en que tuve la endocarditis y me sacaron cinco piezas por una piorrea generalizada, esta es mi espada de Damocles. No sufro tanto como vivo en la aprensión y en la depresión por la incesante consulta de dentistas. (...) Las miserias de la vejez, algo adelantadas quizás, pero suficientes para provocar la depressión y la inseguridad para el futuro. A Marta le molesta mucho que diga que los médicos y los hospitales están inscriptos en mi futuro”. No mito o tirano Dionísio, rei de Siracusa no século IV A.C., costumava receber do cortesão e amigo Dâmocles insinuações quanto à felicidade que por ventura sentiria se ocupasse o lugar do rei. Dionísio resolve então promover a experiência para que Dâmocles possa assim viver a sua vida por um dia apenas. Oferece um suntuoso jantar que Dâmocles aproveita até perceber que existia uma espada pendurada no teto e dirigida a cabeça de quem estivesse sentado ao trono. Faço aqui um uso mais abrangente do possível significado do mito grego, entendo ser essa uma mensagem cifrada de Rama. Na minha interpretação ele seria simultaneamente os dois personagens, Dionísio e Dâmocles. 447

que Rama não queria perder de vista. Na realidade, ele sabia o quanto Traba poderia ser impaciente e insegura com as situações desfavoráveis. Nessa estadia na Venezuela, Rama possuía uma vantagem em relação à Traba: ele era mais conhecido e “reconhecido” do que ela nos meios intelectuais. Aliás, essa situação seria análoga àquela vivida por eles, anos antes, no Uruguai. As dificuldades mais particulares de Traba aparecem antecipadas logo no primeiro mês de iniciado o Diario:

No está bien Marta. Por ahora atribuye a sus conflictos con el medio y a la dificuldad para conseguir trabajo, un desacomodo que me temo tenga causas más profundas y para mí inexplicables todavía.

Inseguridad. Esa es la palabra que define, hoy, vida y conciencia. Pero no puede responder a los problemas actuales que, por difíciles que sean, permiten un tratamiento adulto. Sin duda estos problemas remueven raíces ocultas y lejanas de mi vida, como si las hicieran andar, concitan la inseguridad adolescente y, más lejos aún, una de la infancia que tercamente siempre ha estado y está resguardada en las sombras. 448

Antes de tudo, cabe dizer que o método de análise que Rama empregara para compreender sua companheira praticamente não se alteraria quando ele procedera ao seu próprio autoexame. De resto, tudo o que se refere ao afastamento de Caracas e às primeiras aproximações aos EUA são relevantes para os meus propósitos porque, além de ser um divisor de águas na estrutura do Diario - pois Rama faz uma última anotação em novembro de 1978 quando ainda estava em Caracas e, depois de vários meses, reinicia em 01 de fevereiro de 1980, em Washington –, a passagem permitiu que Rama ingressasse num outro patamar de reconhecimento profissional. No entanto, gostaria de destacar a intuição quase premonitória de Rama em relação ao que – sobretudo em termos burocráticos – iria logo em seguida encontrar nessa nova trajetória:

Debo empezar la gestión de visa americana, que siempre me provoca un vacío en el estómago y ganas de vomitar. Armarse de paciencia, levantarse a las 5 AM, ir a hacer dos horas de cola en la calle y llegar a la ventanilla para oír el dictamen impasible. Maldita sea! 449

Que não se pense que, depois disso, Rama não previsse superar essa situação de inquietude e solidão em que se encontrava na Venezuela. Em 23 de setembro de 1978, a situação era a seguinte: desde Barcelona, Traba tentava refazer-se dos golpes sofridos em

448

RAMA, Á., Op. cit., 2001, p. 44. 449

Caracas, ao passo que Rama, nesse mesmo tempo, constatava e previa: “El diario ha venido, de golpe, como un confesionario: por lo tanto reflejará este estado de soledad y de acosamiento, más que la totalidad de mi vida. Y seguramente no será por mucho tiempo.”.450

Mas, aqui uma questão se impõe: o que impede que o Diario não fosse mais utilizado como um confessionário? Ou, ainda, porque seria tão importante evitar avaliar um “eu” parcelado? Obviamente, Rama possuía alguns segredos íntimos que não queria revelar, inconfessáveis do ponto de vista de um diário que, provavelmente, viria a público. Embora, talvez, isso fosse uma prova de que ele estivesse cedendo à “tentação” de uma mudança radical na vida com a perspectiva de residência dos EUA. Ou, desde outro ângulo, como num ato de contenção intelectual, Rama simplesmente estaria querendo não contradizer aquilo que ele estabeleceu na abertura do Diario: “(...) ni público ni íntimo.”.

Talvez, nenhum gênero literário combine mais com a prática surrealista da montagem451 do que um diário visto a partir de sua abertura e incompletude constitutiva. Com isso, é a própria idéia de “obra” que se decompõe juntamente com as suas pretensões de fechamento ou acabamento. Freud instou que a memória e a escrita significavam um ato de esforço. No caso de um diário, a pergunta poderia ser: a escrita seria um esforço de eternizar – como num sacrifício - uma vida agonizante? Ludwig Klages452 apresentou na sociedade psicanalítica de Viena uma instigante conferência intitulada Da psicologia da escritura. Entre os seus ouvintes estava o doutor Sigmund Freud. A intervenção de Freud instaurou uma polêmica com Klages porquanto questionava se a escritura - enquanto um movimento de expressão - seria uma manifestação da personalidade como um todo ou se resultaria apenas de uma parte dela. E, se a conclusão apontar para a parte continuava Freud, de qual parte se trata? Ou, em outras palavras, de que lugar “agimos” quando escrevemos?

Nesse caso, então, estaríamos lidando com certa ingenuidade de Rama ao crer que, através da escrita, poderia mostrar a totalidade de sua vida. Enrique Vila-Matas, em um de seus delírios (literários) criativos, nos dá algumas pistas para refletir o dilema da escrita como ocultação do sujeito:

Coincidências e causalidades. Pensando nelas, agora me dou conta de que Sergio Pitol escreveu, em 1994, um relato intitulado O obscuro

450

RAMA, Á., Op. cit., 2001, p. 114. 451

Como apreciava experimentar Walter Benjamin em seus escritos mais autobiográficos. 452

irmão gêmeo, e que abria com uma citação de Justo Navarro: Ser escritor é converter-se num estranho, num estrangeiro: é preciso começar a traduzir-se a si mesmo. Escrever é um caso de „impersonation‟, de suplantação da personalidade. Escrever é fazer-se passar por outro.453

Na verdade, o relato citado é uma referência direta a Faulkner. O escritor dizia que um romance “é a vida secreta de um escritor, o obscuro irmão gêmeo de um homem.”.454

Mas, obviamente, Faulkner tinha em mente os romances e não os diários. De qualquer forma, um diário não deixa de ser um documento literário e as vozes ouvidas por um romancista também são as mesmas que chegam a um diarista. Portanto, a “loucura” ou a imaginação de prontidão atinge a ambos sem distinções substanciais. A questão me faz pensar outra vez nos “sueños de la vigilia” compartilhados entre Rama e Traba:

Acho que todos os seres humanos entram na existência sem saber distinguir direito entre o real e o que é sonhado; de fato, a vida infantil é em boa parte imaginária. O processo de socialização, o que chamamos de educar, ou amadurecer, ou crescer, consiste precisamente em podar as florescências fantasiosas, fechar as portas do delírio, amputar nossa capacidade de sonhar acordados; e ai de quem não souber selar essa fissura com o outro lado, porque provavelmente será considerado um pobre doido. 455

Creio que Rama não deixou de perceber as ambivalências e ambigüidades que giram em torno das relações de amizades. No entanto, esse foi um campo de ilusões e de erros, tanto para ele quanto para Traba: “(...) cuando el viento sopla en contra, se esfuman los amigos y los apoyos, no hay una voz para defender.”.456

Um exemplo ilustrativo dessa experiência – pela qual a relação de amizade permanece misturada a um sentimento adolescente em torno dessa mesma relação – pode ser encontrado particularmente no novo círculo de amizades em que o casal ingressara em território venezuelano:

Que otra razón para que retome este diario olvidado que el sentirme

herido, sufriente y apenado? Podría preguntarse en qué planeta estoy,

con qué gente debo tratar, quiénes son y qué móviles mueven sus

453

VILA-MATAS, Enrique. O mal de Montano. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 16.

454

Apud: MONTERO, Rosa. A louca da casa. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 14.

455

Id., Ibid., p. 14. 456

conductas. En estos días he renunciado a la Escuela de Letras anunciando que no soy candidato a la reelección en diciembre y he percibido la satisfacción de todos, esos que se titulan mis amigos y a

quienes yo he tratado como tales: el decano Rafael Di Prisco, su

mujer, Vilma Vargas, el director de la Escuela Luis Navarrete. Cómo pense que eran mis amigos? Son diez años de vida en común pero ahora, llegados al poder, han dejado de ser amigos, son simplemente funcionarios en su juego de intereses y yo les molesto. Es como un

dolor juvenil, el del malquerido, el que más me toca. He resuelto irme

y esperaba que me dijeran “Ángel, no nos dejes! Te necesitamos! Tu eres uno de los nuestros”. Otra vez me engañaba – esa sensibilidad de adolescente puro y fervoroso! – pues ellos están en su juego dentro del cual yo no cuento. 457 (Grifos meus)

Essa passagem contém importantes revelações. Rama acusa um golpe forte ao ponto de desencadear uma severa autocrítica. Sobretudo, porque ele se vê como um reincidente, como alguém que ainda não aprendeu as lições básicas. Por outro lado, uma mudança significativa se avizinhava: se um dia Rama chegou a pensar na amizade como uma espécie de instituição,458 agora ele passava a ter a certeza de que ela deveria, antes, constituir-se numa eleição. Entretanto, isso não era propriamente uma solução para os seus problemas, porque, mesmo em suas amizades “eleitas”, ele acabava em algum momento se frustrando na medida em que acreditava ingenuamente na “boa fé” das pessoas.

No dia 1 de fevereiro de 1980, Rama (re)iniciava um novo caderno de seu

Diario: “Ignoro por qué esta anotación, que había previsto para hace seis meses, aparece

repentinamente hoy.”.459

Desse momento em diante,460 ele se comprometeria com uma postura diferente: revelava o que, até então, fora o Diario e enuncia como seriam as

457

RAMA, Á., Op. cit., 2001, p. 113. 458

Rama pensava que as amizades poderiam encontrar no campo ideológico das instituições (revistas, grupos de trabalho, universidades, projetos editoriais etc.) um meio propício para se consolidarem. Entretanto, ele vê a corrupção desse campo que se divide em grupos menores e sectários, assumindo inclusive contornos xenófobos. “Los viejos resortes de la solidariedad grupal funcionan. Y también, lo que es más grave, una cierta complicidad tácita, con las posiciones xenófobas.”. Id., Ibid., p. 121.

459

Id., Ibid., p.123. 460

Em fins dos anos setenta, a permanência de Rama na Venezuela se tornava insustentável. Por outro lado, os convites de trabalho nos EUA se tornavam cada vez mais tentadores. Rama sentia-se atraído pelo grau de especialização alcançado pelos intelectuais norte-americanos. Contudo, quanto mais ele se aproximava dos EUA, mais temia entrar na mira da sua própria crítica mordaz aos intelectuais e a cultura norte-americana. A maioria desses intelectuais – pensava Rama – incorria num grande desvio: se fechavam em horizontes com algumas variantes: universidades, campos disciplinares, guetos intelectuais etc. Podemos imaginar que a solução ideal para Rama seria uma sorte de combinação: o grau de especialização, as excelentes bibliotecas e as conexões acadêmicas dos norte-americanos com a concepção de “professor-intelectual- escritor” existente na América Latina. Vale destacar que Rama detecta nessa concepção a influência direta dos modelos franceses no continente latino-americano. Na verdade seria precisamente essa concepção que tornava possível um escape das diferenças esquemáticas que simplesmente marcam o antagonismo entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Segundo Rama, existia muito mais “una diferencia de culturas, no solo de niveles de especialización más complejos y desarrollados.”. Id., Ibid., p. 136.

próximas anotações. Chegamos aqui em um ponto chave em relação às suas expectativas com o Diario: segundo Rama, as anotações não seriam mais feitas a “golpes vallejianos.”.461 Isso significa que, até novembro de 1978 - data “aberta” de sua última anotação -, o Diario vinha se mantendo fielmente comprometido com o presente e suas determinações. A questão suscita a presença do primeiro livro publicado por Vallejo, Los

heraldos negros (1918), cujo poema do mesmo título dá mostras do que pode ser

considerada uma poesia arrebatada pela urgência das dores vivenciais:

Há golpes na vida, tão fortes... Eu não sei!

Golpes como do ódio de Deus; como se diante deles a ressaca de todo o sofrimento

se empoçasse na alma... Eu não sei!

São poucos; mas são... Abrem fendas escuras no rosto mais fero e no dorso mais forte. Serão talvez os potros de bárbaros átilas; ou os arautos negros que nos manda a Morte. São as quedas profundas dos Cristos da alma, de alguma fé adorável que o Destino blasfema. Esses golpes sangrentos são as crepitações de algum pão que se queima na boca do forno. E o homem... Pobre... pobre! Volta os olhos, como quando alguém bate as mãos por trás de nós; vira os olhos loucos, e tudo que foi vivido se empoça, como charco de culpa, no olhar. Há golpes na vida, tão fortes... Eu não sei! 462

Rama iria, assim, reclamar um espaço maior no Diario para escapar a esse destino “vallejiano” da sua escrita, isto é, um destino atado ao desassossego e a desolação. Assim, procurava atualizar o Diario com uma apreensão mais seletiva e esporádica da vida. Desejava recobrar a esperança na vida que pulsava naqueles momentos que ele julgava serem mais significativos. Portanto, Rama fez a opção por uma noção de subjetividade alternativa, menos contínua e coerente. Por isso, se pode dizer que pretendia relativizar os sentimentos de perda; não buscava mais identificar-se ou conciliar-se com a sua terra, subentendendo-se aqui o “pequeno” universo uruguaio. Nessa nova estratégia discursiva, Rama quis dissipar as suas culpas e conter o caos instalado à sua volta; conter um tipo de morte que não cessava. O seu principal objetivo

461

RAMA, À., Op. cit., 2001, p.123. 462

VALLEJO, Cesar. Poesia Completa. Tradução de Thiago de Mello. Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2005, p. 39.

era chegar às remoções, o que requeria uma compreensão dos seus sentimentos e de suas paixões. Para cumprir esse fim, ele projetava, de algum modo, mapear um conjunto de emoções.

Sob esse aspecto, o Diario assume uma busca declarada pelas “reavivaciones”, para as quais, vale trazer para a discussão a concepção de passado ativo sustentada pelo filósofo Paul Ricoeur:

Aunque, en efecto, los hechos son imborrables y no puede deshacerse