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Escrita de Si

No documento Uma canção para Ricardo (páginas 47-49)

1.3 FÁBULA

1.3.3. Escrita de Si

Coracini (2005, p. 44) trata da escrita de si na internet, e pensando sobre autores de blogs, diz ela que

falar de si a um leitor desconhecido – tão ou mais virtual do que o leitor virtual do texto-papel –, constitui um desabafo sem consequências éticas palpáveis e mensuráveis. Como toda escrita, esta também é remédio e veneno, verdade e mentira, história e ficção, que, lida ao acaso por um leitor “casual”, deixa marcas de si na virtualidade do não lugar (Augé, 1992), no espaço vazio das subjetividades que (re)colhem ao acaso e por acaso fragmentos de si no outro e no outro de si.

Essa ferramenta de comunicação é possibilidade, como direi mais adiante, de Antônio se manifestar e não correr risco de ser rechaçado, ou impedido pela filha, ou mesmo pelo neto. Ainda que o leitor pretendido por Antônio seja o neto Bernardo, há a possibilidade de outras pessoas assistirem, e também comentarem os vídeos. Antônio sabe que, tendo muitos leitores, há mais possibilidade de seus vídeos e textos chegarem ao neto.

Os vídeos, então, são como cartas ao neto. Começam com o caráter de passar por lugares onde Antônio gostaria de ter a presença do neto. Também são instrumento para mostrar um pouco sobre Antônio e, com o tempo, passam a trazer memória de vida. Essa cronologia dos vídeos e textos de Antônio não se apresenta cronologicamente no filme, e nem é facilmente identificável, visto que os vídeos são apresentados de forma aleatória em relação ao tempo em que foram criadas. No roteiro, a ordem de apresentação dos vídeos de Antônio está quase sempre relacionada com a escolha de resposta por parte de Bernardo. Ainda assim, o desenvolvimento da estrutura dos vídeos do avô poderá ser reconhecida no blog do Antônio, uma das manifestações transmídias que pretendo apresentar junto ao filme, quando de sua (possível) produção.

Michel Foucault (1992) diz que “a escrita de si atenua os perigos da solidão; dá o que se viu ou pensou a um olhar possível; o facto de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro...” (p. 130). Deste modo, os vídeos são forma de espantar a solidão. No caso de Antônio, essa é uma solidão qualitativa, pois tem uma companheira, mas não tem contato com sua primeira família (ex-mulher, e principalmente filha e neto). Ao falar de si, ainda que não

encontrasse, ou ainda estivesse à procura de, o interlocutor desejado, Antônio vive o momento de uma conversa.

Outra questão importante reside no fato de que, ainda que pense no interlocutor, no momento da realização dos vídeos, o neto não está presente. Essa ausência pode ser um alívio, em certas circunstâncias, pois isenta Antônio de receber, por exemplo, a mesma rejeição que recebeu ao tentar reaproximar-se da filha. Assim, Antônio pode dizer o que gostaria de dizer. Inclusive, explicar suas atitudes, confessar-se. De certo modo, essa possibilidade está relacionada com o pensamento de Foucault, quando este diz: “O constrangimento que a presença alheia exerce sobre a ordem da conduta, exercê-lo-á a escrita na ordem dos movimentos internos da alma; neste sentido, ela tem um papel muito próximo do da confissão ao diretor” (p. 131).

Mais adiante, em sua reflexão sobre a escrita de si, Foucault vai tratar especificamente da carta. Nesse ponto, encontro ainda maior relação com os textos audiovisuais criados por Antônio, já que estes são mensagens ao neto. Também fazem parte da criação do personagem Antônio alguns textos escritos que, ainda que não apareçam na realização audiovisual, poderão fazer parte de elementos de divulgação do provável filme (a que o roteiro cinematográfico se direciona) e seriam a parte escrita do blog criado por Antônio, para agrupar seus vídeos. Nesses textos, há algumas explicações sobre os vídeos, inclusive explicitando a intenção de Antônio, ao gravar determinada cena. Alguns textos poderão ser ideias para possíveis outros vídeos (ainda não gravados por Antônio), ou que deram origem aos vídeos já gravados. Nesse sentido, funcionam como cadernos de notas que, como afirma Foucault, “em si mesmos constituem exercícios de escrita pessoal, podem servir de matéria-prima para textos que se enviam aos outros. Em contrapartida a missiva (texto destinado aos outros) dá também lugar a exercício pessoal” (p. 145).

Se pensarmos em vídeos criados por um avô endereçados a seu neto, não será improvável imaginar que em algum deles haverá certo tipo de conselho, ou recomendação. Inclusive, um vídeo em que apareça certo conselho será o desencadeador da revelação da presença (ou ausência) da filha. Explico melhor: nos vídeos criados pelo avô, há apenas a intenção de comunicação com o neto. Mais adiante, na história, Bernardo também vai responder, em vídeo e pela internet, ao avô. Porém, em nenhum momento a filha de Antônio estará presente na fala ou intenções dos vídeos. Isso irá mudar no momento em que Antônio, ao dar recomendações ao seu neto, perceber que quem deveria fazer isso era Andréia. Foucault reflete sobre isso, ao dizer que a carta - enviada para auxiliar o seu correspondente, constitui, para o escritor, uma maneira de se treinar “tal como os soldados se exercitam no manejo das armas em tempo de paz” (p. 147) Assim, esses conselhos seriam a preparação para uma eventualidade semelhante. Nesse momento,

Antônio vai perceber que está pregando o diálogo entre mãe e filho, mas está esquecendo o diálogo entre ele (pai) e sua filha.

Seguindo nessa ideia, Foucault diz que, à medida em que progride, aquele que é orientado vai tornando-se cada vez mais capaz de, por seu turno, dar conselhos, consolar aquele que tomou a iniciativa de auxiliar. Análogo a isso, irá acontecer, nos momentos finais da história, a percepção pelo neto de a necessidade de uma comunicação completa entre os três personagens (ele, sua mãe e seu avô).

Ainda que separados no espaço, e de certa forma, no tempo, esses personagens estão se comunicando. Foucault afirma que

escrever é pois „mostrar-se‟, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. E deve-se entender por tal que a carta é simultaneamente um olhar que se volve para o destinatário (por meio da missiva que recebe, ele sente-se olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face-a-face (1992, p.150).

Em determinado momento, a comunicação via internet será preferida a comunicação face-a-face, e isso será quando o neto souber que o avô está em coma.

Com tudo isso, Antônio se apresenta como um personagem que busca a ação. Ainda que os vídeos possam ter, em alguns deles, conteúdo memorialístico, a intenção não é apenas guardar (ou resguardar) essa memória, visto que há a publicação na internet. Inicialmente essa publicação não tem a função de servir como banco de dados. Ao contrário, os vídeos estão ali para servirem de carta, estão pedindo uma resposta do neto. Quando o avô conta fatos do passado, ainda assim, em algum momento, ele provoca a reação do neto, ele pede a presença do neto naqueles lugares de memória.

No documento Uma canção para Ricardo (páginas 47-49)