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PARA UMA BREVE MORFOLOGIA SÓCIO-HISTORICA DAS PRÁTICAS DE ESCRITA

3. Escrita, natureza e linguage m

A leitura em voz alta não terá sido, apenas, um traço «medieval», mesmo que este último termo seja muitas vezes visto como que um “atraso”, relativamente às formas de vida e de cultura alfabética que o mundo conheceu. Ler em público seria um ato de teatro na Grécia, e por essa via de publicação do escrito (Murphy, 2001). Em nada o conceito de publicar parecia aproximar-se daquele que os nossos dias herdaram da idade da imprensa, ou se quisermos ser ainda mais atuais, do online que agora se impôs. Estar hoje em público implica ativar toda uma rede de virtualidades, de cuja

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dimensão pública (cidadã) as pessoas cada vez mais fisicamente se privam, ou a própria ideia de um “espaço público” das relações sociais estará hoje em mudança, se quisermos ver o fenómeno numa outra extremidade do conceito de rede. Atualmente, aquilo que parece corresponder a uma dimensão pública da escrita (hipertextualidades, autorias coletivas, multimodalidades semióticas, etc.) parece ocupar o centro de uma rede complexa de reescritas, menos dóceis, em maior número. E as dimensões oral e imagética, se cada vez mais parecem intrometer-se nos modos pessoalizados de escrita, ao representarem uma espécie de recomposição dos domínios tácteis e visuais que a tipografia atomizou, assumem-se igualmente como dispositivos de produção de uma “linguagem”, plural e diversificada, nas línguas que é capaz de falar. Jacques Derrida abre a sua reflexão em Gramatologia (obra já referida atrás) reportando-se, justamente, às transformações que se operaram no conceito de linguagem nas últimas décadas do séc. XX (ou na primeira metade do séc. XX, uma vez que Derrida escreve em 1967). Se a linguagem se definiu, sob o ponto de vista de um positivismo, e ao qual as ciências sociais não foram indiferentes, em torno do conceito saussuriano de signo25, desde

25 O conceito de signo é, como se sabe, central nas ciências que se ocupam do estudo da linguagem. A

ma ior parte dos peritos no estudo da linguagem, atribui a Ferdinand de Saussure uma prime ira sistematização científica do signo linguístico (uma vez que Santo Agostinho já teria proposto uma teorização do signo no começo da Idade Média), cuja formu lação veio in fluencia r toda uma corrente de pensamento em torno da ciência linguística. A definição de signo continuará a ser comple xa, mas para Ducrot e Todorov, na obra que já referimos, o signo comporta dois elemen tos – já definidos por Saussure – que se relacionam entre si: uma “parte que pode tornar-se sensível” (significante) e “uma parte” que, “para um determinado grupo de usuários”, “assinala uma falta” (significado). A relação entre o significado (u m conceito, u ma ideia) e o significante (a palavra , a image m visual ou acústica) determina o processo pelo qual a significação ocorre. O signo tratar-se-á, portanto, de uma entidade institucional, porque “existe apenas para um grupo delimitado de usuários” e, mesmo q ue exista, somente, para uma pessoa, ele é sempre instituído por uma determinada co munidade. A teorização de Saussure terá sido, no entanto, objeto de uma profunda discussão entre linguistas, filósofos e historiadores. Para a lguns, Saussure terá estado na orige m de um século que idolatrou o significado (o império dos conceitos), re metendo para a sombra toda as possibilidades de ressemantização da linguagem – vista como u m sistema alargado de signos – por meio do significante. Derrida, Barthes, Foucault, Lacan, e todos aqueles que, durante os anos de 1960, viera m questionar as ciências triunfantes da estrutura – isto é, ciências cujas abstrações teóricas assentariam no predomínio do significado – terão dado origem a versões pós - estruturalistas da linguagem, de onde resultaria m conceitos, como “jogo”, “texto” ou “simulac ro”, hoje perfeita mente apropriados pelos discursos das ciências sociais e humanas. No entanto, a inovação polémica que Saussure terá ajudado a criar, não terá tanto que ver com o modo pelo qual o conceito de significante se instituiu, mas antes com a maneira pela qual o conceito de significado terá sido formu lado. Vo ltando a Ducrot e a Todorov, e aproveitando o apontamento sobre a natureza do significado, “(…) ele foi definido como u ma fa lta, ausência no objeto percetível, que se torna deste modo significante. Esta ausência equivale, então, à parte não-sensível; quem diz signo deve aceitar a existência de uma dife rença radical entre significante e significado, entre sensível e não -sensível, entre presença e ausência. O significado (…) não existe fora de sua relação com o significante – nem antes, nem depois, nem alhures; o mes mo gesto cria o significante e o significado, conceitos que não podem ser pensados isoladamente. Um significante desprovido de significado é simplesmente u m objeto, e le é, mas não significa; um significado desprovido de significante é o indizível, o impensável, o ine xistente mesmo. A re lação de significação é, e m certo sentido, contrária à identidade a si; o signo é, simu ltane amente, marca e fa lta: originalmente duplo.” (Ducrot & Todorov, 2001: 102)

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Derrida que o seu sentido parece ter vindo, porém, a ser substituído pelo de escritura.26 A linguagem entendida como comunicação, uma forma de relação, de significação e de constituição de sentido, terá sofrido um fenómeno de inflação com repercussões no entendimento e na conceção do fenómeno escritural. Diz- nos Derrida,

“Já há algum tempo, com efeito, aqui e ali, por um gesto e por motivos profundamente necessários, dos quais seria mais fácil denunciar a degradação do que desvendar a origem, diz-se “linguagem” por ação, movimento, pensamento, reflexão, consciência, inconsciente, experiência, afetividade, etc. Há, agora, a tendência a designar por “escritura” tudo isso e mais alguma coisa: não apenas os gestos físicos da inscrição literal, pictográfica ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita. (…) e, a partir daí, tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em geral, literal ou não, e mesmo que o que ela distribui no espaço não pertença à ordem da voz: cinematografia, coreografia, sem dúvida, mas também “escritura” pictural, musical, escultural, etc. (…) Tudo isso para descrever não apenas o sistema de notação que se anexa secundariamente a tais atividades, mas a essência e o conteúdo dessas atividades mesmas.” (Derrida, 2006: 10-11)

O problema da escrita – que parece ser sempre o problema da sua origem – não se coloca, portanto, à margem do problema (da origem) da linguagem. De facto, são origens que, segundo Derrida, dificilmente se separam, elas são constitutivas do sujeito, do seu “rasto”, mas não necessariamente essências. Toda a tradição de fidelizar uma conceção de escrita à voz, à palavra, à presença, seria, hoje, um movimento limitado se a própria conceção de linguagem parece irromper o significante da escrita, ao mesmo tempo que a oposição problemática entre fala e língua, ou entre oral e escrito, é apagada

26 “Escritura” e “escrita” são conceitos que, na maioria dos casos, se confundem na tradução das obras

consultadas. Não parece ser, porém, o caso de Derrida, para quem “l’écriture” p arece surgir co m u ma maior amplitude semântica por relação à “escrita”; este aspeto é, aliás, u m dos traços da sua argumentação: a escritura como u m fenó meno semiótico, visual e espacial, construtor de espaçamentos e desvios, cobrindo, igualmente, o sentido de notação gráfica que, em termos restritos, se atribui ao conceito de escrita. Daí, o seu projeto de desconstrução de toda uma logografia , ou me lhor, de todo um logocentrismo, a mbos fundados, historica mente, numa filosofia escritura l de ra iz fonética. No entanto, e como se trata de uma obra originalmente escrita em francês, como é sabido, “écriture” significará, em português, escrita, como também poderá significar caligrafia, estilo e, també m, escritura. Por este motivo, e salvo algumas exceções, usaremos, como temos vindo a fazer, o conceito de escrita para nos referirmos à prática generalizada de escrever, que tanto pode ir de uma ide ia de traçar ca rateres à ideia de rasgar e arranhar e m diversos suportes, como ainda à ideia de mistério e sussurro, como vimos aquando da nota etimológica fe ita atrás (cf. Nota 6). Por outro lado, e quando algumas traduções de francês para português não parecem fazer qualquer distinção entre “escritura” e “escrita”, é o conceito alargado de escrita que nos parece cobrir a comple xidade, e toda a ambiguidade, que estarão na orige m e no desenvolvimento do seu significante.

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pelo surgimento de um novo conceito de escrita: ele hoje, para Derrida, compreenderia a própria linguagem. Este anúncio, porém, vem marcar uma época de reconstrução das lógicas fonemáticas pelas quais a escrita terá sido concebida, não só desde Saussure, como, se quisermos recuar, desde que ela se tornou um objeto platónico. A perspetiva gramatológica de Derrida, no contexto de uma história das escritas, veio representar uma leitura profunda dos conceitos fundamentais de escrita e linguagem, encarados no seu conjunto27. Ao mesmo tempo que veio instaurar todo um discurso crítico sobre os postulados teóricos nos quais a escrita se viu refletida, trata-se de uma perspetiva que procura questionar os alcances de uma ciência geral da escrita, da própria gramatologia. Para tal, torna-se uma Necessidade – Derrida distingue necessidade de Necessidade – admitir que a própria ideia de ciência terá nascido a partir de uma “época da escrita”, e que ela terá sido pensada e formulada, enquanto tarefa, ideia, projeto, numa linguagem que implica sempre relações determinadas entre fala e escrita. Nessa medida, a ideia de uma ciência da escrita terá estado, inicialmente, presa a um conceito de escrita fonética, valorizada enquanto finalidade de toda a escrita, e cujo programa ter-se-á fundamentado nos primeiros ensaios levados a cabo por Rousseau no séc. XVIII. Todavia, a proposta de Derrida consistirá em olhar a escrita, não como o objeto de uma ciência histórica – em nome da qual, falar de sociedades ou de povos sem escrita terá sido uma das faces visíveis do seu discurso – mas como a condição da própria episteme, a possibilidade de uma abertura, um “devir histórico”. Talvez por esse motivo, o conceito de “sistema” não surja no «texto» de Derrida, ou, no mínimo, quando aparece, na verdade é mais para se referir a um “espaçamento” e a uma “rasura” entre o contínuo e o descontínuo, o dentro e o fora, ou o centro e a periferia, a cujos opostos uma certa filosofia da presença terá atribuído, não só o próprio sentido de sistema, como a ideia de uma escrita que estaria à margem da linguagem. Não haverá, portanto, pertença histórica: é a conflitualidade, a

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Uma prime ira “v isão gramatológica” da escrita terá surgido, porém, segundo Anis (1988), Calvet (1996), Ducrot e Todorov (2001), com os trabalhos de I. J. Gelb, na obra A study of writing, the foundations of grammatology, em 1952, cujo objeto, a lé m de u m vínculo a fatores de orde m histórica e linguística, consistiria e m estudar o fenómeno da escrita no seio de outras atividades semiót icas, bem como e m de fin ir u ma tipologia das técnicas e princípios gráficos dos diferentes sistemas de escrita: a semasiografia, u ma escrita que recorreria a objetos ou marcas para representar “coisas e formas de ser”, e a logografia , u ma escrita estruturada pela palavra. Pa ra Gelb, essa tipologia traduziria u m esquema comparativo entre formas de escrita atravessadas por “estados revolucionários”, e que iriam da escrita semasiográfica, às escritas logográficas e fonográficas. Tratar-se-ia, assim, de u ma análise que viria a constituir-se no esboço de uma ciência da escrita, uma etapa histórica, de resto, cuja originalidade, na opinião de Jacques Anis, estaria na opção de Gelb pelo estudo do desenvolvimento interno das diferentes formas de escrita, u m tipo de abordagem que viria a distinguir -se das análises centradas no conceito de pictograma e de ideografia, levadas a cabo pela maio ria dos epigrafistas e paleógrafos da sua geração (Anis, 1988).

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produção das diferenças, o “jogo” e a disseminação que criam as condições para “descoser” as linhas, pelas quais a história (desde Platão) e a ciência (saussuriana) terão circunscrito toda a problemática da escrita.

Palavra e «presença»

A análise desenvolvida por Derrida sobre “l’écriture” fornece-lhe o meio para abordar o problema da «presença». É por aí que ele começa, ou melhor, será pela metafísica do mundo produzida na base do ser “como presença” que a desconstrução não será nunca em linha reta. Para compreendermos em que medida a proposta derridiana se constitui numa espécie de “inversão” das oposições metafísicas produzidas pelo logocentrismo, é preciso regressarmos, uma vez mais, às origens de uma cultura grega, cujo culto do saber terá corporalizado a ideia da palavra enquanto “verdade”. As figuras de Apolo e Dioniso, cuja interpretação, terá sido, como se sabe, ressuscitada por Nietzsche para explicar o “nascimento da tragédia”, remontarão – muito antes da “era filosófica da sabedoria” – à tradição da poesia e da religião na Grécia. Giorgio Colli, referido atrás, explica que por todo o mundo helénico terão existido santuários destinados à adivinhação e que, ao permanecerem enquanto celebrações da ordem do deus, terão sido elementos decisivos na vida pública e política dos gregos (Colli, 2001). O culto da adivinhação representaria, segundo Colli, não só uma procura de conhecimento, mas sobretudo a manifestação de uma sabedoria mediada pelo “olho penetrante” de Apolo. Por meio do oráculo, a palavra manifesta-se na ordem humana, mas não por palavras humanas, antes ambíguas, obscuras e estranhas: o deus conhece o futuro, alude-o, mas por outro lado, é como se impedisse a ordem humana de o compreender. Parece existir uma espécie de malvadez e crueldade na imagem de Apolo, a entidade da qual se espera o saber, mas de cujo poder se não mais terá acesso. À tradição filosófica herdada de um Apolo libertador, artístico, belo, Colli contrapõe um Apolo que parecerá muito mais próximo das conceçõe s mistéricas, de origem da loucura, atribuídas a Dioniso, e cuja dicotomia terá sido ainda reforçada pelo próprio Nietzsche28. Com efeito, a antítese entre sabedoria e loucura, ou entre arte e

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A propósito, Colli serve-se da própria etimo logia do conceito apolíneo, “(…) Apolo sugere, segundo os gregos, o significado de «aquele que destrói totalmente». O deus é apresentado nesta figura, no início da

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conhecimento, apenas servirá para uma leitura das origens das condições do sujeito separadas à partida. Tornou-se uma espécie de dado adquirido encarar Dioniso enquanto origem do êxtase e da mania. No entanto, mesmo tratando-se de um êxtase que subentende o erotismo daquilo que o “deus” esconde e oferece, ele constitui-se, segundo Colli, na condição do conhecimento, enquanto pressuposto e matriz da própria sabedoria. A conceção dionisíaca sugerida por Colli parece mais benigna e redentora, quando vários documentos órficos e papiros dos sécs. IV e III a.C. darão conta do aspeto teatral e dramático dos mistérios relativos à tragédia grega. Neles, encontrar-se-á uma tradução do ritual mistérico acompanhada por símbolos e alusões metafísicas a Dioniso, em cujas manifestações ele parece “inclinar-se para a esfera humana”, gozando de uma espontaneidade, um jogo, e de um “abandono ao acaso”29

. Sendo assim, a afinidade fundamental que Colli vê entre Apolo e Dioniso é o objeto que levá- lo-á a formular a hipótese, apoiado na literatura filosófica “arcaica”, de que as origens da sabedoria grega terão tido muitos mais elementos em comum com uma ideia de loucura (profética, mistérica, poética e erótica) do que com a perspetiva da medida e da harmonia, habitualmente derivada de Apolo.

Se uma perspetiva como esta leva a pensar a sabedoria no quadro de uma “mania”, de uma expressão apolínea do mistério, qual terá sido o papel reservado à palavra? Esta questão remete a própria ideia de sabedoria, de novo, para o fenómeno da adivinhação, cuja lógica seria intrínseca às formas de conhecimento grego. A dualidade da natureza de Apolo (arte e destruição) parece testemunhar, igualmente, uma fratura metafísica “entre o mundo dos homens” e o “mundo dos deuses”, de cuja cisão resultará a palavra enquanto veículo intermediário. Perguntar ao deus pelo destino, é esperar que, por seu meio, se escutem “coisas sem riso”, é adivinhar o enigma. Provindo da exaltação e da loucura, esta palavra é, segundo Colli, “(….) o ponto em que a misteriosa e separada esfera divina entra em comunicação com a humana, se manifesta na Ilíada, onde as suas flechas levam a doença e a morte ao ca mpo dos Aqueus. Não uma morte imediata, direta, mas uma morte mediante a doença. O atributo do deus, o arco, uma arma asiática, alude a uma ação indireta, mediada, d ife rida. Aqui assoma o aspeto da crueldade, ao qual se aludiu a propósito da obscuridade do oráculo: a destruição, a violência diferida é típ ica de Apolo.” (Colli, 2001: 17)

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Os ma is antigos documentos relativos ao culto do orfismo refe ridos por Colli, be m co mo as ins crições funerárias daquele período, permite m-lhe considerar que Dioniso, e aproveitamos para transcrever, surge aí co mo “(…) u ma criança, e os seus atributos são brinquedos, a bola e o pião (…). O símbolo mais árduo, ma is profundo, citado num papiro órfico e representado muitos séculos depois pelas fontes neoplatónicas”, terá sido ainda, “o espelho. (…) Dioniso, em vez de se ver a si próprio, vê aí refletido o mundo. Portanto, este mundo, os homens e as coisas deste mundo, não têm uma realidade e m si, são apenas uma visão do deus. Só Dioniso existe, e nele tudo se aniquila : para viver, o home m deve a ele regressar, emergir ou mergulhar no divino passado. (…) Recuperando o abismo do passado, o homem identifica-se com Dioniso.” (id.: 31)

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audibilidade, numa condição sensível”(id.: 36), impondo-se às imagens terrestres e, por essa via, aos interesses manifestados pela “magia da arte”. Palavra oracular, é a palavra que vem a exprimir uma razão sagrada, uma interioridade inexprimível e oculta, porque é o reflexo e a expressão de uma realidade divina fora do tempo, traz consigo o germe do acontecimento futuro, impõe a moderação. Ora, terá sido justamente devido ao caráter da adivinhação intrínseco à cultura grega que, nas suas origens, a dialética surge envolvida pela “discussão do enigma”, já não entre a esfera divina e humana, mas entre duas ou mais pessoas vivas, «reais». Ao humanizar-se, o enigma já não é mais a propriedade de Apolo, ele propõe uma espécie de figura agonística – a discussão – cuja prática, rodeada por um enigma-problema, supõe confronto, provocação e interrogação. A dialética aristotélica parece ilustrar bem em que medida as figuras do agonismo e do inquérito se constituem num impulso ao desafio, à discussão, à tese e à demonstração da sua falsidade, tudo isto pelo recurso à pergunta: é a dialética onde quem ganha é quem «diz a verdade». Tratar-se-ia, assim, de um exercício cuja ação além das questões relativas aos factos, isto é, à argumentação por referência àquilo que “efetivamente acontece”, define uma razão que não é tanto um objeto em si, mas mais um «discurso», um logos que fala, que expressa uma coisa diferente, heterogénea.

A racionalidade do pensamento grego, se parece apreender-se enquanto face de um misticismo mediado, nela também a fala, e a razão discursiva, terão composto o outro lado de um fenómeno fundamental a suceder-se por meio da dialética. E mesmo a retórica, que tendo vindo a usar a palavra escrita como uma technè de notação e de profunda estilização do discurso, ela terá sido sempre, no entanto, o campo da palavra falada, autêntica, a “paixão” que mais viria a fazer do oral um instrumento de poder. Enquanto um fala e uma coletividade escuta, a retórica é por isso, essencialmente, um ato de persuasão, mais até, segundo alguns teóricos, do que um ato de demonstração do saber, este último característico das d iscussões dialéticas. E de facto, quando apropriada por Horácio, a retórica passaria a ocupar toda uma área de estudo e de aplicação da linguagem, dos seus usos instrumentais, fundamentalmente como discurso e ação. Entre os romanos, os usos sociais e linguísticos da retórica terão sido predominantemente pragmáticos, por meio dos quais a escrita, se não seria já encarada como um “simples” recurso mnemónico, terá estado ao serviço de toda uma codificação da linguagem, e de seus diferentes níveis de expressão. Já antes, com efeito, desde Aristóteles que a retórica pressuporia o uso de um estilo escrito particular, para fugir à improvisação, mas sobretudo para fazer das ideias contidas num texto uma resultante perfeita da sua

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tradução oral. Além disso, e como é sabido, a intenção de Aristóteles, desde a Poética, veio a consistir em fazer do literário um fenómeno de catarse pública, de excelência artística, de modo a provocar a exaltação e a empatia da audiência30. Mas a retórica romana, aquela que terá sido lida durante toda a Idade Média, se por um lado veio