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Um triplo entrecho: escritores-alunos, escritores-professores, escritores-artistas

ESCRITA, ESCRITORES E «RELAÇÃO COM A ESCRITA»

2. Um triplo entrecho: escritores-alunos, escritores-professores, escritores-artistas

Em traços gerais, o universo epistemológico dos “métodos biográficos” pode ser considerado como o território mais amplo no qual se inscrevem os diversos recursos e abordagens para a análise de autorrelato s e trajetórias de vida. Este aspeto é reforçado por Bolívar, Domingo e Fernández (2001), ao considerarem que uma metodologia de investigação centrada em “narrativas de vida” compreende diversas formas e recursos, pelos quais o sentido da experiência pessoal narrativamente se inscreve. O universo epistemológico e semântico das “narrativas biográficas” englobará uma variedade de métodos e usos de investigação, mas cujos traços parecem, segundo esta perspetiva, aproximar-se à volta do conceito plural de narrativa. A centralidade que, na área das ciências da linguagem, o conceito de narrativa sempre possuiu, dá igualmente corpo a uma tradição conceptual, a partir da qual se inspira, em parte, o seu uso no campo dos métodos biográficos e narrativos. Segundo aquilo que os linguistas, desde as análises de Propp e Lévi-Strauss, designam por “tipologia formal”, uma narrativa, entendida como um texto referencial com uma temporalidade representada, compreende, para Ducrot e Todorov (2001), a combinação de várias “sequências”, sendo os seus casos possíveis mais frequentes o encadeamento, o enquadramento e o entrelaçamento. Como consideram Ducrot e Todorov, “(…) o encadeamento global das sequências no interior de um texto produz a intriga” (Ducrot & Todorov, 2001: 268). Tal conceito de intriga, sendo numa primeira fase construído à luz dos “estudos literários tradicionais”, parece surgir, porém, enquanto referencial de análise das propriedades narrativas em torno das quais uma “ordem causal dos textos” se organiza. Sendo assim, quando referida à categoria estrutural da “sequência”, a análise da narrativa pode por vezes ser ameaçada por generalizações demasiado amplas. Em todo o caso, segundo uma perspetiva sistemática, as intrigas são sempre heterogéneas e podem variar de “destino”, de “personagem”, e de “pensamento”, o que significa que, mesmo no interior de uma

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classificação binária das narrativas (ação/personagens; problema/solução, herói simpático/herói antipático, etc.) pode-se assistir a uma grande diversidade de tipologias (intrigas de ação, intrigas melodramáticas, intrigas trágicas, intrigas de castigo, cínicas, sentimentais, etc.), nos seus possíveis entrelaçamentos com as intrigas de maturação, de recuperação, de prova, de degeneração, de educação, de revelação, afetivas, etc.

Mas será, todavia, a partir dos trabalhos realizados por Paul Ricoeur (1983)65, que o conceito de intriga volta a ser lido à luz do conceito aristotélico de mimesis, cujo sentido Ricoeur interpreta-o mais como um ato criativo, onde o ficcional corresponderá a uma “abertura à significação”. Para Ricoeur, trata-se de uma conceção renovada de

mimesis, frequentemente reduzida à ideia da representação e imitação, que pode ser lida

enquanto imitação criadora. Diz Ricoeur,

“(…) if we continue to translate mimesis by "imitation," we have to understand something completely contrary to a copy of some preexisting reality and speak instead of a creative imitation. And if we translate mimesis by "representation" (…) we must not understand by this word some redoubling of presence, as we could still do for Platonic mimesis, but rather the break that opens the space for fiction. (…) And in this sense, the Aristotelian mimesis is the emblem of the shift that, to use our vocabulary today produces the "literariness" of the work of literature.” (Ricoeur, 1983: 45)

Tal interpretação de Ricoeur tem em vista um conceito de narrativa enquanto

articulação temporal da ação. Ao “tecer a própria intriga”, a narrativa inscreve

simultaneamente a ação humana na «temporalidade», aquilo que Ricoeur chama “função narrativa”, e à maneira de um compromisso ético e de uma busca de identidade no tempo, justamente quando nela impera um tempo narrativo que se torna indecifrável, misterioso. É dessa narrativa indecifrável que o sujeito se investe na compreensão do próprio tempo, demonstrando em simultâneo em que medida a sua ação como sujeito é uma ação tramada, “intrigante”. O que estará em jogo na “intriga” de uma existência narrada será, sobretudo, uma tensão permanente entre as forças que organizam a orde m (a sequência) e as forças da discordância, do inesperado, da surpresa, do destino, do caos. Compreender uma narrativa, segundo este ponto de vista, é, como diz Ricouer, “compreender-se diante do texto” não só porque o “tempo” possui um papel mediador

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Referimo -nos, apenas, ao volume I de um total de três (1983; 1984; 1985) nos quais Ricoeur estuda as med iações entre “tempo e narrativa”, na ed ição americana possível (University of Ch icago Press).

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na compreensão e na textura da intriga (“plot”), mas também porque o sentido da experiência humana “esclarece-se e articula-se” numa narração temporal de acontecimentos. Referindo-se à “nova congruência” trazida pela noção de intriga, refere

“(…) with narrative, the semantic innovation lies in the inventing of another work of synthesis – a plot. By means of the plot, goals, causes, and chance are brought together within the temporal unity of a whole and complete action. It is this synthesis of the heterogeneous that brings narrative close to metaphor. In both cases, the new thing – the as yet unsaid, the unwritten – springs up in language. Here a living metaphor, that is, a new pertinence in the predication, there a feigned plot, that is, a new congruence in the organization of the events.” (Ricoeur, 1983: 9)

O trabalho de recorrer a uma “metáfora viva” não quer dizer, nas análises que se empreenderam às narrativas de vida dos escritores, que “a vida” pode ser reduzida a uma metáfora. Como veremos mais à fre nte, é justamente devido a uma certa inflação metafórica de que o conceito de “histórias de vida” se serve, que, sob o ponto de vista metodológico, as incursões na ideia da vida como um “caminho”, uma “viagem”, etc., muitas vezes se dão. Não que tal incursão seja “totalmente” controlável pelo olhar, também ele vivo sob o ponto de vista metafórico, do investigador. Mas consideramos que, para este estudo, o conceito de “intriga” nos serve melhor à interpretação de narrativas de vida de escritores, centradas nas suas relações com a escrita. Porque diferentes planos e tempos de vida se combinam, segundo um princípio eminentemente

narrativo. Sendo assim, a decisão de empreender um instrumento metodológico que

pudesse trazer ao texto do investigador as «narrativas de relação com a escrita» recaiu na entrevista, nas suas qualidades empíricas, sociobiográficas e discursivas, com vista à organização de um conhecimento narrativamente explorado. A entrevista narrativa, portanto, assumiu- se como um dispositivo por meio do qual o investigador construiu interpretações, ao mesmo tempo que lhe veio permitir orientar a sua ação com os escritores.

Da entrevista narrativa, tal como a iremos discutir no Capítulo IV, obtém-se uma trama argumental, uma dimensão essencial (mesmo fabulada, como um romance) acerca do experienciado, mas estruturada temporalmente pela via da consciência que cada um constrói acerca da sua própria vida. (Bolívar, Domingo & Fernández, 2001). Este dado pareceu-nos extremamente relevante de operacionalizar junto de escritores, tendo menos

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em vista uma materialização formal dos seus textos orais (recolhidos empiricamente), e mais a reconfiguração autobiográfica das suas trajetórias subjetivas na relação com a escrita. Apresentaremos, neste capítulo, o processo e o resultado desse trabalho de reconfiguração autobiográfica, inspirado em parte na corrente da narratividade proposta por Ricoeur, e procurando que nesses retratos se dê conta do sentido que em si comunicam. A mediação entre os tempos que neles podemos encontrar estrutura-se à volta daquilo que poderíamos chamar um triplo entrecho, dado, na sua singularidade, esses tempos prefigurarem, configurarem e reconfigurarem um nexo de experiências de vida como escritores, cujas ações se desenrolaram nos papéis de alunos, professores e artistas em Portugal. Tais “ações” encontram-se aqui balizadas pelos períodos que marcaram o início das suas relações com a escrita e com o universo literário, não deixando de narrar, em todo o caso, o esboço biográfico feito pelo p róprio escritor, sendo tal esboço também atravessado pelas memórias das personagens e dos espaços com os quais cada um/a cresceu. É tendo por base esta conceção de intriga que a configuração das suas narrativas resultou em retratos autobiográficos pensados como um todo diferenciado, e numa síntese plural de acontecimentos. O diagrama que indicamos em baixo dará uma perspetiva sociobiográfica dos escritores com a qual o investigador foi lidando ao longo do processo de investigação. Os dados aqui constantes foram resultando do processo pelo qual a entrevista narrativa foi sendo desenrolada (não resultam de uma recolha de natureza “estatística”). Este diagrama tem só por objetivo fornecer uma leitura, também ela gráfica, dos principais aspetos que foram situar o investigador numa primeira projeção do universo empírico presente nesta tese.

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Diagrama soci obiogr áfico geral

O diagrama apresentado fará antever um conjunto de “retratos” de escritores, num primeiro esquema de leitura, dando conta dos seus diferentes universos sociais e literários, nos quais se desenrolaram e produziram as suas narrativas de vida. Ainda que o nosso objeto de estudo não se oriente para a análise dos elementos pelos quais os escritores se definem numa “dupla condição”, na aceção que lhe é dada por Bernard Lahire (2006), e cuja atividade é repartida e sustentada por uma “primeira” ou “segunda” profissão (a escrita antes ou depois da profissão no ensino, da atividad e de edição – e até mesmo, aquela que parece surgir “fora do campo” – a de seguros), tal condição não deixará de aqui se expressar, na sua maioria pelo lado da condição de escritores-professores. Tal predominância de “condição” parece assim substantivar-se, e não recorrendo aqui a leituras de ordem estritamente sociológica, em virtude das próprias disposições internas que se relacionam entre a atividade docente e a atividade de escrita. O universo profissional do ensino das “letras” (da língua, ao jornalismo e à

Escritores/as Nascimento Naturalidade Residência Formação Académica Principais “géneros” narrativos/literários “Outras atividades” Manuel António Pina 1943 (Sabugal, Castelo Branco) Porto Licenciatura (Direito) Conto Crónica Teatro Poesia Jornalista Professor (Escola de Jornalismo) Mário Cláudio 1941 (Porto) Porto Licenciatura (Direito) M estrado (Biblioteconomia) Ficção Romance Biografia Poesia Conto Ensaio Teatro Crónica Novela Professor (Escola de Jornalismo; Universidade Católica) Ana Luísa Amaral 1956 (Lisboa) Porto Doutoramento (Literatura Norte-americana) Poesia Conto Ensaio Professora (Universidade do Porto) Luísa Dacosta 1927 (Vila Real) Porto Licenciatura (História e Filosofia) Romance “Memórias” Conto Ensaio Professora (Ensinos básico e secundário) Jorge Velhote 1954 (Porto) Porto Frequência Lic. (Direito) (Filosofia) Poesia Romance Crónica Edição Seguros

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literatura) vem, nessa medida, sustentar (em diferentes níveis das suas existências), não só as suas atividades sociais como escritores, como também lhes confere uma condição literária que aí se implica. No trabalho que referimos em cima, e no qual Lahire se dedica exclusivamente (como sociólogo) ao estudo da “condição literária” sob o ponto de vida do seu “duplo ofício”, isto é, um ofício literário e extraliterário de escritores, cuja necessidade de uma “segunda profissão” se lhes impõe, muitas vezes, enquanto exigência social, económica e, em certa medida, pública (no sentido da lógica da visibilidade pelo “trabalho”), refere ele, com base nas respostas a um questionário de tipo quantitativo feito a um vasto número de atores da atividade literária (francesa),

“(…) certains écrivains ont (…) un second métier dans le «monde littéraire» même (éditeur, traducteur, lecteur, responsable de revues, organisateur de manifestation littéraire, etc.), d’autres sont a cheval entre le «monde littéraire»et le travail social ou socioculturel (animateur d’ateliers d’écriture, conteur, etc.), d’autre encore appartiennent à certains univers de production culturelle ou artistique (…), et d’autres enfin appartiennent à des univers professionnels variés, plus ou moins distants du monde de la culture en général, et du jeu littéraire en particulier.” (Lahire, 2006: 236)

Dada a “diversidade de intermitências” nos seus itinerários como “escritores”, o universo literário, acrescenta Lahire, não é “um universo como os outros” (id.: 36) e, nessa medida, tal universo representa uma complexidade diferente de tratamento e análise para o “trabalho do sociólogo”. Tratar-se-á de um universo social (Lahire parece evitar usar o termo “campo literário”, tal como Bourdieu o definiu) “atípico, (no quadro de outros modelos de profissão derivados da divisão social do trabalho), muito embora dele não exclusivo, mas que faz referir “a vida” dos escritores (cuja atividade poderá derivar de muitas outras atividades nela condensadas) a “vidas múltiplas”, na medida em que, nessa condição dupla, os escritores serão levados a acumular – segundo a importância que eles atribuirão à produção literária – outros universos sociais de atividade. Tal “exigência” dos escritores, na leitura de Lahire, prende-se com a ausência de uma referência empírica na lógica tradicional que caracteriza o espaço social do trabalho, segundo a qual o trabalho ocorre num mesmo tempo e lugar profissionais. Esta intermitência de itinerários pode ser observada, em parte, pelo lado da abordagem do significado do «trabalho» e da «profissão» na construção da categoria contemporânea do escritor. Mas não foi esse o trajeto que optámos fazer neste estudo, tendo no entanto

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encontrado na sociologia do literário – e desde Bourdieu – uma grande e diversificada “fonte de inspiração”. Dela temos vindo a fazer em parte uma leitura, e cujas possibilidades de encadeamento com o universo desta tese nos servem para ir discutindo diferentes formas de abordar os escritores (aqui, assumidos na sua condição de escritores-artistas), no complexo discurso da «relação com a escrita».

Como se tem vindo a fazer notar, as metodologias de investigação que nos têm vindo a sustentar inscrevem-se no vasto universo das abordagens narrativas e biográficas da vida (tomando-a enquanto «texto»). Sendo assim, e no que importa a este estudo, o material narrativo recolhido junto dos escritores foi assumido, também ele, como um «texto», e na tripla aceção que lhe é dada por Ricoeur (2000), isto é, segundo três dimensões indissociáveis. O texto é “discurso” (e objeto de trabalho), na medida em que manifesta uma dimensão do mundo que é aberta pela comunicação (no nosso caso, uma dimensão relativa, como se verá, às “memórias de escrita” dos escritores, questão em torno da qual a entrevista narrativa se organizou). Por discurso, Ricoeur vai entender um “percurso articulado” (Ricoeur, 2000: 52), constituído por signos, e realizado como um ato específico “de dizer qualquer coisa”, cuja manifestação se dá pela fala. A escrita, sendo assim, vai transformar o “recitado” num sentido mais estrito, codificando o discurso, através da “textura” e da composição de uma obra (Ricoeur está a referir-se, na alusão que aqui fazemos, aos “géneros literários” enquanto codificações da “voz da escrita”, mas em todo o caso trazemo-la para aqui à luz do seu primado epistemológico). Nessa medida, o texto é “escrita” (uma codificação do discurso), e na qual se implica o seu número ilimitado de leituras. A leitura como um alargamento pelo qual se acrescenta algo à escrita dá lugar ao que Ricoeur chama “espacialização do texto” (isto é, ele ocupa espaço, constrói o espaço, tem camadas, estruturas, etc.) e, nesse sentido, o texto torna-se “trabalho” (de interpretação, de relação entre as suas partes, de significação das suas próprias regras, etc.), e pelo qual se “dá forma” e matéria à linguagem, não só como uma qualidade do mundo, mas enquanto uma dimensão “do diálogo com outra pessoa” (id.: 58). O conceito de «texto» introduziu-se no dispositivo de entrevista do qual fizemos uso, à luz do pressuposto de que por seu meio seria possível, ao investigador-leitor, “ouvir” a voz narrativa (distinta da do “autor”) presente nos textos que foram comunicados oralmente pelos escritores, e captados (fixados) nas suas circularidades de sentido e leitura. A tarefa de interpretar o material recolhido, admitindo-se que o seu universo é de natureza textual- narrativa, impôs-se com vista a

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obtermos uma compreensão do seu enunciado (originário). Nessa medida, o investigador, ao investir-se enquanto “intérprete” de experiências narradas dos escritores, não só se viu no confronto com as implicações de natureza hermenêutica que atrás fizemos notar, como na tomada de consciência de que estaria no meio de “diferentes falantes”, o que lhe veio exigir, menos um papel de “tradutor” (no sentido de dizer, pela sua voz, o que os” falantes” puseram em texto), e mais um papel de “mediador”, mas de cuja intervenção resultasse sobretudo um “discurso mediador”. Quer isto dizer, portanto, e voltando às reflexões de Gadamer (2000), que os retratos autobiográficos que aqui se reconstruíram a partir das narrativas de vida dos escritores, implicaram um trabalho de interpretação sobre os textos (discurso), do qual o intérprete desapareceu. A decisão de reconstruir (reescrever) os retratos dos escritores, individualmente e no seu conjunto, assenta numa conceção de “intérprete” que fomos lê-la em Gadamer.

“(…) O intérprete intervém quando o texto (o discurso) não consegue cumprir a sua missão de fazer ouvir e entender. O intérprete não tem outra função senão a de desaparecer totalmente na formação do sentido. Por isso, o discurso do intérprete não é um texto, mas está ao serviço [itálico no original] de um texto. Isto não significa, porém, que o contributo do intérprete [desapareça] totalmente no modo de ouvir o texto. Simplesmente, esse contributo não é temático, não tem a objectualidade de um texto. Com isto se caracteriza, na máxima generalidade, a relação de texto e interpretação.” (Gadamer, 2000: 84)

Tal trabalho, cujo universo para aqui procurámos trazer, passou, então, por uma ideia de interpretação (e de intérprete) que parece ir além do plano linguís tico. Na verdade, não se teve por objetivo realizar um tipo de trabalho de interpretação dos textos que recolhemos pela entrevista, cuja posição assentasse, estritamente, no campo estrutural do discurso, ou de uma análise dos seus elementos enquanto funções de tipo linguístico. Mas não se quis separar um trabalho de interpretação “textual” (porque é de narrativas que ele se constituiu) da sua organização semântica interna, e do equilíbrio que se procurou restituir entre as partes dos “textos da vida” de cada um dos escritores. O investigador como intérprete, sabendo que se situava no campo da “análise compreensiva da vida”, procurou, nas narrativas recolhidas, “edificar” um conjunto de textos que, com efeito, terão, não só sempre algo de pré-compreendido, como, na

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verdade, eles não serão um resultado de uma criação sua. A sua eventual unidade (de sentido, de aproximação entre histórias, de coerência e sequência, etc.) deriva de um trabalho realizado pela leitura de um conjunto de nexos presentes no conteúdo narrado. Por esta razão, decidiu-se restituí- los na “primeira pessoa”, deixando aos próprios interlocutores a construção dos “reenvios” internos que entre si poderão estabelecer, já que a possível conexão de significados poderá fazer multiplicar a própria possibilidade de interpretação biográfica e narrativa dos textos.

Da performatividade do texto ao texto performativo

Estabeleceu-se, assim sendo, um critério de princípio que passou por interpretar a unidade das narrativas recolhidas em dois textos. Comecemos por falar do primeiro e daquele que será apresentado nas páginas seguintes. Esse texto passou por reescrever, a cargo dos próprios textos recolhidos, as trajetórias que os escritores narraram a propósito da «relação com a escrita», mas no contexto mais vasto dos seus autorretratos biográficos. Isto é, trata-se de um texto que vai resultar da leitura do modo pelo qual cada escritor foi “falando da sua vida”, nela podendo variar a forma, como uma nova interpretação dada pelo seu conteúdo. Suportamo-nos, assim, numa linha interpretativa e biográfica que procurou mais comunicar a maneira pela qual os escritores se narraram na forma de atribuírem significado às suas experiências, e como, a partir desses relatos, os próprios foram teorizando sobre si e sobre os seus projetos de vida (pelo passado e no presente). Tal linha de interpretação, justificada que estaria à luz hermenêutica, foi assentar num outro dado que nos pareceu relevante para aqui trazer, e que é a conceção de “texto performativo”. Na verdade, o modo pelo qual um sujeito se narra (significando aí que a linguagem e a memória alteram o sentido da própria narração) integra uma “audiência” que é construída pelo próprio ao comunicar a sua experiência de vida a outra pessoa. Não se narra uma história sem que nela não intervenha um sentido da ação que é enviada (pelo menos, num primeiro nível, na sua comunicação) a um eventual universo de receção. A audiência narrativa que vimos surgir ao longo da