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O imperativo da diversidade que veio a surgir de cada uma das projeções gráficas que realizámos das narrativas de vida prende-se, na nossa perspetiva, com todos os “fenómenos” (na aceção fenomenológica) que se implicam na tradução do oral em escrito. De facto, na mediação aí implicada, há um fenómeno de natureza mental, pelo qual o investigador visualiza os movimentos (pelo vaivém das linhas) e os princ ipais quadros cronológicos que fazem convocar as personagens que compõe a trama. Pela sua centralidade nas narrativas de vida, as personagens em cada um dos biogramas são aqui evocadas na sua amplitude biográfica maior (elas são “pessoas” e “protagonistas literários”), uma vez que, nos modos e estilos narrativos de cada escritor, elas parecem surgir com o mesmo equilíbrio narrativo. Como participantes numa “intriga”, e que acompanham os processos de transição dos escritores-alunos, em escritores-professores e em escritores-artistas, o lugar que tais personagens ocupam ajuda a pesar a simetria narrativa para o lado das suas principais performances – são personagens familiares, escolares, literárias, de cinema, personagens profissionais, figuras que marcam “o acesso ao campo literário”, de “viragem” sob o ponto de vista do eco que tiveram nas histórias pessoais. Nessa medida, elas surgem nos biogramas vinculadas à valoração que possuíram na produção dos relatos. Como projeçõe s – porque corresponderão a formas «bidimensionais» de tradução gráfica do pensamento – os biogramas permitem entrar num universo biográfico, e compreender de que modo a procura de significação que é posta pelos escritores nos textos que oralizaram sobre a vida pode condensar uma lógica, cuja “instrumentalização” serve, aos olhos do investigador, de guião. Uma vez que qualquer narrativa incorpora uma teorização sobre os valores da vida, os modelos adotados para elaborar os biogramas traduziram as formas pelas quais se deu a procura de equilíbrio vital que, numa “história da vida”, será uma constante. Para este trabalho de “valoração biográfica” inspiramo-nos, em parte, nalgumas das propostas de Marie- Christine Josso (2002), resultantes da sua experiência no campo das histórias de vida com adultos e, especificamente, no que a autora designa por “buscas orientadoras dos itinerários e das escolhas de vida” (Josso, 2002: 66). Deste modo, na textura global do texto que o investigador produziu enquanto retratos autobiográficos dos escritores, surgirão atravessadas (implicitamente) as articulações em que se jogaram os seus planos de vida. São eles “a peregrinação e a estabilidade” em Manuel António Pina, a “a autonomização e o investimento” em Mário Cláudio, o “pesadelo e o paraíso” em Ana Luísa Amaral, a “história, a pedagogia e a literatura” em Luísa Dacosta, e a “vida profissional” e a “vida literária” em Jorge Velhote. Nenhuma destas articulações

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subjetivas (“buscas”, no sentido existencial que lhe dá Josso) exclui as outras, ou, enquanto traduções de sentido que o intérprete lhes deu, serão intraduzíveis, por contraste, com as restantes. Mas permitiram- nos relativizar as certezas que, num domínio de investigação biográfica e narrativa, vêm marcar a busca de sentido para o trabalho de interpretação. Tais valorações acompanharam o próprio trabalho de interpretação e, no seu conjunto, vieram imprimir o “espírito” biográfico no qual assentam os modos de discutirmos, num plano particular de cada story do escritor, a vivência da sua relação com a escrita. Em certa medida, tal espírito biográfico veio imprimir-se no tom narrativo adotado ao longo desta tese. Mas tais planos são lidos, igualmente, na sua articulação narrativa mais global. E, por esse motivo, faremos de seguida uma leitura-síntese do tempo, no qual se construiu a ação das suas narrativas de vida, bem como dos principais ciclos de acontecimentos, de ordem social, política e cultural, que as configuram.

Gulbenkian, Nemésio e “coisas tipo Al Berto”

Vimos no Capítulo II de que modo uma ideologia acerca do valor singular da autenticidade literária do escritor contemporiza, de algum modo, com os discursos oficiais em torno dos quais o campo literário “autónomo” se produziu numa “Europa letrada”, tendo-se por analisador “o campo literário” francês, tal como Bourdieu (1996) o discute. Esse “campo”, não podendo ser visto com o mesmo grau de autonomia em Portugal, pode ser observado, porém, pelo lado das lutas sociais e políticas encetadas durante o período que antecede a Revolução de 1974, no âmbito do qual a Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE) em 1956, e a sua recuperação institucional, em 1973, na designação de Associação Portuguesa de Escritores (APE), parecem vir configurar, segundo Souta, uma dimensão “para-sindical” no “reivindicar de um «estatuto de escritor»” (Souta, 2002: 31). Recorrendo a testemunhos de Maria Velho da Costa (como presidente da APE), em 1976, e de Miguel Torga, também da mesma data, e cujos textos darão conta de uma conceção dos escritores, não enquanto “classe”, antes como uma “frente intelectual oposicionista”, Souta considera,

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“(…) Nesse, como em outros períodos particularmente tensos e conturbados na vida política, o escritor é «sempre alguém que fala por todos» (Torga, 1976:65), uma espécie de “consciência nacional” de alguém que se pauta por uma espécie de «ética da responsabilidade» (…) Daí a semelhança a um «grupo manifesto». Mas essa força é intrínseca à própria literatura. (….) Claro que o atribulado e conflituoso processo de transição democrático (1974-75), também neste como na maioria dos campos, abriu fissuras, aprofundou clivagens, levou a rupturas. Têm demorado a sarar, mesmo na fase da “normalização” em que temos vivido nos últimos anos e que coincide com a «regressão dos intelectuais».” (Souta, 2002: 31-32)

Torna-se complexo identificar, pelo menos à luz do “fenómeno” sociológico tal como fora descrito por Bourdieu, e ao qual já fizemos referência, a existência de um campo literário “autónomo” em Portugal. Nas narrativas de vida que aqui tomámos por análise, os escritores, na condição de artistas, não se referem a uma “vida literária”, sob o ponto de vista do lugar que ela ocuparia num campo “autónomo”, e cujas dinâmicas fossem, por si próprias, determinantes da atividade literária que empreenderam ao longo das suas vidas. Mas isso não significa que as relações tecidas no espaço social da crítica literária, no agon editorial e em todas as ações (Bourdieu fala em “lutas”) encetadas no “acesso à publicação” (e, nalguns casos, as consequências políticas daí resultantes – leia-se, mais à frente, a convocação de Manuel António Pina em processos de interrogação da PIDE em virtude da publicação de um dos seus primeiros contos), deixem de configurar um “campo”, cuja procura de autonomia relativamente ao “poder” veio, com efeito, trazer uma identidade social simultaneamente singular e comunitária à atividade dos escritores em Portugal. Podendo, porém, não ser observado segundo o mesmo postulado bourdiano, o campo literário em Portugal, no período que acompanha as histórias de transformação dos “nossos” escritores-estudantes em escritores-artistas, é no entanto discutido por alguns teóricos e, na análise que Souta lhes dedica, parecem contrastar entre si duas perspetivas. Uma é aquela que toma o campo literário “como um dado objetivo”, e a partir da qual se estuda o papel dominante dos escritores entre os intelectuais durante o PREC, ou seja, entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de novembro de 1975, cujas transformações políticas configuram um período singular, como é sabido, da história social em Portugal. Outra perspetiva é aquela que “coloca reservas” à ideia desse “campo literário” como um dado objetivo, em virtude de se considerar a “(…) não autonomia dos escritores relativamente ao poder político, quer antes do