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PARA UMA BREVE MORFOLOGIA SÓCIO-HISTORICA DAS PRÁTICAS DE ESCRITA

1. Segredos e limites

Os historiadores do campo da escrita parecem querer contar- nos uma história. Mas é contudo de uma «história das escritas» que neste capítulo nos propomos falar. Ao percorrermos um conjunto significativo de obras que se ocupam da história da escrita, este parece ser um dos seus denominadores comuns: a impossibilidade de essa história ser contada num tempo-espaço singular. Grafismos, pictogramas, ideogramas, alfabetos, todos eles elementos de uma história que parece ser atravessada por um mito, isto é, pela procura do significado da origem. Aquilo que a escrita esconde, as suas próprias origens, faz da história da escrita uma espécie de criptografia, cuja racionalidade sempre precisou de lidar com os limites do decifrável: a ordem é uma simples aparê ncia. Na verdade, trata-se de uma história que «imagina» mais do que responde. E isto em si não parece constituir um problema, pelo menos no plano teórico, já que a imagem (gráfica) é um signo para ser questionado. Se durante séculos nos habituamos a encarar a História como um resultado de transições entre épocas e períodos estruturalmente distintos, uma breve abordagem à morfologia das práticas de escrita permite- nos observar, porém, em que medida o próprio sentido da história, assim construído, surge na génese de uma série complexa de reducionismos, no âmbito da qual o estudo da escrita frequentemente é objeto. Albertine Gaur (1990) começa por adiantar três. O primeiro refere-se ao modo pelo qual as obras de história da escrita definem o seu objeto de estudo. Sob a influência, ainda, de um certo positivismo científico – ou de uma diacronia que, por tradição, é constitutiva das abordagens históricas – a maior parte dos historiadores, e dos linguistas também (pelo menos à luz dos fundadores de uma ciência da linguagem), parece encarar a escrita como um dispositivo de reprodução da linguagem, reprodução essa através do uso de signos fundamentalmente gráficos. Este tipo de reducionismo,

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que é funcional do ponto de vista da linguagem (e do estudo da linguagem), dá lugar, todavia, a uma hegemonia interna e a uma hierarquia de escritas, de cujos preceitos, principalmente pragmáticos, e não tanto estéticos, resulta a assunção ideal do alfabeto enquanto meio privilegiado de reproduzir a linguagem, relativamente a outros que, muito embora com outros níveis de economia e eficácia, permitem igualmente a sua reprodução. Ao aceitar-se um princípio como este, através do qual a escrita é um produto de fenómenos linguísticos que lhe são anteriores, assume-se do mesmo modo que o suporte material mais adequado para fixar e conservar um determinado conjunto de signos gráficos é o papel. Circunscrito ou à palavra, ou ao papel, o fenómeno da escrita surge-nos fragmentado no seu significado histórico e social: por um lado, a conceção de uma escrita “propriamente dita” que foneticamente reproduz, com maior nível de exatidão, os símbolos gráficos de uma determinada linguagem; por outro, a ideia de uma escrita em cujo sistema estão ausentes os sons e são as ideias a reproduzirem as palavras em si – aquilo que Gaur veio chamar os “precursores da escrita”; por outro lado ainda, a noção de uma “forma de escrita” na qual a fonetização da linguagem se torna uma realidade efetiva. O alfabeto, o terceiro reducionismo portanto, converte-se assim numa ideia platónica, aproveitando as suas palavras, dado que parece captar, dentre múltiplos sistemas, todas as formas a partir das quais a escrita necessariamente avança.

A trama dos esforços da escrita, “que é impossível reconstituir na sua continuidade”, como referem Cazade e Thomas (1987), parece guardar um segredo. No seu conjunto, esses segredos são como que os textos ainda por revelar, legíveis e ilegíveis não só em função dos limites do conhecimento que a ciência produz, como do estado de conservação dos sistemas gráficos hoje existentes. Não é apenas a hibridez e a ambiguidade do conceito de escrita que estão na base de uma história cujas coordenadas são muitas vezes, para citarmos o assiriologista Jean-Marie Durand (2001), “ilusórias”. Procurar o ponto geográfico que marcaria a ideia de um surgimento da escrita equivale a ignorar a diversidade de signos que, em contextos tão diferentes, simbolicamente descrevem e traduzem a «língua» de uma sociedade. Para alguns historiadores, como Durand ou Jacques Anis, a origem factual e empírica da escrita é em si uma questão “sem pertinência real”. Nas palavras de Anis,

“Chercher à assigner une origine à l’écriture supposerait, en effet, que l’on disposât de critères et de normes permettant de définir à coup sûr, et surtout de manière

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homogène, un objet qui, sans cadre conceptuel déterminé, ne serait qu’intuitivement reconnu. Toute problématique d’origine repose sur la conviction qu’il existe une continuité fondamentale entre des pratiques qui sont les nôtres aujourd’hui et les vestiges de celles du passé.” (Anis, 1988 : 10)

Para Jacques Anis, os debates que se produzem à volta da origem da escr ita, da natureza do signo gráfico, da primazia da função sócio-politica em detrimento da função intelectual do escrito, ou até mesmo, a discussão que, nos dias de hoje, parece querer anunciar a “morte de uma civilização da escrita”, são debates que, na verdade, tendem a reativar permanentemente as problemáticas mais clássicas do conhecimento, onde se jogam os fundamentos de toda a metafísica ocidental. A perspetiva de uma história que ressalva mais a linearidade – e a evolução – das escritas e menos a complexidade social que nelas se inscreve, surge muitas vezes num contexto onde o que se discute é o papel da Razão, e da atividade racional, nas suas relações com o pensamento e o progresso da realidade. Todavia, se para a história e para a antropologia da escrita, diz- nos Anis, é a questão da «origem» que tem vindo a definir os contornos do seu objeto, é sobretudo no debate interno à etnologia que as diferenças entre sociedades “evoluídas”, detentoras de um sistema sofisticado de escrita, e sociedades “primitivas”, supostamente à margem de tal existência, são objeto de um maior número de interrogações.

Jack Goody e o debate entre o oral e o escrito

É sabido que aquela terá sido uma das principais questões levantadas por Jack Goody (1987), no momento em que questiona as lógicas de uma antropologia da escrita, cujos estudos, durante os últimos anos, ter-se-ão centrado, quase em exclusivo, no desenvolvimento e na evolução histórica dos seus diferentes “sistemas”. A sua tentativa é de outra natureza, e procura relocalizar a ênfase que tradicionalmente é posta “nos meios e modos de produção” para explicar a História humana, na perspetiva dos “meios e modos de comunicação”, bem como nas implicações da escrita nos processos cognitivos e nas diferentes formas de organização social. As interseções, estudadas por Goody, entre o oral e o escrito – e principalmente, o estudo e o reconhecimento das

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formas gráficas presentes no oral – terão contribuído, durante os anos oitenta do passado século, para aquilo que diversos autores chamaram “a década da escrita”, no âmbito da qual diferentes antropologias e etnografias de escrita começariam a ganhar corpo. “(…) Os meus colegas antropólogos”, como ele próprio escreve em A Lógica da

Escrita e a Organização da Sociedade, “estão habituados a analisar um contexto

particular”, que Goody diz ser possível estudar através “de terceiros ou por meio de livros e dissertações”, e os “(…) meus colegas historiadores”, continua ele, parecem estar “mais habituados a reconstituir situações ao longo do tempo”. Uma terceira forma de investigação existirá porém e, segundo Goody, consiste em “pegar numa sequência” e seguir “o seu trajeto variável através do tempo e do espaço” (Goody, 1987: 12). É por esta via que os trabalhos de Goody, reportando-nos aqui àqueles que vieram dar origem ao conceito de “razão gráfica”, marcam um episódio relevante na investigação das condições históricas e antropológicas da escrita.

As “grandes organizações sociais”, segundo Goody, terão sido aquelas cuja tradição letrada lhes permitiu uma independência própria, promovida pelo que ele diz ser “a custódia dos livros e o seu interesse na continuidade terrena e na salvação extramundana” (id.: 15). As religiões letradas, não só o cristianismo, como todas as religiões mundiais que farão uso do escrito, são um dos contextos que, para Goody, melhor ilustram o contraste entre os padrões universalistas e particularistas que estão na base da formação das organizações sociais e, especificamente, dos traços que regulam a ética religiosa. A generalização e a descontextualização de prerrogativas religiosas dirigem-se sempre a mais do que uma pessoa, um grupo ou uma sociedade, e tendem a ser formuladas a partir do exterior, não só pelo recurso e o apelo à conversão, como pela apresentação de códigos escritos únicos, cujas abstrações tendem a sobrepor-se a normas e padrões de caráter mais contextuado, característicos das “sociedades orais”. Nalguns casos, Goody chega a dizer que a abstração do escrito substitui os traços do culto local, dadas as modificações que introduz nos processos de comunicação entre emissores e recetores e na natureza, para não dizer conteúdo, da própria mensagem. Numa comunicação escrita, afirma, “(…) uma sentença universal como «não matarás» tende a substituir a fraseologia mais particular de «não matarás outros judeus» ou talvez «não matarás a não ser sob as ordens de chefe, partido ou nação»” (id.: 25). O texto escrito, além de irrevogável, pressupõe, assim sendo, um contrato, um juramento, uma conversão. Isto parece explicar, de algum modo, o poder universal de algumas religiões relativamente a outras formas de culto religioso, já que muitas delas não serão “apenas

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religiões de origem”. A palavra escrita, comunicada através dos Textos, pode, por si só, ser uma espécie de “incentivo” religioso, por vezes independentemente do conteúdo prescrito na Escritura; as religiões, deste ponto de vista, não serão só tidas como «superiores», em relação ao mundano, devido ao caráte r letrado dos seus atores, mas também porque fornecem a oportunidade para, a quem nelas se congregar, tornar-se, por essa via, um sujeito erudito, e desse modo poder usar da palavra.

A problemática da escrita evocada por Goody, não só relativamente à religião, como a outros campos de atividade social, como a economia e a administração, procura dar atenção ao estatuto da grafia (não apenas da escrita) e às suas diferentes implicações em cada sociedade e em cada época histórica. Para Jacques Anis, a proposta de Goody é em certo sentido trans- histórica, formulada contra o etnocentrismo de uma perspetiva que olha o oral e o escrito enquanto “tipos distintos de mentalidades”, de sociedades ou de grupos sociais4. Se por um lado é uma perspetiva que se inspira nos estudos de Lévy- Strauss – principalmente ao relativizar a questão das sociedades com e sem escrita – por outro, renova grande parte dos seus pressupostos, ao valorizar a especificidade das operações intelectuais que resultam da “representação gráfica do pensamento”, cujos atos, por sua vez, a tornam possível (Anis, 1988). Trata-se por isso de uma proposta que procura dar conta das diferentes formas de pensamento – e daí o seu contributo mais para uma etnologia da escrita do que para uma história – que graficamente se constituem em diversos tipos de rep resentação, como listas, quadros, fórmulas, etc., pelos quais o pensamento não só se conserva e transmite, como se organiza de um modo particular. Esta reorganização cognitiva por meio da escrita, derivada da transcrição da

4 Em Domesticação do Pensamento Selvagem, as diferenças e as semelhanças entre os modos “oral” e

“escrito” são estudadas por Goody, entre outras propostas, também a partir do conceito de «fórmula». Na linguagem corrente, entende Goody “não há grandes dúvidas sobre o que é uma fórmu la: trata -se de asserções fixas de relações sob uma forma abstrata. E vendo bem, a fórmula consiste geralmente em formas gráficas não pronunciadas, indizíveis, apresentando uma seme lhança mín ima co m a fala do home m co mu m ou, mesmo, do home m letrado e até erudito. Qual é então a razão de u m recurso tão generalizado a este termo na discussão das formas orais e, particula rmente, nas análises de formas estandardizadas como as canções e as epopeias?” (Goody, 1988: 128). Poré m, segundo Goody, a análise de fórmu las estandardizadas nas culturas ditas orais (estórias, provérbios, epopeias, canções, etc.) mostra, por exe mp lo, que elas se situam ma is perto de uma “variação” do que numa lógica de “repetição”, isto é, a sua dimensão mne mónica , mu ito e mbora possa surgir fixada nu m género, é semp re diversa quanto ao seu conteúdo. Citando-o, “(…) A utilização do termo «fórmula», na descrição das composições orais levanta-nos um (…) proble ma que te m a ver co m a perspetiva de que funciona, em parte, co mo u ma espécie de mne mónica e, e m parte, co mo u ma espécie de quadro estrutural, ou de elo de ligação. «Uma cultura oral pode produzir – isto é, encenar – epopeias orais como uma certa extensão, por serem compostas de fórmulas e elementos temáticos facilmente memo rizáveis». (…) Nas sociedades sem escrita as formas orais estandardizadas estão na sua maioria mais pró ximas do pólo da variação do que do outro e xtre mo do continuum, a repetição. Ou seja, podem ser estandardizadas em re lação ao «género», ou por contraste com a sintaxe do enunciado corrente ou, ainda, quanto a aspetos específicos na sua construção; mas não o são necessariamente quanto ao seu conteúdo” (id.: 135-136)

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palavra e da inscrição do pensamento num “quadro bidimensional”, remete para um tipo de racionalidade formal, “domesticada”, cujos processos de descontextualização e de recombinação passam a ser examinados em função dos usos sociais dos quais resultam. A escrita, para Goody, não terá só a função de conservar a informação, aspeto que aliás não a diferencia do oral; ela assegurará a passagem do auditivo ao visual ao mesmo tempo que pode ser reexaminada por outros e, por isso, alterada.

Grande parte das abordagens que nas últimas décadas se produziram sobre a escrita, dentro de uma perspetiva antropológica, são, apesar de tudo, uma reação a algumas das generalizações feitas por Goody, mas terão ajudado a superar as limitações que durante os anos sessenta do anterior século caracterizaram uma antropologia da escrita: as dicotomias entre o oral e o escrito, o predomínio das noções clássicas de escrita, uma maior atenção sobre as propriedades intrínsecas da escrita (e dos textos escritos), uma relativa desconsideração dos seus atos comunicativos e, por fim, o pouco interesse da presença da escrita nas descrições etnográficas e nos contextos estudados (Reis, 1997). O espectro de abordagens que cobre o estudo da escrita – ou a preocupação quanto às suas origens – não se esgota, porém, nem na história nem na antropologia. No entanto, para Jacques Anis, citado atrás, as abordagens às origens da escrita fazem parte de uma antropologia “funcional” da escrita que, ao mobilizar os recursos de uma paleontografia e dando ênfase a uma tipologia diacrónica do s seus “traços significantes”, permite perspetivar os seus processos de constituição e de transferência, de passagem entre estados, ou até mesmo inferir uma certa periodização que não deixará, também, de ser cronológica.

Suportes, origens e «sistemas»

As tentativas de reconstrução histórica da escrita põem em evidência um progresso e um declínio. Se por um lado existe a tentação de vermos a escrita sob o ponto de vista do progresso dos seus diferentes esquemas de notação e transcrição da língua, por outro, é como se a ideia do progresso nos surgisse como um derivado natural da evolução das sociedades. Os sistemas de escrita derivariam, assim, uns dos outros, sem modificações essenciais em termos de estrutura, e segundo um processo homogéneo e monogenético. A linha da escrita, quando a «linha» passou a enquadrar a

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letra, seria a linha contínua do tempo, sucessiva e completando o espaço deixado pela anterior. Todavia, e lembrando Derrida, as escritas não se substituem, a não ser, como refere “na medida em que fazem ganhar mais espaço e mais tempo” (Derrida, 2006: 344). A marcação do tempo por meio da escrita sempre se constituiu como uma das maiores obsessões da humanidade: a durabilidade. Reter, notar e transmitir a palavra são processos que se traduzem na procura do suporte capaz de fixar o tempo, lutar contra a sua fugacidade, enganar o perecível. A “coisa” na qual se escreve, ou seja, o suporte, é, independentemente da resistência ao traço, uma matéria subjetiva à qual o sujeito não é indiferente. Durante as primeiras formas de escrita – ou em todas as formas de escrita, na verdade – há uma certa substância que é lançada sob a mão, diria Barthes, um contacto da pele e da matéria, relação essa que “experimenta fatalmente o seu corpo” (Barthes, 2009: 93). Se há, continua ele, subjetivamente “tantas escritas como corpos, há também, historicamente, tantas escritas como suportes”. Por isso,

“(…) o suporte determina o tipo de escrita porque opõe resistências diferentes ao instrumento que traça, mas também (…) porque a textura da matéria (a sua lisura ou a sua rugosidade, a sua dureza ou a sua moleza, até a sua cor) obriga a mão a gestos de agressão ou de ternura. Ora, se os instrumentos são muito limitados, as matérias subjectivas, ao longo da história, foram de uma grande variedade: a pedra, o calhau, a ardósia, o tijolo, o caco, o ouro, o marfim, o vidro, o bronze, o ferro, as placas de cobre ou de prata, as escamas, a madeira, o papiro, a pele, o pergaminho, o tecido, o papel.” (id., ibid.)

Face à diversidade de suportes de inscrição que a humanidade conheceu e conhece, propor uma história da escrita será, porém, e paradoxalmente, uma proposta limitada. Se por um lado, os instrumentos de escrita são limitados, como Barthes considera (ossos, cunhas, lâminas, penas e, mais tarde, a máquina de escrever), por outro, nada nos diz que outros signos não possam ter sido tatuados no corpo, na pele, em talhas, ou em qualquer outro suporte de transmissão gráfica que hoje perdemos. Restituir à materialidade do signo, à heterogeneidade dos sistemas gráficos, uma determinada leitura é um trabalho que lida com limitações de natureza empírica. Novas hermenêuticas, ou parte do conhecimento hoje construído sobre os mecanismos e as práticas de um determinado “sistema de escrita”, tanto podem fazer avançar como recuar as possibilidades da sua interpretação e tradução. Esta ordem de fatores produz

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aquilo que Jean-Louis Calvet diz ser uma história «limitada» da escrita, muito embora ela tenha como objetivo defender que

“Langue et écriture procèdent de deux ensembles signifiants tout à faire différents à la origine, la gestualité et la picturalité. Leurs rapports relèvent de la rencontre de ces deux ensembles qui continuent par ailleurs leurs vies autonomes: l’écriture est de la picturalité asservie à une gestualité (la langue).” (Calvet, 1996: 23)

O pictural e o gestual. Esta tese já terá sido, no entanto, adiantada por diversos teóricos como Jean-Loup Riviére (1987), a propósito do gesto, Jack Goody (1993), sobre a relação entre os modos oral e escrito, ou pelo historiador das escritas cuneiformes, Jean-Marie Durand (2001), e doravante sistematizada por Roland Barthes e Eric Marty (1987). Mas não será o oral/escrito o binómio a partir do qual a origem da escrita frequentemente se deduz?

Segundo Jack Goody, na obra referida em nota anterior, a base física da escrita é claramente a mesma que assiste ao desenho, à gravura e à pintura. Escrever e desenhar – ou as artes gráficas em geral – remetem para a capacidade de um corpo usar e manip ular objetos por meio da mão, uma faculdade que é coordenada, além disso, com o olho, a orelha e o cérebro5. A escrita, o desenho e a pintura encontram-se entre as formas mais arcaicas de inscrição, principalmente com a chegada do Paleolítico Superior (30000- 10000 a.C.), cujo período, usando as palavras de Goody, terá provocado “uma explosão de formas gráficas” em regiões diferentes da Europa, da África e da América do Norte. Esta escrita do gesto, como lhe chama Calvet (1996), remete para as ideias de «incisão» e de «fenda», cujo campo de significação é ainda atestado pela própria etimologia da palavra “escrita”6

. A origem do conceito de escrita, uma «origem» que se diz

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A propósito, Roland Barthes em “Variações sobre a Escrita” diria que esta “faculdade”, referida por Goody do ponto de vista da evolução dos sistemas gráficos, corresponderia a um prime iro níve l de determinação semântica do conceito de escrita, nível esse que remete para uma ideia de “escrição”, isto é, o ato material, o gesto físico, corporal. Citando -o, a escrita é “ (…) 1º Um mov imento manual, oposto ao gesto vocal (podería mos chamar a esta escrita escrição e o seu resultado escritura. 2º É u m reg isto legal