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1.3 VITA ACTIVA

1.3.2 Esfera pública e esfera privada

Ao identificar três atividades fundamentais na vita activa, ARENDT também as dividiu como pertencentes à esfera pública ou à esfera privada, de acordo com a organização que as polis gregas fariam. Ter a Grécia antiga como ponto de referência para a distinção entre privado e público não é simples afinidade. ARENDT identifica que o grego clássico tinha palavras distintas para a associação de seres humanos em busca do suprimento de necessidades (oikia, a casa) e a reunião em uma segunda vida, a bios politikos que se dava na esfera pública através da ação e do discurso e onde o homem poderia ser o zoon politikon. A tradução latina de zoon politikon para animal socialis já não carrega mais a mesma distinção, pois se aproveita da mesma palavra societas que era empregada para qualquer associação em busca de satisfação de necessidades ou um fim comum, ou seja, sem distinção entre o suprimento de necessidades e a vida política86.

A esfera pública grega, o espaço da vida política, incluía apenas a ação, deixando para a esfera privada as atividades que envolvessem necessidade ou utilidade, ou seja, o labor e o trabalho. Nessa esfera os homens são iguais para, livres das necessidades biológicas, garantidas pela esfera privada, manifestarem-se perante os outros e, deste modo, aparecerem no mundo como homens, daí a relação entre a esfera pública e a esfera da aparência. Nesta esfera, a manifestação do homem como homem político não está restrita ao seu tempo de vida, dando-lhe possibilidade de atingir um grau de imortalidade ao ser-lhe atribuída excelência (arete em grego)87.

85H.ARENDT, HC op. cit. p 333-338 86H.ARENDT, HC op. cit. p 31-36 87H.ARENDT, HC op. cit. p 47-68

A esfera privada, por sua vez, envolvia a família, a propriedade (condição para participação na esfera pública) e as atividades ligadas à sobrevivência e à utilidade (labor e trabalho). Na antiga Grécia, esta esfera estava dominada pela desigualdade, sobretudo por uma hierarquia entre o senhor da casa e todos os demais. ARENDT destaca que a ideia de propriedade, neste momento, não era acumulação de riqueza, antes, estava relacionada à morada, à gestão de uma família (aí inclusos escravos) e à condição para participação na esfera pública. No entanto, uma vez permitida essa participação, a eventual sobrevinda da condição de pobreza (improdutividade da terra, por exemplo), não excluiria o homem da esfera pública, enquanto o banimento da esfera pública implicaria na expropriação de terras. Com relação à esfera pública, se, por um lado, a esfera privada significava não ter a possibilidade de manifestar-se como homem político, por outro era um recanto distante do mundo que possibilitava ao homem alguma tranquilidade88.

O equilíbrio entre as esferas pública e privada não durou. ARENDT chama de ascensão do social o desequilíbrio em favor da esfera privada – das atividades da esfera privada – ao tornar a propriedade preocupação pública. A partir daí a esfera pública tornou-se uma organização de proprietários, que se quer poderia falar de riqueza comum, uma vez que riqueza envolve consumo e, portanto, individualidade. A conversão de propriedade em acumulação de riquezas foi outro fator de desequilíbrio, que transformou a propriedade, de gestão de atividades para o suprimento de necessidades em característica pessoal. A propriedade perdeu, assim, a característica de ser o lugar do homem no mundo, passando a ser um atributo pessoal quantificável que finalmente incluiu a capacidade para o labor e o trabalho89.

A confusão entre as esferas tornou o espaço político servo das atividades da esfera privada enquanto ela a própria foi atingida pela publicidade, pela falta de tranquilidade. Em termos políticos, a expansão da esfera privada sobre a esfera pública significou, por um lado, a desvalorização da ação como atividade humana e, por outro, a própria organização do governo como uma grande casa, destinada a gerar riqueza. A esfera pública perdeu seu caráter de liberdade enquanto participação entre iguais e o poder a ela inerente teve de ser substituído

88H.ARENDT, HC op. cit. p 68-82 89H.ARENDT, HC op. cit. p 78-83

pela violência, equivalendo o governante ao senhor, que dominava seus escravos. Já a esfera privada teve de buscar na intimidade uma nova forma para garantir alguma saída do mundo da aparência, solução esta que, todavia, é mais frágil com relação à exposição pública do que era a propriedade. Sendo assim, ambas as esferas sofreram com o desequilíbrio, alterando a ação política e a relação do poder com as demais atividades da vita activa90.

As reflexões de ARENDT sobre “o que estamos fazendo”, sobre a distinção entre esfera pública e privada e respectivas atividades podem parecer uma exaltação a uma Grécia que parece nunca ter existido, ou seja, utópica. No entanto, ARENDT não pregava um retorno à Antiguidade e reconhece que aos gregos só foi possível constituir aquele espaço público porque haviam se libertado da obrigação de laborar para suprir as próprias necessidades vitais por meio do domínio sobre os escravos. Muito diferente de ser um louvor à utopia grega, o estudo da condição humana foi uma busca pela atividade enfraquecida da ação, cuja importância, outrora máxima, encontra-se reduzida. A percepção dessa ação perdida, mas relevante para o ser humano foi o que permitiu a ARENDT notar os esforços humanos para retomar o espaço público – como as revoluções do século XVIII – e os exemplos de ação presentes no mundo atual – como as manifestações pacíficas e as associações civis de interesses políticos. Foi possível para ARENDT traçar uma diferença entre poder e violência e perceber emergências do poder no mundo atual, porque ela se apoiou nessa busca da ação por retomar sua posição perdida.

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