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PLANO DE EVOLUÇÃO DA TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS

Embora a designação “teoria dos sistemas” seja recente, o uso do termo “sistema” nas ciências é antigo. Há, entretanto, um consenso atribuindo a Ludwig VON BERTALANFFY o conjunto de mudanças nos paradigmas científicos a que atualmente chama-se Teoria dos Sistemas194. VON BERTALANFFY, austríaco com formação em Biologia, publicou em 1968 a obra intitulada “Teoria Geral dos Sistemas: Fundamentos, desenvolvimento e aplicações”, condensando esforços científicos iniciados cerca de quarenta anos antes. O próprio VON BERTALANFFY atribui à Teoria Geral dos Sistemas caráter interdisciplinar e revolucionário. Isto significa que, embora a teoria houvesse sido elaborada para superar problemas encontrados por ele e seus colegas na análise mecanicista dos seres vivos, poderia ser aplicada a diversos campos de conhecimento. A respeito da aplicação da teoria dos sistemas nas ciências sociais, o autor afirma que “a ciência social é ciência dos sistemas sociais”195.

194 N.LUHMANN, Social Systems, Stanford: Stanford University Press, 1995 (doravante SS), p 6, N.LUHMANN, Introducción...op. cit. p 45 nota 2; L. VON BERTALANFFY, Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações, 4ª ed. Petrópolis: Vozes, p 63 (doravante GST) V. ainda W.BUCKLEY, A Sociologia e a Moderna Teoria dos Sistemas, 2ª ed. São Paulo: Cultrix, p 62-67.

Duas foram as principais mudanças provocada pelos estudos de VON BERTALANFFY: a superação do modelo mecânico de sistemas como partes que formam um todo com a introdução do modelo que relaciona o sistema com seu ambiente (e daí a distinção entre sistemas abertos, que se relacionam com seus ambiente, e fechados, que não se relacionam) e a interdisciplinariedade, o postulado firmando que poderia haver uma teoria que não se restringisse apenas a um campo do conhecimento, como a física ou a matemática, mas que pudesse encontrar linhas gerais entre todos os sistemas permitindo analogias. A Teoria Geral dos Sistemas não seria, portanto, uma supremacia de leis da física ou da matemática, mas sim uma “isomorfia das leis em diferentes campos”196.

O esforço de reunião deu frutos (inclusive com a fundação da atual International Society for the Systems Sciences – ISSS197). Diferentes teorias gerais podem ser relacionadas com a teoria geral dos sistemas: teorias matemáticas (a teoria clássica dos sistemas), teorias da computação, teorias dos compartimentos, dos conjuntos, dos gráficos, das redes, a teoria da informação, teoria dos autômatos (maquina de Turing), teoria dos jogos, teoria da fila, teoria da decisão e também a cibernética que, apesar de ser confundida com a teoria dos sistemas como um todo, trata dos sistemas capazes de autorregulação198. Por conta dessa amplitude, LUHMANN diz ser a Teoria Geral dos Sistemas menos um conjunto consolidado de axiomas, conceitos e afirmações e mais uma designação de esforços científicos coletivos199.

A amplitude de temas também levou os teóricos sistêmicos a manter sempre em mente uma clara distinção em três níveis de sistemas: mecânicos, biológicos e sociais. LUHMANN ainda acrescenta a essa lista os sistemas psíquicos200. No campo das ciências sociais, o primeiro atrativo da teoria dos sistemas foi a teoria da organização. A teoria dos

196 N.LUHMANN, SS op. cit. p 6-7; L.VON BERTALANFFY, GST op. cit. 54-81

197Conforme a própria ISSS, seus objetivos são “to investigate the isomorphy of concepts, laws, and models in various fields, and to help in useful transfers from one field to another; to encourage the development of adequate theoretical models in areas which lack them; to eliminate the duplication of theoretical efforts in different fields; and to promote the unity of science through improving the communication among specialists.” Em tradução livre “Investigar a isomorfia de conceitos, leis e modelos em diferentes campos e auxiliar em transferências úteis de um campo para o outro; Encorajar o desenvolvimento de modelos teóricos adequados em áreas nas quais eles são insuficientes; eliminar a duplicação de esforços teóricos em diferentes campos; e promover a unidade da ciência ao melhorar a comunicação entre especialistas”. Disponível em <www.isss.org>, acesso em novembro de 2010.

198 L.V.BERTALANFFY, GST op. cit. p 40-44 199 N.LUHMANN, SS op. cit. p 16-17

sistemas, vendo-os como complexidades organizadas, inclusive com o desenvolvimento da cibernética e da teoria da organização conferiam à sociologia (1) uma linguagem comum com disciplinas de comportamento; (2) técnica para lidar com organização complexa; (3) enfoque sintético ou “no todo” e não em partes isoladas; (4) possibilidade do uso das teorias da informação e da comunicação; (5) possibilidade de estudo das transições e estruturas flexíveis e (6) estudo operacionalmente definido ou, em termos mais simplórios, mais exato da sociedade201.

Os primeiros passos em direção a uma teoria dos sistemas sociais nos termos de VON BERTALANFFY foram dados com a superação de teorias behavioristas, da compreensão dos seres humanos como igualmente passíveis de condicionamentos e a compreensão do ser humano como sistema de personalidade ativa, inclusive capaz de criar um universo próprio de símbolos (sociocultura). Neste ponto a sociologia sistêmica compreendia a sociedade como um sistema aberto, que realiza trocas com o ambiente por meio do esquema de entradas (inputs) e saídas (outputs), dirigidos por feedbacks. Talcott PARSONS é o nome de destaque, com sua Teoria do Sistema Social202.

A virada seguinte para a teoria dos sistemas e para a teoria dos sistemas sociais é a teoria dos sistemas autorreferenciais e a teoria da autopoiese, nenhuma delas inicialmente concebida por sociólogos, mas ambas permitindo a compreensão dos sistemas autorreferenciais com o auxílio do conceito de observação e, mais importante ainda, de auto- observação203. O próprio LUHMANN é um representante desta “virada”, tendo passado de sociólogo de sistemas abertos para inaugurar a sociologia baseada em sistemas autorreferenciais.

Para entender o plano de evolução da teoria da sociedade de LUHMANN, o estudo de seu percurso intelectual feito por ARNAUD e GUIBENTIF fornece um ponto de partida204. Ao analisarem exaustivamente os artigos de LUHMANN, os autores sugerem distinguir dois

201L.VON BERTANLANFFY,GST op. cit. p 74-81; W.BUCKLEY, A sociologia e a moderna teoria dos sistemas… op cit p 66-67

202L.VON BERTANLANFFY, GST op. cit. p 246-52; W.BUCKLEY, A sociologia e a moderna teoria dos sistemas… op.cit. p 44-55; N.LUHMANN, Introducion... op. cit, p 30-59.

203 N. LUHMANN, SS op. cit. p 8-11; N. LUHMANN, Introduccion... op. cit. p 77-95 V infra itens 2.3.2. Observação e Referência 2.3.5 Fechamento operacional.

momentos em sua obra: a fase inicial, em que a preocupação principal de LUHMANN é uma sociologia funcional-estruturalista, em oposição ao estruturalismo-funcionalista, com enfoque justamente na definição de função e uma fase seguinte em que o enfoque é a teoria dos sistemas. Não obstante demarcarem enfoques de cada fase, os autores mostram que ao longo da obra de LUHMANN, conceitos como a diferença sistema/ambiente e a autorreferência já estão presentes desde cedo, bem como a função permanece como relevante para a teoria da sociedade até o final.

O primeiro momento da produção acadêmica de LUHMANN pode ser demarcado entre a publicação do artigo “Der Funktionbegriff in der Verwaltungswissenschaft” (O conceito de função na ciência da administração, 1958), seguido pelo “Funktion uns Kausalität” (Função e Causalidade, 1962). Embora a ideia de sistemas sociais (relacionados ainda à ação) fosse levantada em artigos de 1964 e 1967, somente em 1981, com o artigo de abertura do terceiro livro da série “Soziologische Aufklärung” (Iluminismo Sociológico), que a mudança para a teoria dos sistemas estaria finalmente anunciada. Já em 1975, LUHMANN teria deixado clara sua tendência a uma “teoria dos sistemas autorreferenciais”, afirmando, em palestra proferida por ocasião do Festival de Ciências Sociais de Amsterdã, que não havia uma teoria satisfatória a respeito dos sistemas autorreferenciais para ser aplicada à sociologia. Na mesma linha, em 1980, demonstraria interesse nas tentativas de suprir essa falta pela cibernética e pela teoria da autopoiese. Outros marcos acadêmicos também poderiam ser tomados, como a adoção da comunicação como elemento da sociedade, ao invés da ação e a passagem da teoria de sistemas abertos para a teoria de sistemas autopoiéticos, ambos tendo como marco principal a publicação de “Autopoiesis, Handlung und Kommunikative Verständigung” de 1982205. Seja qual for o marco tomado, é importante notar que, durante os anos 70 e 80 LUHMANN adotou o conceito de comunicação como elemento da sociedade e passou a compreender os sistemas sociais como autorreferenciais, deixando de usar a terminologia input/output para definir as relações entre os sistemas e seus ambientes. Para efeitos deste trabalho, os artigos e livros de LUHMANN que entendam a relação dos sistemas com seus ambientes em termos de input/output serão considerados de uma primeira fase,

205 A.ARNAUD etP.GUIBENTIF, Niklas LuhmanN observateur du droit op. cit. p 15-26: D.RODRÍGUEZ. Nota a la version en espagnol. In N. LUHMANN, Organizacíon y Decisíon. Autopoiesis, accíon y entendimiento comunicativo. 1ª ed. 1ª reimpr. Mexico: Universidad Iberamericana, Barcelona: Anthropos. 2005 (1997).

enquanto aqueles que trabalham com os sistemas sociais como autopoiéticos, de uma segunda fase.

Ao longo de toda a sua carreira, LUHMANN abordou uma grande diversidade de temas, culminando com a série de livros dedicados aos sistemas parciais da sociedade: Die Wirtschaft der Gesellschaft (A Economia da Sociedade, 1988), Die Wissenschaft der Gesellschaft (A Ciência da Sociedade, 1990), Das Recht der Gesellschaft (O Direito da Sociedade, 1993), Die Kunst der Gesellschaft (A Arte da Sociedade, 1997) e os de publicação póstuma: Die Politik der Gesellschaft (A Política da Sociedade, 2000), Die Religion der Gesellschaft (A Religião da Sociedade, 2000), Das Erziehrungsystem der Gesellschaft (O Sistema Educacional da Sociedade, 2002), Die Moral der Gesellschaft (A Moral da Sociedade, 2008).

Tal amplitude de temas dificulta estabelecer um “cânone” luhmaniano e a própria coerência entre as obras (facilmente verificável não obstante as mudanças de paradigma acima mencionadas) torna essa eleição contingente. Certamente constariam de um cânone os livros gerais, “introduções” aos demais, Soziale Systeme: Grundriβ einer allgemeinen Theorie (Sistemas Sociais: plano de uma teoria geral, 1984) e Die Gesellschaft der Gesellschaft (A Sociedade da Sociedade, 1997). Outros como Essays on Self-Reference (Ensaios sobre Autorreferência, 1990) e Teoria della societá (Teoria da sociedade, escrito junto com Rafaelle di Giorgi, 1992) também seriam fortes candidatos a formar a quintessência da teoria de LUHMANN. Da mesma maneira são importantes para compreender da teoria geral dos sistemas sociais a série de coletâneas de artigos Soziologische Aufklärung, contendo seis volumes, (Esclarecimento Sociológico, 1974, 1975, 1981, 1987, 1990, 1995) e a transcrição do curso apresentado na universidade de Bielefeld no inverno de 1992, Introducción a la Teoría de Sistemas206.

Situada a teoria dos sistemas sociais no plano da Teoria Geral dos Sistemas e também vistos os dois momentos da obra de LUHMANN, é possível abordar diretamente a teoria, sempre buscando partir dos conceitos mais abstratos para os mais concretos. Como

206 O título original em espanhol se deve ao fato de haver uma versão em espanhol transcrita por Javier TORRES NAFARRETE, e outra, alemã transcrita por Dirk BAECKER. A publicação em espanhol é de 1996, enquanto a alemã veio a público em 2002 e há ligeiras diferenças entre elas. Utilizo aqui a versão de TORRES NAFARRETE.

cânone, este trabalho irá utilizar, em geral, o trio Soziale Systeme, Die Gesellschaft der Gesellschaft e Introducción a la teoria de Sistemas, embora cada tópico traga referências a artigos específicos sobre o conceito tratado.

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