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ARENDT via-se mais como uma pensadora do que como pessoa de ação. Sua posição semelhante à dos filósofos – que assistem aos jogos olímpicos, como disse Pitágoras – permitia-lhe compreender a ação e sua relação com o labor e o trabalho, as três atividades da vita activa. No entanto, ARENDT não se considerava uma filósofa e insistia que seu meio era a Teoria Política. Note-se que ela não considerava lecionar e escrever o mesmo que pensar, pois estas já são atividades que vão além da contemplação (escrever, por exemplo, pode ser visto como uma forma de trabalho). ARENDT não supunha haver uma relação obrigatória entre a teoria política e a ação. Não desejava doutrinar seus alunos durante as aulas e guiá-los para uma ação supostamente correta. Embora reconhecesse que o pensamento tem influência na pessoa que age, ARENDT via na contemplação uma atividade que só pode ser feita de maneira solitária, oposta à ação, que só pode ser realizada em conjunto com outras pessoas. A teoria, assim, precisaria primeiro passar pela consciência daquele que age para, então, mudar a ação36.

32 H. ARENDT, Crises da República ,São Paulo: Perspectiva 2006 Neste livro foi publicado o ensaio On Violence (OV), no qual ARENDT se dedica a distinguir poder e violência.

33 H. ARENDT, Homens em Tempos Sombrios ,São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (MDT) 34 H. ARENDT, A Vida do Espírito ,Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,2010 (LM)

35 H. ARENDT, O que é que fica? op. cit. A.ENEGRÉN, La pense politique...op. cit., p 20-21, M.MCCARTHY, Nota da editora americana in H.ARENDT, LM...op.cit. p 13-14

36 H. ARENDT, O que fica? op. cit. H.ARENDT, On Hannah ARENDT...op.cit p 303-305, 310. H.ARENDT, LM op.cit. p 111-117. V. infra item 1.3 Vita Activa.

A vita contemplativa, de modo semelhante à vita activa, é descrita por ARENDT como sendo composta de três atividades: pensar, querer e julgar. O pensar é carregado pelo debate entre aparência e essência, entre ser e parecer, ou melhor: aparecer no mundo. Esta distinção entre ser e aparecer é, no entanto, uma falácia, pois no mundo ser e aparecer coincidem: tudo é percebido por outro, de modo que sujeitos são objetos e vice-versa, sendo “a pluralidade a lei do mundo”. Se a filosofia clássica buscava encontrar o ser além da aparência, a filosofia atual, que sofreu uma ruptura com sua herança, pôde inverter a ordem de importância e pensar o mundo como ele aparece. O poder, que existe justamente no espaço da aparência, no espaço plural de seres humanos, é na medida em que aparece37.

Apesar de suas considerações sobre a aparência, ARENDT não pode ser classificada como construtivista. Sua obra não admite que não exista uma realidade, ou que ela só possa ser conhecida através de construções humanas, ainda que descreva a evolução da filosofia e da ciência como tendo se apegado a construções humanas para poder compreender o mundo. Ainda assim, como em Husserl, sua visão de mundo é fenomenológica, ou seja, refere-se ao mundo como ele é experimentado, como aparece (fenômeno), não sendo possível uma verdade única. No entanto, ela não elimina a verdade – que é o objetivo do conhecer – de sua teoria, mas reconhece que a verdade filosófica é diferente da verdade política38.

Do mesmo modo que o pensamento é individual, a verdade filosófica é relativa ao homem em sua singularidade39 e a verdade factual, como a ação, precisa da interação entre homens para se firmar. A verdade política, a verdade presente na ação, é factual e concorre sempre com a opinião. Ambas, verdade política e opinião, precisam ser comunicadas para aparecer, mas a verdade política carrega um elemento de coerção. A verdade política ou

37 H. ARENDT, LM...op. cit. p 17-56. C.Lafer, O sopro do pensamento, o peso da vontade e o espaço público do juízo – Dimensões filosóficas da reflexão política de Hannah ARENDT, in C. LAFER, Hannah ARENDT: Pensamento Persuasão e Poder op. cit. p 71-75

38 H. ARENDT, Verdade e Política, in H. ARENDT, Entre o Passado e o Futuro, 6ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2009. p 282-325

39 ARENDT recorda muitas vezes a condição do filósofo que, ao retirar-se do mundo para pensar, dialoga consigo mesmo e, portanto, é duas pessoas em uma, uma diferença que se torna unidade quando o filósofo retorna ao convívio com outros e expõe suas ideias. Nesse sentido, por mais apolíticas que sejam as atividades da vita contemplativa, não são atividades solitárias. v., e.g., H.ARENDT, OT op. cit. p 528-529; H.ARENDT, LM op. cit. 202-216.

factual coage, porque está além da discussão de opiniões40. Este elemento de coerção torna a verdade incômoda para os governantes – tiranos, sobretudo – pois não podem monopolizá-la. Também a verdade factual é inquietante porque, ao lidar com ações humanas, carrega um elemento de contingência – poderia ter sido de outro modo. Nisto se encontra a fragilidade da verdade factual, que por seu caráter contingente aproxima-se da opinião e pode ser alterada, fatos e eventos simplesmente apagados41.

Esta ação, que distorce ou apaga a verdade factual, constitui a mentira. Diferentemente da verdade filosófica, cujo oposto é o erro, a verdade factual é oposta à mentira. Ao longo da história da filosofia e da teoria política, não parece haver muito interesse pela mentira comum, mas ARENDT vê na mentira organizada e generalizada um problema de primeira ordem. Neste caso, a mentira não é um segredo guardado do inimigo, é uma violência aberta, porque se refere a fatos que todos conhecem e criam, assim, uma autoilusão. Neste baixo nível, verdade e política entram em conflito. A verdade factual constitui, assim, um limite para a política, que não pode (ou não deveria) mudar os eventos ocorridos42.

ARENDT é conhecida por sua forte relação com os pensadores clássicos, tanto os grandes filósofos da antiguidade, de PLATÃO e ARISTÓTELES a SANTO AGOSTINHO, quanto MAQUIAVEL, KANT, HEGEL e, de um modo certamente crítico, não obstante a admiração, MARX. Toda esta linha, desde PLATÃO até MARX foi descrita por ARENDT como uma tradição da Filosofia política que se iniciou com a retirada do filósofo do espaço político e terminou com um clamor por seu retorno à ação. Essa tradição foi rompida com a ascensão dos movimentos totalitários ao poder. Nesse sentido, a rebelião contra a tradição filosófica não foi

40 Coerção significa que a verdade factual está além da opinião. Seria, por exemplo, um tanto quanto absurdo alguém dizer que não concorda que está chovendo quando lhe cai uma tempestade sobre a cabeça.

41 H. ARENDT, Verdade e Política, in H. ARENDT, Entre o Passado e o Futuro, 6ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2009. P 282-325; H. ARENDT, A Mentira na Política – Considerações sobre os Documentos do Pentágono, in H.

ARENDT, Crises da República, 2ª ed., 2ª reimp, São Paulo: Perspectiva, 2006. p 9-48. Prosseguindo com o exemplo da chuva, se a afirmação fosse “usei um guarda-chuva ontem, enquanto chovia”, há um elemento de contingência próprio da ação humana (neste caso extremamente simplificada). Em termos simples, posso estar mentindo e não ter usado nenhum guarda-chuva, mas somente serei desmarcarada de alguém, preferencialmente mais de uma pessoa, relatar o fato de modo diferente. Um exemplo de governo que elimina a verdade foi o stalinismo, que eliminou Trotsky da história da revolução russa.

causa das grandes guerras do século XX, mas apenas a constatação do surgimento de problemas com os quais a tradição não poderia mais lidar43.

A ruptura na tradição não pode ser desfeita e não foi intenção de ARENDT fazê-lo. Ao buscar na tradição a origem dos conceitos com os quais iria trabalhar, seu esforço foi o de compreender o que fora perdido44. No entanto, especialmente no que tange à visão de ARENDT sobre o modelo político da antiguidade helênica, há uma boa carga de críticas. Do mesmo modo que ARENDT não pretendeu reatar com o passado, não é o escopo deste trabalho contrapor a interpretação de ARENDT dos clássicos com as obras originais (o que seria, de certa maneira, uma tentativa de comparação da obra dela com a tradição). O que se intenciona aqui é apresentar a filosofia clássica tal qual ela expôs em suas obras como princípios para chegar à conclusão da relação de oposição entre poder e violência sobre a qual ela erguerá suas considerações acerca da importância de eventos históricos e da situação da política contemporânea. Com esta meta em vista, é dever deste trabalho dar à autora o merecido crédito por sua interpretação dos clássicos e deixar a contraposição com as obras originais para estudos futuros.

A definição de poder em ARENDT está ligada a seu conceito de ação, atividade possível apenas entre seres humanos e relacionada com o discurso. A oposição entre poder e violência é uma decorrência dessa associação entre poder e ação. No conjunto de suas obras, a oposição entre poder e violência desempenha o papel de premissa a partir da qual problemas da política são identificados. Este conceito de ação como atividade entre seres humanos é um dos pilares da obra de ARENDT e é possível encontrar relações entre o poder e todos os temas tratados por ela. O presente trabalho, estando restrito apenas à relação entre poder e violência no Estado de Direito, que na obra de ARENDT pode ser identificado com a República45, não poderá tratar de todos os temas alcançados por ARENDT com a profundidade que as reflexões da autora permitem. O estudo estará atendo-se àqueles temas que demonstram com maior clareza como a relação entre poder e violência se manifesta no Estado de Direito. Deste modo,

43 H.ARENDT, A tradição e a época moderna in H.ARENDT, Entre o passado e o futuro op. cit.,

44 H.ARENDT, Prefácio: A quebra entre o passado e o futuro in H.ARENDT, Entre o passado e o futuro op. cit. 45ARENDT não se apega à definição de Estado de Direito como rule of law ou traça uma sua. Em certo momento, faz uma identificação entre república e “governo de leis e não de homens” (H. ARENDT, OR..op. cit, p 225),

identificação essa que é condizente com sua visão de república. No entanto, é importante lembrar que ela não igualava república a representação ou a democracia. V. Infra itens 1.4.1 Revolução. e 1.5 Poder e Violência na República

apresenta-se primeiro a (i) distinção feita por ARENDT entre poder e violência, situando-a, então, (ii) na descrição da vita activa, com especial destaque para a ação e o espaço público para então (iii) verificar como a autora abordou os temas históricos da revolução, a fundação da república e o totalitarismo e finalmente, (iv) apresentar como a distinção entre poder e violência está presente nas República, especialmente nas questões da liberdade, autoridade e das leis mentira na política.

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