• Nenhum resultado encontrado

1.3 VITA ACTIVA

1.3.1 Inversões

Já foi apontado que ARENDT identifica, ao longo da história, duas inversões principais na condição humana: a inversão entre vita activa e vita contemplativa e as inversões dentro da hierarquia de atividades da vita activa. A própria vita contemplativa, desde o início, com a filosofia de Platão e Aristóteles realizou inversões, valorizando, naturalmente, a própria vita contemplativa em detrimento da vita activa e, dentre as atividades fundamentais, dando especial consideração ao trabalho, por seu caráter criador e perene77.

A filosofia helênica deu início àquilo que se consolidaria na idade média com o cristianismo: a identificação da vita contemplativa como forma de alcançar a revelação da verdade filosófica. Durante toda a antiguidade clássica e idade média a contemplação foi vista como pensamento, o diálogo interior, que permite ao filósofo emergir da caverna em perfeita singularidade e que não pode ser expressa em palavras (portanto, não pode ser satisfatoriamente manifestada no campo da ação). Esta posição superior da contemplação somente foi posta em dúvida, de acordo com ARENDT, na época moderna, frente a dois acontecimentos: a invenção do telescópio e a publicação das considerações de Descartes sobre a dúvida78.

A invenção do telescópio torna-se um marco representativo da inversão entre contemplação e ação por ser a fabricação de um instrumento (trabalho) que permite ao ser humano contrapor suas conjecturas com informações antes inacessíveis. ARENDT vê nessa invenção o ponto em que o ser humano passa a contar com instrumentos para a percepção da realidade, pois, sem instrumentos, dependendo apenas de seus sentidos e intelecto, provavelmente seria levado ao engano. Esta perplexidade levaria ao abandono da verdade como revelação e a instauração da dúvida como regra, representada pelo pensamento cartesiano. A dúvida, o questionamento tornou-se a única certeza, conduzindo à alienação do mundo, à confiança apenas no mundo como produto humano, daí a exaltação da matemática como forma de descrever o mundo. “Mesmo Deus não pode fazer com que duas vezes dois

77 ARENDT comenta que os filósofos não são afetos à política. H.ARENDT, O que fica?...op.cit. p12 78H.ARENDT, HC op. cit. p 28-29, 302-307

não seja quatro79”, ARENDT cita diversas vezes esta frase de Grotius para indicar a independência da matemática como instrumento de observação do mundo como produto do ser humano. A partir da instauração da dúvida e da dependência dos instrumentos fabricados pelo homem (abstratos ou não), a filosofia, como contemplação, foi relegada a auxiliar da ciência e o ser humano isolou-se do mundo, voltando-se para de si mesmo e suas obras80.

A astronomia, descendente do telescópio, ainda é o melhor exemplo desta inversão: Não é preciso ver um planeta para saber que ele está lá, calcula-se a partir de determinados dados como a órbita de outro corpo celeste, ou o espectro luminoso da estrela a qual ele circunda e, mesmo que ninguém jamais o tenha visto com os próprios olhos, o planeta existe. No entanto, ele existe a partir de construções humanas, tanto teorias, como máquinas e cálculos, não como revelação intelectual.

Nesta inversão entre vita contemplativa e vita activa nota-se já uma predominância do trabalho no modo de vida. Esta vitória, como ARENDT chama, levou a uma descrição de mundo relacionada à manifestação do ser humano como homo faber, representando até mesmo Deus como um criador de universo mecânico complexo. Mais ainda, o mundo foi compreendido como um processo e, ao glorificar-se a atividade, a própria fabricação começou a ser mais importante do que o resultado final do processo81.

Do ponto de vista do homo faber, a ação é identificada como ócio ou inutilidade e, como recíproca, a ação considera o trabalho como atividade inferior e pré-política. Nas polis gregas, onde a ação tinha grande destaque, até mesmo a legislação – o produto final de um trabalho – era considerada pré-política e simplesmente uma ordenação que poderia ser fabricada até mesmo por estrangeiros. Já na mesma Grécia antiga, os grandes filósofos, que louvavam o trabalho em detrimento da ação, afirmavam, a partir de sua contemplação, o ser trabalho legislativo o verdadeiro governo, equiparando o legislador a um artesão. Com a chamada vitória do homo faber, a política foi identificada com o trabalho do legislador, não com a ação, reduzindo a importância desta para a vita activa. Nesse sentido, a monarquia tornou-se uma forma de governo preferível, por ser muito mais produtiva do que a

79 A própria ARENDT relembra que esta frase foi dita no contexto de limitações do poder político, não divino. 80 H.ARENDT, HC op. cit. p 260-307.

democracia. Da mesma maneira, a monarquia também seria a melhor forma de desprezar as diferenças e divergências entre os homens, um modo de garantir a segurança e a estabilidade próprias do mundo fabricado do homo faber. No entanto, esta substituição da ação pela fabricação exigia que o governo tivesse um fim, o que deu origem às muitas teorias políticas que tentam apontar como o fim do governo a proteção dos bons, a salvação da alma, o progresso ou mesmo a promoção da felicidade82.

Esta última finalidade mencionada para o governo, a promoção da felicidade, esconde a chave para compreender outra inversão na hierarquia de atividades da vita activa, aquela que colocou o labor acima de todas as outras atividades. O próprio valor do produto do homo faber tornou-se valioso na medida em que proporcionava felicidade e não mais utilidade83. A felicidade, relacionada a dores e prazeres, identifica-se com a vida individual e a sobrevivência, portanto, com a atividade do labor, não da fabricação. Esta glorificação da vida é identificada por ARENDT como consequência de uma sociedade cristã, que doutrinariamente valoriza a vida. No entanto, a doutrina cristã pôde contrabalancear a importância da sobrevivência terrena com a posição superior em importância da vida após a morte. A partir do momento em que houve uma crise de fé, iniciada pela dúvida cartesiana, a imortalidade da alma também foi questionada, restando apenas a sobrevivência terrena como valor. A partir daí o animal laborans tomou a posição superior nas formas de manifestação do ser humano84.

Deste modo, ARENDT identifica que as inversões pelas quais os modos de vida humana passaram ao longo da história deixaram consequências: a contemplação foi praticamente excluída como modo de vida. A ação passou a ter o caráter de fabricação e a própria fabricação apenas mais uma forma de sobreviver. No entanto, ela não termina sua análise da condição humana de forma pessimista. ARENDT não afirma que o ser humano perdeu qualquer uma das capacidades, mas as vê reduzidas, a fabricação à arte e o agir ao

82 H.ARENDT, HC op. cit. 205-211, 232-247, 312-314

83 Curiosamente, ARENDT invoca J.BENTHAM, o marco do utilitarismo, para demonstrar essa inversão entre utilidade e felicidade. De fato, o utilitarismo de BENTHAM reverte-se na fórmula da maximização da felicidade e a

razão para ARENDT diferenciá-lo do utilitarismo atrelado ao trabalho é justamente essa: a felicidade não é um uso posterior do produto, é consumo.

início de processos. O próprio pensar, não obstante ter sido afastado, continua essencial para o futuro85.

Documentos relacionados