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O ensaio que constitui o paradigma para o início de qualquer analise do conceito de poder na obra de ARENDT é “On Violence”, publicado pela primeira vez em 1969 na coletânea “Crisis of the Republic” e, um ano depois, como livro singular. Esse ensaio não pretendia ser um paradigma conceitual, mas antes, reflexões ligadas aos movimentos estudantis de 1968, às manifestações de líderes do movimento Black Power, a publicações da chamada “nova esquerda” e a acontecimentos bélicos de relevância mundial, como as reações da União Soviética às tentativas de liberação democrática na Tchecoslováquia, relembrando, a partir daí, a Revolução Húngara de 1956. Não obstante o caráter reflexivo, o ensaio expõe com clareza o conceito de poder que aparece por toda obra anterior de ARENDT, bem como esclarece a relação deste com a violência46.

“On Violence” está estruturado em três partes: a primeira, em que ARENDT expõe o problema, tanto extraindo dos textos da nova esquerda os trechos que exortam a violência, quanto mostrando algumas situações, especialmente manifestações estudantis, em que a violência e a não-violência foram relevantes. A segunda parte é aquela na qual a autora

46 H.ARENDT, Sobre a Violência, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 (OV). V. ainda C.LAFER, Prefácio, in H. ARENDT, Sobre a Violência..op. Cit. e A.DUARTE, Poder e violência no pensamento político de Hannah ARENDT: uma reconsideração, in H.ARENDT, Sobre a violência..op cit. No contexto das manifestações

estudantis nos Estados Unidos, ARENDT dialogará, ao longo do “Sobre a Violência”, especialmente com um livro

que ela considera como popular e emblemático na época: Les Damnés de la Terre, de Frantz Fanon, prefaciado por Jean-Paul Sartre.

apresenta suas definições de poder, violência, vigor, autoridade e força, relembrando que cada uma representa um estado puro, dificilmente encontrado na realidade. Por fim, ela retoma os problemas que lhe provocaram as reflexões expostas e mostra nelas as relações entre poder e violência. Neste capítulo nos concentraremos nas duas últimas partes, começando (a) pela definição de poder, apresentando em seguida (b) seu oposto, a violência e finalmente, (c) as relações que ARENDT traçou entre ambos.

Para ARENDT as definições de poder que o relacionam a comandos e imposição de vontade, mostrando-o como um instrumento para governar47 são derivadas daquelas existentes no Absolutismo, somadas à noção imperativista das leis, que, por sua vez, ela atribui a uma herança judaico-cristã. O problema que ARENDT encontra nessa linha de definições é que a relação comando-obediência não poderia distinguir o poder da violência e, portanto, não poderia explicar diferenças entre ambos, como as questões do uso de instrumentos pela violência para impor-se, da importância numérica para o poder e da distinção entre justificativa e legitimidade. Esta confusão entre poder e violência (e também entre poder, força e autoridade) oculta o fato que a preocupação da ciência política seria, nessa linha, resumida a “quem domina quem”, quem dá as ordens e quem obedece48.

Perante esses problemas, ARENDT opta por outra linha de definições, aquela da herança ateniense da isonomia e da civitas romana, apresentando sua definição de poder:

O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva unido.49

A legitimidade do poder, assim, é decorrência do “estar junto inicial”, ou seja, busca guarida no passado, quando confrontada50.

47 No original: instruments of rule. A. DUARTE traduziu muito corretamente rule por domínio, mas, neste trabalho, pretendo reservar a palavra domínio para traduzir herrschaft, pois creio que a definição que WEBER

vinculou a esse termo se faz presente nas obras de ambos os autores aqui estudados. Neste caso, rule é usado num sentido mais amplo, por esse motivo optei por outra tradução, sem que isso implique em demérito algum à tradução de A.DUARTE.

48 H.ARENDT, OV op. cit. p 52-55

49 H. ARENDT, OV op. cit. p 60. De modo semelhante em H.ARENDT, HC op. cit. p. 211-212, 256; H.ARENDT, OR op. cit p 215

Este poder que existe entre as pessoas não é um instrumento, é um fim em si mesmo. O máximo que ARENDT considera como utilidade do poder é o fato de que, quanto institucionalizado e organizado sob a forma de governo, possibilite que os seres humanos vivam em conjunto. No entanto, não é necessário que o poder esteja organizado como governo ou Estado, as próprias manifestações dos estudantes no final da década de sessenta (as pacíficas, em Berkeley) são reconhecidas pela autora como dotadas de poder. O governo, uma forma de manifestação do poder, encontra neste sua essência e, quando o poder se desintegra, há espaço tanto para violência quanto para as revoluções51.

O governo institucionalizado atribuirá autoridade a pessoas, organizações ou cargos e guardará relação com o vigor (strength) dos indivíduos. A autoridade é identificada pelo “reconhecimento inquestionável daqueles a quem se pede que obedeçam”, estando, assim, baseada no respeito e não necessariamente vinculada ao governo (pode haver autoridade paterna, dos professores, etc). Já o vigor é uma característica individual, esta sim, passível de ser propriedade. É ao vigor que uma expressão a respeito de “ter poder” se dirige. No entanto, é natural do poder voltar-se contra a independência do vigor, não importa quão equipado seja52.

Estando ligado ao agir em conjunto, o poder tem clara relação com a superioridade numérica. O caso extremo do poder é quanto todos se voltam contra um, e, em casos mais concretos, a maioria contra uma minoria (perceba-se, sem que isso signifique o uso de instrumentos de violência contra a minoria). Do outro lado, a concentração de poder, o monopólio, significa seu decréscimo e “cada diminuição no poder é um convite à violência”53.

A violência, por sua vez, é tratada como violência física, tanto contra pessoas quanto contra objetos (uma demonstração da possibilidade de violência contra pessoas). Sua característica mais marcante é o fato de poder ser instrumentalizada até níveis tão alarmantes que seu próprio uso traria a destruição daquele que a aplica (pensamento constante no período da Guerra Fria). A violência (a atitude violenta) é entendida por seus perpetradores como meio para um fim que a justifica, mas a intensidade da instrumentalização põe em perigo o próprio

51 H. ARENDT, OV op. cit. p 64-70

52 H. ARENDT, OV op. cit. p 61-62. A autora ainda reserva a palavra força (force) para forças da natureza. 53 H. ARENDT, OV op.cit. p 58-59, 68, 106-108

fim. Isto porque qualquer ação humana, não obstante buscar um fim, não pode prevê-lo. Esta imprevisibilidade se manifesta ainda mais veementemente na ação ligada à violência, o que torna seu resultado totalmente inesperado, não importa quantas teorias e maravilhas tecnológicas sejam usadas para tentar prevê-lo. Assim, apesar de ser uma atitude racional e final, a violência altamente instrumentalizada é totalmente imprevisível e poderá destruir o próprio fim ao qual almeja54.

Acompanhando a história do pensamento político, ARENDT nota que, antes da Segunda Guerra Mundial, a violência se fez presente, sobretudo com relação à guerra ou como continuação da política, dentro da lógica meio para fins. Não era uma questão problematizada, era um óbvio, que foi desvelado com o impasse que o mundo se encontrava frente à Guerra Fria. A Segunda Guerra Mundial (que deveria ter alcançado a paz) não se alcançou o fim esperado, mas foi seguida pela Guerra Fria, esta sem combates frontais justamente porque os meios disponíveis não poderiam jamais alcançar o fim da paz, mas sim destruí-lo. Soma-se a isso o fato de a humanidade ter passado, ainda durante a Segunda Guerra, por uma “intromissão maciça da violência criminosa na política”, quer seja pelo genocídio, extermínio de civis em campos de batalha ou tortura. As gerações do pós-guerra passaram inicialmente por um período de rejeição à violência e, em seguida, para uma glorificação dela. ARENDT identifica essa glorificação com a compreensão da história como um processo, que só poderia ser interrompido ou alterado por meio da ação violenta55.

Se faltavam definições das ciências sociais para violência até o pós-guerra, a partir de 1946 surgem pesquisas tanto nas ciências biológicas, na psicologia, como na sociologia e ciência política a respeito da agressividade humana. ARENDT propõe a sua própria análise, ao dar-se por insatisfeita com a produção científica a respeito, tanto por discordar da linha de estudos que vê o ser humano como mais um animal (e assim retornar à definição do homem como animal rationale), quanto por considerar incompleta a abordagem da violência como um ato humano natural e irracional. ARENDT critica a oposição entre emocional e racional. O racional não é desprovido de emoções, pelo contrário, é sensível a elas. A violência é irracional quando se volta contra substitutos, mas é racional quando identificada como única

54 H. ARENDT, OV op. cit. p 44-47 55 H. ARENDT, OV op. cit. p 17-48

forma de “reequilibrar a balança”, sobretudo frente à hipocrisia, à impossibilidade de confiança no discurso56.

A violência, como meio para um fim, não é legitimada, é justificada. A justificativa faz referência a um futuro, o fim a ser alcançado, o “reequilibrar a balança”. Aqui está a primeira incongruência que ARENDT detecta no conceito de violência como fonte do poder ou essência do governo: “aquilo que precisa de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada”. A justificativa, em referência a um fim, este sim, capaz de se autolegitimar (como a paz) pode ser dita racional. A identificação de uma autolegitimação do fim que justifica racionalmente a violência não é, contudo, sinônimo de aprovação da ação violenta pela autora. Na verdade, uma escalada de violência pode vincular-se a uma ideologia de ódio que também apresentará fins autolegitimáveis (ARENDT usa o exemplo do chamado racismo negro nos Estados Unidos, que incitava o ódio aos brancos). Assim, independentemente da justificativa, uma ação violenta certamente mudará o mundo, “mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento.”57

As diferenças entre poder e violência identificadas por ARENDT estão presentes apenas nas formas puras de ambos e, na realidade, poder e violência são frequentemente experimentados em conjunto. Há uma relação entre a manifestação do poder estruturado politicamente e a violência, o que possivelmente levou à associação feita pela teoria política entre ambos. Entretanto, situações como a revolução permitem detectar a disjunção entre poder (estruturado em governo) e violência. A revolução pode surgir no momento de um esfacelamento do poder ligado ao governo, que provavelmente utilizará instrumentos de violência para dar continuidade à estrutura de poder (sem sustentação firme). O embate violento entre revolucionários e governo geralmente leva à derrota dos primeiros, dada a superioridade dos instrumentos de violência do segundo, mas apenas porque o governo conserva, ainda, algum poder (como até mesmo os regimes totalitários mantiveram). Quando o poder se desvincula do governo e se fortalece no grupo revolucionário, é possível que “as armas mudem de lado” (Revolução Húngara de 56) ou que a organização dos menos equipados seja tal que se sobreponha à superioridade tecnológica (caso da guerra do Vietnã).

56 H. ARENDT, OV op. cit. p 77-85 57 H. ARENDT, OV op.cit. p 68-69, 96-101.

Contudo, em um embate entre as formas puras, a violência certamente sairá ganhando. Mesmo assim, de uma vitória da violência sobre o poder não emergirá novo poder, apenas um controle violento que poderá evoluir para um governo de terror58.

Apesar das diferenças que traça entre pode e violência, evidenciando que a atitude violenta dos governos contra a população denota diminuição de poder que não poderá ser reconquistada com o uso de instrumentos de violência, ARENDT verifica a existência de poder na maioria dos governos de sua época. Nesse sentido, é importante destacar que ela não considera a aplicação de sanções contra criminosos como situações graves de uso da violência, pois o criminoso comum não atenta contra o poder, mas antes deseja abrir uma exceção para si mesmo. Entretanto, ARENDT toma o cuidado de não vincular a validade da norma ao comando ou à sanção. A validade (no caso como reconhecimento do dever de cumprir a norma) estaria ligada à própria vontade de pertencer à comunidade, pois “não posso entrar no jogo a não ser que as obedeça [às regras do jogo]”59.

O problema crescente que ARENDT vê nos governos modernos não é a aplicação de sanções contra criminosos, é a burocracia, que concentra o poder, impedindo a participação geral e, portanto diminuindo-o. Soma-se a essa diminuição o fato de ações violenta também parecem ações conjuntas, que dão aos indivíduos um sentido de pertinência a um grupo. Sem poder participar do espaço público vinculado ao governo e desejando escapar à solidão, não seria completamente inesperado que muitas pessoas se unissem a ações violentas como forma de interação com outros indivíduos. No entanto, esse sentido de pertinência não é o mesmo daquele político, relacionado ao espaço público, uma vez que a ação violenta, conjunta ou não, tende a gerar mais violência e não ação política. ARENDT, deste modo, percebe no declínio dos governos (citando a má qualidade de serviços públicos e a obscuridade da democracia), um convite para as agremiações violentas60.

58H.ARENDT, OV op. cit. p 63-74

59H.ARENDT, OV op. cit. Apêndice XI p 122. Nesta mesma ressalva, ARENDT relembra a máxima pacta sunt servanda, o que, para alguns, seria uma indicação de uma fundamentação jurídica contratualista em sua teoria. Nesse sentido ver J.HABERMAS, Hannah ARENDT‟s communications concept of Power in L.P. Hinchman et S.K. Hinchman (orgs.), Hannah ARENDT: Critical Essays, New York: State University, 1994. p 211-230. Cf.

A.DUARTE, Poder e Violência no Pensamento Político de Hannah ARENDT: uma reconsideração. In H.ARENDT,

OV op. cit. p 131-167. Interessante também é destacar que a autora afirma ser uma ilusão o dilema acerca da validade das normas. V. infra item 1.5.3. Leis e Desobediência Civil

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