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5 REFORMAS INCREMENTAIS E DIREITO À SAÚDE: A ATUALIZAÇÃO DOS DISCURSOS E DAS AGENDAS POLÍTICAS

5.3 Uma esfera pública em perigo

As alterações políticas, econômicas e sociais das últimas três décadas impuseram, de forma inequívoca, um novo olhar sobre os direitos políticos e os econômico-sociais, sobre a esfera pública. Após sugestivas alusões a países onde se encontravam sociedades igualitárias, ou com níveis residuais de desigualdade, que se convertiam em um exemplo possível a ser seguido pelos países em desenvolvimento, há uma preocupação com o futuro incerto, e não mais tão róseo, entre as democracias consolidadas do continente europeu. Como afirma Esping-Andersen (2000), o Cavalo de Tróia do Estado de Bem Estar traz, atualmente, um pacote de riscos que atinge as pessoas em idade mais jovem e a sua superação exige um aparato institucional de atenção às necessidades básicas que precisa urgentemente ser previsto. São questões que têm um fundamento econômico mas as soluções passam pela esfera política. É justamente o componente político que parece ter se diluído, em grande medida, com a ascensão desmesurada do mercado e a emergência de um Estado fortalecido no novo ordenamento social.

Após a veiculação intensa de notas de imprensa, entrevistas na mídia e um arsenal de informações através dos mais variados meios anunciando a forte expansão do mercado em substituição aos mecanismos mais tradicionais do Welfare State, verifica-se que houve muito exagero e mais retórica do que realmente alterações significativas. Esping-Andersen (2000, 2001) e Vicenç Navarro (2000a) apresentam dados da OCDE comprovando essa afirmação.

As alterações indicadas ocorreram no interior dos países capitalistas ocidentais, com um relativo diferencial de temporalidade entre os centrais e os situados na periferia do sistema, atualmente mundializado. Mesmo entre os países centrais, algumas distinções podem ser observadas, recuperando-se tradições e formas de organização sócio-politica que influenciaram a estruturação inicial dos dispositivos de bem-estar. Conforme analisado anteriormente, as transições afetaram o desempenho do Estado, o papel e as funções sócio- institucionais da sociedade civil, bem como sua relação com o poder público. Nesse processo, assistiu-se a expansão das fronteiras do espaço privado, do espaço particular e a redução do espaço público e da esfera política.

Em relação aos direitos sociais e econômicos, o potencial político de mobilização dos ideais de justiça social, em suas diversas acepções, perdeu o impulso instituinte em qualquer das propostas que, em algum momento, propuseram ou estiveram ligadas ao sentido de mudança (OFFE, 1999). O autor esclarece que

isso se aplica particularmente a qualquer noção de progresso que envolva, como uma vez envolveram a teoria da modernização liberal, o marxismo revolucionário ou o zelo missionário da cristandade, uma noção universalista de fins desejáveis, na direção dos quais a história deveria se mover e poder realmente ser encaminhada por agentes históricos constituídos (OFFE, 1999, p. 126).

Analisando a época atual, a qual designam como a nova era das desigualdades, Fitoussi e Rosanvallon (1996) alertam que a resignação impera, gerando o abandono da política, provocando e acentuando as desigualdades sociais. Em países que apresentam um desenvolvimento democrático tardio, com uma relativa fragilidade institucional, retomou-se comportamentos políticos de épocas antecedentes, como o retorno do populismo e do patrimonialismo, sob a capa de uma suposta democracia.

Frente a uma nova reordenação econômica, o espaço da reprodução social no interior dos países é revisto devido ao fato de que muitas das instituições ou arranjos institucionais que cumpriam a função de atender as necessidades e de manter a coesão social estão em crise. Também se acena, com a suposta perda da validade e da pertinência dos mecanismos democráticos para a tomada de decisões, seja para a alocação de recursos ou para as práticas distributivas.

Várias explicações são oferecidas no sentido de interpretar esse momento que vem sendo nomeado como crise, como transformação de paradigma produtivo ou um novo padrão sócio-cultural. Em qualquer das etiquetas, se identifica o papel protetor desempenhado pela

rede civil e um outro perfil das instituições democráticas. Essas abordagens interpretativas foram debatidas, no limite dos objetivos deste estudo, no primeiro capítulo e serão retomadas à medida da exigência analítica.

Offe (1999, p. 127) questiona quais as instituições que devem ser reformuladas e em que sentido vêm sendo reformadas para fazer “o que precisa ser feito”? Há o reconhecimento135 que o Estado, o mercado e a comunidade são as instituições que garantem, em última instância, a vida e a coesão social, ou seja, são os modos que viabilizam o viver e o interagir entre as pessoas, para a reprodução da vida social. A reprodução da sociedade depende da interação entre três capacidades, coletivamente relevantes, postas em ação pelos homens para a alteração do mundo e da vida: a razão, o interesse e a paixão (OFFE, 1999).

A razão é o que permite aos homens estabelecerem o que é bom para todos. Contratam, entre si, pela via democrática, o ordenamento social em que querem viver, sendo o Estado o substrato ético-político dessa razão humana no mundo moderno. O mercado é movido pela dinâmica dos interesses dos agentes na aquisição e troca de bens, com nenhuma ou com escassa preocupação com as conseqüências positivas ou negativas para o futuro. Rege-se por uma lógica própria, por um ideal de liberdade que, aparentemente, o autonomiza em relação às demais instâncias. A ordem social para se manter, exige e se beneficia das obrigações e direitos dos seus integrantes. O liame que integra os membros dessas comunidades é a paixão humana (como amor, honra, orgulho ou crença). É o que favorece um sentido de identidade, “nosso sentimento de pertencimento e o compromisso com um modelo ético que informa nossos projetos de vida” (OFFE, 1999, p. 128-129).

Nesse eixo argumentativo, o Welfare State significou, em seu tempo, uma opção pública e coletiva, do nível de compatibilização entre o Estado, o mercado e a sociedade. Fitoussi e Rosanvallon (1996)136 apontam que foi uma forma específica de ordenamento dessas instituições para o atendimento das necessidades sociais quando o compromisso da solidariedade social substituiu, em grande parte, o aparato jurídico-institucional.

135 De forma similar, Esping-Andersen (1994, 1995, 2000) e Navarro (2000b), entre outros autores, creditam a

satisfação das necessidades sociais ao mercado, ao Estado e à sociedade (ou comunidade). O que difere nas análises é o papel e o arcabouço institucional que as mesmas operam, bem como o papel do Estado e o papel desempenhado pelos dispositivos de solidariedade versus mercado.

136 Fitoussi e Rosanvallon argumentam que a solidariedade que ordenou o Welfare State substituiu, em grande

parte, os dispositivos contratuais mais relacionados a uma sociedade de mercado. As circunstâncias derivadas do período pós-guerra favoreceram a construção do sentido de pertencimento, o “nós inclusivo”, indicado por Offe (1984).

No entanto, a complexificação das necessidades sociais vem marcando o debate atual sobre a questão, nos países capitalistas democráticos. A complexificação está aliada à progressiva proeminência do mercado como o locus de satisfação das mesmas e ao gradativo afastamento do ideal de igualdade social, um dos princípios estruturantes do Estado de Bem Estar. O sentido de pertencimento, de coesão social, vem cedendo espaço a comportamentos orientados pelo vetor individual, sendo que as lutas políticas, nesse tipo de encaminhamento, se limitam a manter as garantias conquistadas e a não interferência estatal na esfera privada.

Por outro lado, segundo Offe (1999), a mesma complexidade contemporânea impõe que desenhar e defender relações entre o Estado, a sociedade e mercado exige aceitar um desenho processual, a capacidade de inventar, implementar e tolerar as diversas opções garantidas pelo comportamento cívico e pelos recursos políticos. O autor alerta que insistir em qualquer outra forma de imposição do ordenamento social, tipo “doutrina governante”, “linha correta” ou “Consenso de Washington”, é “silenciar a voz democrática clamando por uma compreensão superior e privilegiada da realidade”, é fazer valer a “regra de Tina”, mencionada anteriormente, desqualificando a esfera da cidadania política. Tais argumentos eliminam, in totum, o reconhecimento da esfera pública como a necessária para julgar os conflitos de interesses e as opções disponíveis e corretas para a atenção aos direitos sociais, para definir os limites do Estado e do mercado. Anulam a concepção que “a relação e a demarcação da linha entre mercado, Estado e comunidade é ela própria, uma questão de política” (OFFE, 1999, p. 132). A argumentação caminha pela linha de outras racionalidades que não a do ideal de igualdade social, e compõe uma mescla de razão técnica, cooperação solidária e pretensa homogeneização dos interesses. Operacionalmente, significa a busca de outros mecanismos para garantia da ordem social, sendo que, nesse processo, se assiste ao progressivo retraimento do Estado e a ascensão de um comunitarismo revigorado, ou o que vem sendo denominado de liberalismo comunitário137.

No Brasil, como nos demais países capitalistas, a área da prestação dos serviços de ações relativos à satisfação das necessidades sociais com direito de cidadania, nos termos constitucionais, vêm sofrendo uma reversão conceitual em que os topics da Reforma do Estado inovam na forma jurídica do público não-estatal. Opera-se, assim, uma alteração

137 Amitai Etzioni (2002), sustenta que o liberalismo comunitário é uma união entre ideais do liberalismo

clássico. Preocupa-se em definir as regras gerais de convivência com o neo-comunitarismo, que coloca novos valores na escala do liberalismo. Afirma que vem amadurecendo uma nova ordem que coloca limites no paradigma utilitarista mercantil, sob as bases orientadas da sociedade, sem ou com interferência mínima do setor público.

semântica complexa, onde a res pública não é mais responsabilidade do Estado, tornando a esfera pública difusa, cuja construção foi uma das bandeiras de lutas de parcelas da sociedade civil na década de 1980. Nessa linha teórica, a sociedade civil que “mantém estreitos vínculos com o modelo neoliberal” (DAGNINO, 2002, p. 293) é um espaço consensual, onde as diferenças são extintas, com a emergência do cidadão consumidor e a redução da cidadania social, que pode ser obtida unicamente através de uma esfera pública consolidada.

A publicização, ou a construção de uma esfera pública onde os interesses diversos são compatibilizados através de procedimentos democráticos, é resignificada como descentralização, que não traduz mais o que preconizava a Constituição. A descentralização das ações e serviços de saúde para os níveis subnacionais é transfigurada em ações e serviços além da esfera estatal, protagonizados pela sociedade civil, mais especificamente, pelas organizações do Terceiro Setor. É o ideal comunitarista revigorado como o factível de ordenar a atenção social básica com mais competência que o Estado, sendo que os bens meritórios são alocados pelo mercado.

Nesse trânsito, o termo publicização, cunhado originalmente como referência à construção de um espaço público de resolução dos conflitos de interesses, foi adquirindo um novo sentido, construído pelos idealizadores da reforma do Estado ajustada ao mercado. Assiste-se, assim, a duas ordens de transfigurações, ambas levando à retração da esfera pública e à diluição da idéia dos direitos sociais, que por sua vez, exige a ação estatal para sua garantia.

O então ministro José Serra (1999b, 2000a,) afirma que nem tudo que é público é estatal, confirmando posições do presidente da República e do ex-ministro Bresser Pereira (1997a, 1997b, 1998) e perfilhando-se às já mencionadas orientações normativas do Banco Mundial (1993, 1997). Fazendo eco ao discurso do núcleo duro do poder governamental, toda a matriz semântica analisada segue essa linha, com os topics: parcerias, sociedade civil como

loci dos serviços de atenção básica, transferência para o mercado de parte da demanda,

solidariedade, público não-governamental, solidariedade em economia de mercado, cordialidade e civilidade.

A diluição das fronteiras do espaço público, aliada à tendência da sociedade capitalista de fragmentação das consciências individuais, dificulta a formação de uma cultura política voltada à cidadania social. Para tanto, contribui o tipo de topic apresentado pelo Ministério da Saúde no sentido de trabalho cooperativo, solidário, com o constante apelo ao indivíduo, através das cartas ministeriais, do Disque Saúde, do contato personalizado. Igualmente, os