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Espaço do Metropolitano de Lisboa – o projecto cultural

O NÃO-LUGAR OU A MULTIPLICIDADE DE CONTEXTOS

III.6 Espaço do Metropolitano de Lisboa – o projecto cultural

A agenda do Metropolitano de Lisboa tem sido progressivamente alargada, mais significativamente desde 1993101. O ML promove concursos como o “Passatempo Piaf” ou concursos de desenho infantil, passatempos como os inclusos na “Campanha de Verão”, está incluído no programa do “Festival dos Oceanos” e associou-se

100 Augé, 2002: 30.

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recentemente ao Instituto dos Museus e da Conservação (relembre-se que o Museu da Música se encontra numa das estações do ML) e consequentemente promove visitas às suas estações. Ainda durante este ano, o ML celebrou o 50º aniversário, com concertos musicais com a participação da Orquestra Metropolitana de Lisboa e outras actividades. Contudo, como terá sido apontado aos museus em anos anteriores, a interacção bilateral prática não se reflecte nos eventos organizados: o espólio é apresentado como distante, e não se apresenta o encorajamento de o utente o modificar de acordo com valores artísticos comuns ao padrão cultural inerente.

Esta caracterização da agenda do ML pode alargar-se à autarquia da cidade de Lisboa (CML). Na generalidade, as actividades promovidas são unilaterais, da instituição para o público. O programa das Festas de Lisboa é progressiva e indubitavelmente diverso: cinema ao ar livre, concertos de jazz nos elevadores, actividade denominada Jazz às Onze (numa parceria conjunta da Carris com a EGEAC e com o Hot Clube, fotos no Anexo XV), exposições, entre outras actividades já não centradas unicamente nas Marchas de Lisboa. Todavia, a participação do público neste tipo de actividades é meramente contemplativa. O papel dos munícipes ou indivíduos interessados na agenda cultural demonstra-se reduzido, até pela carência de informação fornecida mesmo após solicitada: para a realização desta tese, foi solicitada informação sobre os orçamentos para a gestão cultural da autarquia, que não foram fornecidos após insistência durante variados meses.

A recorrência à banalização dos festivais para preencher as agendas culturais demonstrou-se um fenómeno crescente na última época. Deverá ser analisado com cautela, na medida em que estes proliferam dentro de áreas musicais restritas e se concentram progressivamente nos grandes centros de Lisboa e Porto. De acordo com um estudo académico da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, este tipo de eventos deve procurar a exploração de uma maior pluralidade de espaços não convencionais (públicos, privados) que fomentem a mesma pluralidade na oferta cultural102. Não só é de referir esta procura de espaços não convencionais como a procura de actividades não convencionais; a viabilidade de tal projecto encontra sintomas de procura dessa mesma diversidade em eventos organizados por entidades associativas, mesmo em actividades pouco canónicas, como a do “dia sem calças no Metro”, referida no Anexo XIV.

102AAVV, 2003.

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A proposta inerente ao estudo do Metropolitano de Lisboa seria a da análise da política cultural das instituições como o ML com o objectivo de solicitar a participação interventiva dos seus utilizadores. Da mesma forma que a CML dispõe espaços públicos para aluguer sob orçamento por parte de empresas privadas, mesmo para publicidade (o que terá provocado polémica em casos como a rotunda do Marquês de Pombal durante a época natalícia de 2008, que ficou repleta de esferas alusivas à TMN e as quais eram esteticamente discutíveis), os espaços de que a autarquia dispõe poderiam ser preservados e dinamizados pela abertura de concursos temáticos para o aluguer desses mesmos espaços: por exemplo, disponibilizar-se-ia um pequeno espaço na Rua Augusta para um pequeno concerto, e os projectos seriam avaliados pela autarquia; os grupos musicais não teriam de desembolsar quantias que frequentemente não possuem, o espaço era dinamizado e a segurança do equipamento assegurado pelos mesmos grupos musicais, os mesmos que promoveriam a sua música, e a CML não despenderia fracções do orçamento para a dinamização desses mesmos espaços.

Este modelo de política cultural dinamizadora da perspectiva do utilizador pode ser praticada sob variadas formas por uma empresa como o ML. Considerando a construção de novas estações, o revestimento estético das mesmas poderia ser resultado de um projecto de artistas amadores, sob concurso, em detrimento da contratação dispendiosa de artistas canónicos. Por conseguinte, os utilizadores do Metro poderiam circular perante arte do quotidiano, e não perante traços hermenêuticos de autores canónicos. Sob todas as perspectivas, seria o mecenato vantajoso para o mecenas, não obstante o facto de que o ML prima pela escolha da arte em detrimento dos antigos corredores cinzentos alcatroados, e que as suas estações representam lugares de excelência para a apreciação de arte no quotidiano necessário, nomeadamente no que concerne às estações mais recentes.

Em termos musicais, os mesmos espaços que acolheram os concertos de comemoração do aniversário do ML poderiam ser cedidos sob a mesma estratégia para a realização de concertos de grupos voluntários. Falando de música, falar-se-á de cinema ou de tantos outros âmbitos de actividades culturais: o átrio da estação de Cais do Sodré, por exemplo, detém uma franca potencialidade para a organização de actividades multidisciplinares. Estes eventos gerariam espectadores, o que provocaria a concentração de utentes nos espaços de circulação e possivelmente desencorajaria a ocorrência de assaltos violentos, considerando que estes são motivados em situações de

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isolamento eventual. Como refere Nuno Teotónio Pereira, o ML “trata-se de um espaço público que, apesar de enclausurado, não deixa de o ser, e é nessa qualidade que tem de ser analisado”103.

Deste modo, a arte de aproximação — que reflecte a autoria amadora, de raízes culturais próximas do utente dessas mesmas estações e que permitem o alargamento do raio de influência e do sentimento de pertença dos mesmos — poderá fomentar o diálogo cultural (através do “magnifying mirror”104 que o metro significa para Augé) e a preservação dos espaços. Mediante a sensibilização das entidades intervenientes, o conceito de Baker105 sobre o bem público pode finalmente ser posto em prática desde que a influência exercida por cada um dos intervenientes não exceda o âmbito previamente estipulado.

O diálogo cultural acima referido pode ser potencializado pelo encorajamento da manifestação das subculturas; ou seja, ao permitir a possibilidade de demonstração por parte das subculturas da sua cultura de origem, e de como esta pode enriquecer o conhecimento e a tolerância face ao desconhecimento e à desconfiança. Ao enfatizar a possibilidade comunicacional dessas subculturas no âmbito espacial, é possível estabelecer uma reflexão sobre a marginalidade contra-cultural de comunidades que se sentem excluídas, e consequentemente permitir que estas sejam encorajadas a utilizar meios legítimos para expressar a sua vivência de uma cultura dominante, a do país ou região para onde emigraram. Conquanto que se sublinhe que a globalização pode gerar homogeneização, é coerente ponderar a globalização como Friedman refere:

“Globalization refers to processes that are usually designated as cultural, that is, concerned with the attribution of meaning in the global arena (…). Culture, a modern tool, applied to the global context in which it emerged, generates an essentialization of the world, the formation of a configuration of different cultures, ethnic groups or races, depending upon the historical period, and the professional identities of the identifiers” (Friedman, 1994: 199, 207).

A essencialização de diferentes culturas não sugere a homogeneização e a aculturação unilateral das mesmas, pelo que se considerará a possibilidade dessas diferentes culturas se manifestarem e reiterarem os seus costumes, valores e normas, em

103

Pereira, in AAVV, 2001: 42-43. 104

Augé, 2002: 15.

105 “A public good is an item for which one person’s use of or benefit from the product does not affect its use by or benefit to another person”. Baker, 2002: 8.

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linhas similares ao que se tenta teorizar sobre a “glocalização”106. O questionamento da cultura dominante beneficia, indubitavelmente, a convivência dos variados padrões culturais, evitando conceitos como a crioulização, relacionados com teorias de autenticidade, desactualizadas muito antes da globalização. O discurso, como foi mencionado, de memória colectiva das estações actuais do Metropolitano de Lisboa evidencia-se pela sua unilateralidade, mesmo em estações como Picoas, onde o olhar sobre a cultura africana não deixa de ser unilateral, o “olhar do lugar do Outro”107.

A unilateralidade da perspectiva cultural pode ser evitada pela procura da multiplicidade de visões numa escala proporcional à multiplicidade de influências observável num espaço urbano, através de um modelo de manifestação cultural orientada. A inevitabilidade do contacto intercultural é inegável. A estratégia utilizada no intuito de promover a fluência urbana sob este modelo constitui uma hipótese válida na promoção da cultura como veículo multidisciplinar da ordem social. Por outras palavras, a cultura apresenta-se como um eixo de mediação inclusivo, i.e., um meio de comunicação que restringe os movimentos de exclusão e auto-exclusão, se a multiplicidade de perspectivas for encorajada.

Um espaço como o Metropolitano, ao consistir num sistema arterial do espaço urbano, apresenta potencialidades e riscos, dotados de imprevisibilidade. Se a esfera cultural pode intervir surtindo uma cultura de pertença, tais riscos podem ser minimizados, concomitantemente à acção sociocultural de que a promoção da multiculturalidade é imbuída. Em adição, a vantagem económica deste modelo tem de ser considerada, na medida em que o Metropolitano se define não só como uma entidade pública mas igualmente uma entidade de carácter empresarial. É relevante sublinhar que a cultura sob este modelo pode beneficiar estética e socialmente os espaços públicos do ML como esses benefícios podem constituir uma economização de meios na promoção cultural nos variados âmbitos apresentados.

Este modelo de intervenção cultural pode ser aplicado a diversos outros projectos, institucionais e empresariais. A potencialidade dos espaços públicos, especialmente os transportes, são caracterizados pela flexibilidade e pela possibilidade de agregar interesses que sejam comuns aos exploradores, tutores ou concessionários desses espaços, aos utilizadores e à comunidade onde esses espaços se integram. Na realidade,

106 Axford, in AAVV, 2000: 242. 107

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este modelo não acrescenta muito aos espaços em questão; apenas as suas componentes estão desassociadas, ao considerarem espaços como o ML como espaços de passagem ou, como Marc Augé, de não existência cultural. O que o modelo permite resume-se à utilização dessa potencialidade cultural dos espaços públicos no intuito de propor a mutação desses espaços de passagem para lugares de presença e de pertença.

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Conclusão

A abordagem do conceito de espaço pode ser efectuada através de variadas perspectivas, o que gera inúmeras visões desse mesmo conceito. Esta multiplicidade intensifica-se aquando da definição de lugar e da articulação deste com outros conceitos, como o de origem ou de pertença. O contexto da abordagem multidisciplinar do espaço encontra no seu âmago o deslumbramento e a desilusão do século XXI: o ser humano enfrenta a desilusão face às suas criações, que mais do que o que cooperaram para o desenvolvimento sócio-económico, foram utilizadas para a reconsideração da palavra “terrorismo”. Se os acontecimentos relacionados com a II Guerra Mundial foram considerados excepções na ciência que promovia o papel interventivo para a resolução de problemas, o desenvolvimento tecnológico no século XXI demonstra-se mais lento do que se almejava nos finais do século XX, e mais ameaçador.

A noção de identidade constitui um dos temas mais frequentes das discussões da actualidade, desde os atentados de 11 de Setembro de 2001 aos diálogos pós-coloniais. O contexto, resultante da união de tempo e espaço, cria e influencia a identidade de modo inegável. O ser humano pensa-se através do que o rodeia, daquilo que sente e daqueles com quem partilha essa conjuntura. A reflexão sobre uma concepção espacial demonstra-se a consideração da sobreposição de conceitos e de significados inerentes a cada sujeito. Contudo, as sobreposições multiplicam-se por cada indivíduo que partilha o mesmo espaço. Admitir que o indivíduo cultural pensa o espaço através de uma interpretação identitária, é admitir a falibilidade de uma teoria niilista como a do não- lugar, teoria esta que considera a possibilidade de o indivíduo se ver só e isento de racionalidade e de identidade cultural.

Defende-se que, após esta tese que abordou os conceitos inerentes à teoria espacial, o ser humano não se abstém da sua racionalidade, na medida em que pensa o espaço como ferramenta básica de raciocínio. Sendo pouco provável que o ser humano se abstenha da sua racionalidade apenas porque circula em transportes públicos, é coerente adiantar que a teoria do não-lugar foi avançada por Marc Augé como reacção à conjuntura que o permitiu pensá-la. O não-lugar, na primeira década do século XXI, relaciona-se meramente com a inexistência de seres-humanos num determinado espaço, um deserto inóspito que, todavia, não culmina num não-lugar strictu sensu porque mesmo estando vazio o lugar é pensado: os desertos são cartografados, memorizados,

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imaginados, acessíveis por imagens de satélite. Negar a significação espacial é negar a racionalidade cultural humana.

A relevância deste estudo patenteia-se pelo seguinte: a cultura, outrora sinónimo de erudição, apresenta-se actualmente como uma característica indissociável da existência humana. Ao subestimá-la como tal, considera-se que todo o significado humano é arbitrário, que toda a comunicação é fútil, que todo o contacto interpessoal é estéril e ignóbil e que a vivência humana é monocromática. O aqui e agora é legível pelos estudos culturais.

A tomada de políticas que reconheçam a inevitabilidade e a potencialidade da cultura simultaneamente como ferramenta e objecto significam uma estratégia essencial para a consideração global de uma problemática. Por outras palavras, e tomando de exemplo novamente o Metropolitano de Lisboa, as problemáticas vividas pelo organismo face aos desvios da norma podem ser considerados sob uma perspectiva cultural, a qual permitirá a observação multidisciplinar. A admissão, em particular, de que o vandalismo pode ser um sintoma de marginalidade, reitera que este deve ser encarado contextualmente, sob variados âmbitos, âmbitos estes que analisem estratégias de resolução que podem recorrer, na prática, ao fomento da manifestação cultural orientada.

Considerando novamente a teoria apresentada da multiplicidade de influências no contexto, a gestão do conflito implica necessariamente a compreensão da necessidade de o indivíduo se sentir contextualizado e integrado através da interacção espacial. Deste modo, a gestão do conflito e da fuga à norma exige a consideração do contexto causador dos mesmos e do levantamento de hipóteses: como este contexto pode ser compreendido ou modificado no intuito de desencorajar tais problemas e como a cultura, no seu cerne multidisciplinar e constituinte da vivência criativa humana, pode intervir através de uma metodologia prática nessa compreensão e modificação de contextos. Esta proposta colide com o discutido conceito de não-lugar, o qual condena estes espaços ao niilismo cultural.

O espaço, segmentador de identidades, de movimentos e de memórias, tanto quanto o tempo, é imbuído de dinâmica, desde que haja indivíduos que o concebam e modifiquem mediante a compreensão dos lugares. O espaço ocupado pelo metro, fisicamente pensado através do sistema complexo de túneis, estações, vias de acesso,

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oficinas, e encruzilhadas, não impede a consideração do seu impacte na caracterização do espaço urbano e da orgânica da cidade na sua totalidade: um espaço susceptível e imprevisível, acelerador do ritmo de Lisboa, palco de influências e de contextos que se entrelaçam, fundem, colidem. O reconhecimento da potencialidade da identidade espacial para a sua própria gestão constitui um passo fundamental para o desenvolvimento sustentável de políticas empresariais e institucionais.

Tempos como os actuais renovam os conceitos de velocidade. A viagem, muitas vezes já não uma demanda, pode assumir contornos efémeros, quase banais: um voo transatlântico pode ser incluído numa agenda profissional de um executivo como um compromisso vulgar. A travessia de oceanos não remete já para uma despedida que significa a separação vitalícia, mas sim uma separação cronometrada face aos lugares e às pessoas deixados no lugar de partida. Tal não implica que os sentimentos de distanciamento em relação ao lar sejam menosprezados na actualidade.

A aceleração dos tempos implica, na verdade, a aceleração dos mesmos sentimentos, na medida em que são medidos não por semanas mas por minutos. O sentimento de afastamento em relação ao lar e a todos os seus signos persevera nos lugares em que Augé sentia de certo modo o desenquadramento do sujeito por falta de familiaridade com o próprio lugar. Esses lugares não sofreram graves alterações ao longo do tempo, apenas modificações nos meios de transporte: estes lugares são ainda os cais, as gares, as estações, os apeadeiros. O momento da partida assinala, por vezes, tudo aquilo que Augé quis negar, ou seja, a identidade e a interpretação espacial do indivíduo acerca do local onde se despede dos entes queridos: um tumulto de emoções e de recordações que comprovam a manifestação individual no lugar onde a mesma ocorre. A memória preservará, por sua vez, esses momentos, que significarão intemporalmente o lugar da despedida, do último aceno, até que o regresso permita o reavivar desses sentimentos, enquanto ansiosamente se espera num cais.

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Anexo I

Mapas de localização dos locais de plane spotting no Aeroporto